Fraude Interna, Lesados Externos


“A principal causa (segundo 42% dos inquiridos) para a ocorrência de fraude é precisamente a ‘ineficiência dos sistemas de controlo’”


As fraudes são perpetuadas por pessoas, que, partindo de uma qualquer motivação (falta de dinheiro, ambição, sentimento de que ’toda a gente rouba’, etc) sentem existir uma oportunidade de efetuar este ato sem que este seja detetado (em bom português, sem serem ‘apanhadas’).

Esta conjugação de Motivo e Oportunidade está sempre presente neste tipo de fenómenos.

A prevenção de actos fraudulentos deve, assim, assentar na mitigação quer dos Motivos, quer das Oportunidades percepcionadas pelos potenciais defraudadores.

Trabalhar ao nível dos Motivos pode ser um enorme desafio, pois estes assentam não só em traços de personalidade humana difíceis de extirpar (ganância, etc), como no caldo cultural onde vivemos (que idolatra o materialismo, o consumismo e o ’sucesso’, tudo excelente motivações para se ’ter mais’).

Já no que toca à questão da Oportunidade, há duas vertentes principais que devem ser atacadas:

1. a vertente ‘processual’, que passa pela implementação de procedimentos e sistemas que dificultem a alguém cometer uma fraude sem esta ser detetada;

2. a vertente ‘cultural’, focada sobretudo na criação da percepção (pessoal e social) por parte daqueles tentados a efetuar fraudes que não só serão ‘apanhados’, como que também serão exemplarmente punidos.

Um dos grandes segmentos da fraude cometida é a denominada ‘fraude organizacional’, em que funcionários de uma dada organização (por vezes em conluio com agentes externos à mesma) aproveitam deficiências nos processos internos para se apropriarem indevidamente de bens ou vantagens que não são seus por direito.

Um estudo recente da Deloitte (DeloitteFraudSurvey Portugal 2019) indica que a principal causa (segundo 42% dos inquiridos) para a ocorrência de fraude é precisamente a ‘ineficiência dos sistemas de controlo' (seguida da ‘falta de valores éticos’, algo bem menos objetivo, com 39%).

Torna-se assim de enorme relevância a construção de arquitecturas organizacionais que assentem em processos bem definidos, com separação clara de responsabilidades e, sobretudo, com mecanismos de monitorização e controle eficazes (há quem chame a isto, e bem, Governance) Infelizmente os portugueses não são conhecidos enquanto exímios organizadores de processos, assentando muitas vezes a organização dos processos organizacionais nos princípios do menor esforço, do ‘logo se vê' e do ‘desenrascanço’.

A fraude e a corrupção vivem nos buracos da realidade, nos interstícios das organizações, onde ninguém está a olhar excepto quem comete estes atos.

Para dar um exemplo da importância de processos bem desenhados e sistemas de controlo, narro uma história que ocorreu comigo recentemente.

Há tempos atrás recebo uma chamada da Polícia Judiciária, que naturalmente estranhei. Após uma breve apresentação do interlocutor, sou informado que fui alvo de fraude. Com enorme surpresa ouço do agente o relato de que um funcionário de um serviço público (que opto por não identificar aqui) se apropriou indevidamente de verbas que me eram devidas. Tendo-me sido pedido que me dirigisse aos serviços da PJ para prestar testemunho, não fazia ideia do que iria encontrar.

Em traços resumidos, havia um funcionário que tratava de devoluções de montantes relativos a acertos de tarifários, e que pura e simplesmente ficava com os valores a devolver. Para tal, tinha acesso à lista de pessoas que deviam receber estas devoluções, bem como aos seus documentos de identificação, e com base neste forjava as assinaturas dos lesados nos recibos de recebimentos da devoluções e ficava com os respetivos cheques. O meu caso havia-se passado antes de 2010, e pelos vistos este funcionário incorreu nesta prática durante vários anos.

O que falha aqui? O processo e os sistemas de controle. Não me foi indicado, mas imagino que este mesmo indivíduo era responsável pela notificação das pessoas a quem era devidos os montantes e por lhes entregar os respectivos cheques. Ora, isto é claramente uma oportunidade de fraude, ao possibilitar que as pessoas não fossem contactadas, e não havendo nenhum outro mecanismo de controle desta parte do processo que o próprio indivíduo que estava a cometer a fraude. Naturalmente, deveriam ser entidades diferentes a comunicar e a entregar o montante, sendo que o primeiro processo deveria ser automático (sem agente humano) e o segundo (a entrega) deveria poder ser efetuado por várias pessoas, não por uma única. Para além de tudo isto, seria sensato um processo independente de verificação da correção do processo, através de contacto por amostragem com as pessoas que deveriam receber as devoluções (feito por outras pessoas).

Poder-se-á argumentar: mas essa pessoa acabou por ser apanhada, logo prova-se que o ’processo’ acabou por funcionar.

Longe disso: para eu receber o dinheiro que me é devido, por exemplo, teria de colocar uma ação sobre esta pessoa, o que não se justifica de todo tendo em conta o montante em causa (umas dezenas de euros). Isto para não ter em conta a necessidade de alocar meios da PJ a este processo (imaginem contactar todos os lesados), meios esses que são bem necessários noutros processos.

Agora pense-se, devido a maus processos e deficientes mecanismos de controlo, quantos mais casos destes existirão espalhados por organizações públicas e empresas privadas que nunca chegam a ser descobertos.

É fundamental o combate sério e profissional à noção de Oportunidade para fenómenos de fraude e corrupção através de um investimento assumido e consequente nos sistemas de Governance organizacional.

