Que futuro resta aos livros e à literatura na era dos nativos digitais?

Que futuro resta aos livros e à literatura na era dos nativos digitais?


Numa altura em que os “autodidatas com conhecimentos avançados de retórica digital” encaram os livros como meros produtos comerciais, ou se hasteia a bandeira branca, pedindo clemência, ou vemos aqui margem para uma formidável resistência literária. 


O livro não é só mais outra coisa, não é um instrumento como outro qualquer. A persistência é quase a sua única tarefa. Está ali, calado, e aguarda. As décadas e os séculos não o põem nervoso. Tem papado disso tudo, tanto tempo, sem ficar cheio, sem que as linhas entrem umas pelas outras, avariando o sentido de, atrofiando as línguas. E há muito que lhe vêm dizer que é desta, que lhe restam mais uns anos, e que depois será declarado absolutamente inútil, obsoleto, um estorvo. Mas as novas eras não começam de repente, como notou Bertolt Brecht. E, de resto, “carne nova come-se com garfo velho”. Com o seu talento discreto, ainda aí estará para ajudar a resolver as trapalhadas das novas e radiantes eras que nos estão prometidas. Da sabedoria que antes andava de boca em boca, prendeu ele a mais apurada fórmula, e, sendo certo que “das novas antenas virão as velhas asneiras”, é uma questão de tempo, de a abundância e o seu catálogo de torpes criações se retirarem, de a vida apertar connosco, e logo retomaremos essa grandiosa conversa.

Com aquele agudo juízo de um grande devorador de enciclopédias, Jorge Luis Borges atreveu-se a vaticinar que o livro nunca desaparecerá. Para o argentino, isso é impossível, e não só porque a herança que os livros contêm é demasiado preciosa, mas porque o livro é a própria chave de uma forma insubstituível de apreensão do conhecimento. “Dos diversos instrumentos inventados pelo homem, sem nenhuma dúvida, o mais assombroso é o livro. Todos os demais são extensões do seu corpo. O telefone, por exemplo, é a extensão da voz; o telescópio e o microscópio são extensões da sua vista; a espada e o arado são extensões do seu braço. Apenas o livro é uma extensão da imaginação e da memória”.

Mas e o que dizer desta prepotência, do excesso de confiança que as novas tecnologias geraram e do desprezo com que os “nativos digitais”  encaram os livros e a leitura que estes ensinam e exigem – silenciosa, retirada, sem distrações? Tudo porque no bolso levam uma espécie de portal que lhes permite navegar na rede, ser alertado, estar a par de tudo, consultar o catálogo das maiores bibliotecas, visitar museus sem ter de esperar em filas, trocar mensagens de forma instantânea com qualquer um dos membros da sua imensa tribo, a maior de toda a História, e que se encontra espalhada pelos quatro cantos da Terra.

Agora que as gerações se sucedem a uma velocidade vertiginosa, seguindo o tambor de campanhas de marketing muitíssimo bem sincronizadas, é preciso tentar perceber o que caracteriza a geração millennial, ou até essa outra, a Z, que já está aí à porta, prometendo arrombar tudo o que tínhamos por estável e definitivo. O ensaísta peruano Martín Rodríguez-Gaona refere que além da alfabetização digital, esta é uma geração profundamente afetada pelos efeitos da globalização e da crise, e que se serve das redes sociais como paliativo, um espaço de autogratificação instantânea, em que a popularidade arrasa a qualidade.

Face às transformações que têm ocorrido no campo da informação e do saber com a introdução de novos meios tecnológicos, o prestigiado crítico italiano Alfonso Berardinelli deu-se conta de um mirífico fosso que hoje se interpõe entre gerações. “Com o seu incontido entusiasmo, agora que os engenheiros e empresários decidiram mudar a nossa vida a cada seis meses, tendo-me eu aferrado aos meus velhos hábitos, tenho de reconhecer que me tornei um exemplar antropológico em grave perigo de extinção, mais próximo de um escriba, de um amanuense ou de um homme-de-lettres dos séculos xviii, xix ou xx, que de um jovem nascido nos últimos 20 anos”, refere, para então rematar em tom jocoso: “Que maravilha! Sem ter à minha disposição uma milagrosa máquina do tempo, mantendo-me apenas fiel aos meus hábitos ao longo dos últimos 20 anos, o presente das novas tecnologias da leitura e da escrita catapultou-me várias décadas ou até séculos no passado”.