 

Sócio do OBEGEF (Observatório de Economia e Gestão da Fraude)

https://www.linkedin.com/in/pedromoura/


Fraude Interna, Lesados Externos


“A principal causa (segundo 42% dos inquiridos) para a ocorrência de fraude é precisamente a ‘ineficiência dos sistemas de controlo'”


As fraudes são perpetuadas por pessoas, que, partindo de uma qualquer motivação (falta de dinheiro, ambição, sentimento de que ’toda a gente rouba’, etc) sentem existir uma oportunidade de efetuar este ato sem que este seja detetado (em bom português, sem serem ‘apanhadas’).

Esta conjugação de Motivo e Oportunidade está sempre presente neste tipo de fenómenos.

A prevenção de actos fraudulentos deve, assim, assentar na mitigação quer dos Motivos, quer das Oportunidades percepcionadas pelos potenciais defraudadores.

Trabalhar ao nível dos Motivos pode ser um enorme desafio, pois estes assentam não só em traços de personalidade humana difíceis de extirpar (ganância, etc), como no caldo cultural onde vivemos (que idolatra o materialismo, o consumismo e o ’sucesso’, tudo excelente motivações para se ’ter mais’).

Já no que toca à questão da Oportunidade, há duas vertentes principais que devem ser atacadas:

1. a vertente ‘processual’, que passa pela implementação de procedimentos e sistemas que dificultem a alguém cometer uma fraude sem esta ser detetada;

2. a vertente ‘cultural’, focada sobretudo na criação da percepção (pessoal e social) por parte daqueles tentados a efetuar fraudes que não só serão ‘apanhados’, como que também serão exemplarmente punidos.

Um dos grandes segmentos da fraude cometida é a denominada ‘fraude organizacional’, em que funcionários de uma dada organização (por vezes em conluio com agentes externos à mesma) aproveitam deficiências nos processos internos para se apropriarem indevidamente de bens ou vantagens que não são seus por direito.

Um estudo recente da Deloitte (DeloitteFraudSurvey Portugal 2019) indica que a principal causa (segundo 42% dos inquiridos) para a ocorrência de fraude é precisamente a ‘ineficiência dos sistemas de controlo' (seguida da ‘falta de valores éticos’, algo bem menos objetivo, com 39%).

Torna-se assim de enorme relevância a construção de arquitecturas organizacionais que assentem em processos bem definidos, com separação clara de responsabilidades e, sobretudo, com mecanismos de monitorização e controle eficazes (há quem chame a isto, e bem, Governance) Infelizmente os portugueses não são conhecidos enquanto exímios organizadores de processos, assentando muitas vezes a organização dos processos organizacionais nos princípios do menor esforço, do ‘logo se vê' e do ‘desenrascanço’.

A fraude e a corrupção vivem nos buracos da realidade, nos interstícios das organizações, onde ninguém está a olhar excepto quem comete estes atos.

Para dar um exemplo da importância de processos bem desenhados e sistemas de controlo, narro uma história que ocorreu comigo recentemente.

Há tempos atrás recebo uma chamada da Polícia Judiciária, que naturalmente estranhei. Após uma breve apresentação do interlocutor, sou informado que fui alvo de fraude. Com enorme surpresa ouço do agente o relato de que um funcionário de um serviço público (que opto por não identificar aqui) se apropriou indevidamente de verbas que me eram devidas. Tendo-me sido pedido que me dirigisse aos serviços da PJ para prestar testemunho, não fazia ideia do que iria encontrar.

Em traços resumidos, havia um funcionário que tratava de devoluções de montantes relativos a acertos de tarifários, e que pura e simplesmente ficava com os valores a devolver. Para tal, tinha acesso à lista de pessoas que deviam receber estas devoluções, bem como aos seus documentos de identificação, e com base neste forjava as assinaturas dos lesados nos recibos de recebimentos da devoluções e ficava com os respetivos cheques. O meu caso havia-se passado antes de 2010, e pelos vistos este funcionário incorreu nesta prática durante vários anos.

O que falha aqui? O processo e os sistemas de controle. Não me foi indicado, mas imagino que este mesmo indivíduo era responsável pela notificação das pessoas a quem era devidos os montantes e por lhes entregar os respectivos cheques. Ora, isto é claramente uma oportunidade de fraude, ao possibilitar que as pessoas não fossem contactadas, e não havendo nenhum outro mecanismo de controle desta parte do processo que o próprio indivíduo que estava a cometer a fraude. Naturalmente, deveriam ser entidades diferentes a comunicar e a entregar o montante, sendo que o primeiro processo deveria ser automático (sem agente humano) e o segundo (a entrega) deveria poder ser efetuado por várias pessoas, não por uma única. Para além de tudo isto, seria sensato um processo independente de verificação da correção do processo, através de contacto por amostragem com as pessoas que deveriam receber as devoluções (feito por outras pessoas).

Poder-se-á argumentar: mas essa pessoa acabou por ser apanhada, logo prova-se que o ’processo’ acabou por funcionar.

Longe disso: para eu receber o dinheiro que me é devido, por exemplo, teria de colocar uma ação sobre esta pessoa, o que não se justifica de todo tendo em conta o montante em causa (umas dezenas de euros). Isto para não ter em conta a necessidade de alocar meios da PJ a este processo (imaginem contactar todos os lesados), meios esses que são bem necessários noutros processos.

Agora pense-se, devido a maus processos e deficientes mecanismos de controlo, quantos mais casos destes existirão espalhados por organizações públicas e empresas privadas que nunca chegam a ser descobertos.

É fundamental o combate sério e profissional à noção de Oportunidade para fenómenos de fraude e corrupção através de um investimento assumido e consequente nos sistemas de Governance organizacional.

 

Sócio do OBEGEF (Observatório de Economia e Gestão da Fraude)

https://www.linkedin.com/in/pedromoura/