E se a tribo dos que encaram com as maiores suspeitas o vigoroso gigante tecnológico que impôs o ritmo de marcha ao nosso tempo parece cada vez mais reduzida, as suas barricadas parecem ser feitas não de sacos de areia mas de livros, e, num dos seus artigos, Berardinelli recorda a resistência de Oliver Sacks a converter-se aos livros digitais. O célebre neurologista, que morreu em 2015, deixou claro que o livro é uma tecnologia de tal modo refinada que não admite já grandes melhorias: “Eu não quero um Kindle, nem um Nook, nem um iPad. (…) Quero um livro de verdade, impresso em papel: um livro que tenha um peso, que cheire a livro, tal como têm sido os livros nos últimos cinco séculos e meio”. E ainda acrescentava: “Ler é uma tarefa enormemente complexa (…) Cada um lê ao seu ritmo (…) Não devemos consentir na desaparição de nenhuma forma de livro, porque todos somos indivíduos, com exigências e preferências fortemente individualizadas: preferências que estão inscritas na massa do nosso cérebro a todos os níveis, com as nossas redes neuronais individuais que criam um diálogo profundamente pessoal entre o autor e o leitor”.

Como frisa Berardinelli, a reinvenção de um objeto como o livro não é apenas mais um passo numa longa sucessão de aperfeiçoamentos, mas traduz um desvio nocivo que poderá conduzir a alterações na própria forma como o nosso cérebro apreende, constrói e desenvolve a memória. Porque é precisamente do lastro da memória que se espera que os nativos digitais se desembaracem, de modo a poderem navegar mais livremente, sem o peso de qualquer espécie de âncora. “A verdadeira memória vital tem um só órgão: a mente, a psique e o corpo humano, o uso dos olhos e das mãos, o vínculo entre o espaço, o tempo e a causalidade física”, explica o crítico. E adianta: “Os textos, essas tapeçarias de palavras, na sua estabilidade e repetição, são como uma superfície, um estrato da vida mental e social. Quando se transformam as técnicas e os hábitos, o tempo e o espaço, a matéria da escrita e da leitura, também se transformam os seres humanos, o seu corpo como a sua alma: porque no ‘mundo sublunar’ a alma é corpo. Toda a perda material do mundo físico para seres de carne e osso como nós não é, portanto, algo digno de louvor, mas uma perversão espiritual”.

Contra todo o arsenal místico e as fábulas convocadas pelos tão otimistas arautos deste novo Renascimento, um futuro resplandecente em que será difícil dizer se a máquina é uma extensão do homem ou se é o homem que se torna uma espécie de tomada para uma gigantesca rede informática, basta às vezes, como faz Berardinelli, ler com mais atenção, citar com intenção, para expor o absurdo, as velhas asneiras que as novas antenas fazem soar. 

Lembra-nos, assim, da vez em que o filósofo francês Michel Serres se fez valer da lenda de São Dionísio de Paris, um pregador que converteu centenas de pessoas ao cristianismo antes de ser martirizado nas perseguições do imperador Valeriano. Serres garante que não faltará muito para que toda a humanidade viva de forma coletiva o milagre deste santo e lembra que, quando “lhe cortaram a cabeça e esta caiu à terra, se agachou, decapitado, para recolhê-la, e depois susteve-a com os braços levantados”. Como um decapitado, Serres puxa desta analogia para dizer que a nossa cabeça do futuro, separada do nosso corpo, “será o computador e a sua imensa memória, a sua potente rapidez de cálculo, a sua fulminante capacidade de classificar dados”. Por seu lado, Berardinelli quase só precisa de se pôr a rir para fazer notar a infelicidade desta leitura. “Talvez algum diabrete o tenha aconselhado a experimentar em chave de ficção científica a leitura do martírio e milagre de São Dionísio, mas não faço ideia que neurologista seria capaz de o levar a acreditar que, eliminando e delegando na máquina cada vez mais funções cerebrais, o nosso cérebro irá melhorar em vez de piorar.”

Quando se multiplicam os sinais de  uma progressiva perda da capacidade de focar a atenção, o que está em causa não é apenas a adaptação cerebral ao universo digital e às suas múltiplas estratégias de sedução e assédio: também há uma forte repercussão ao nível da própria relação com as artes. Assim, não se trata apenas de uma ameaça ao livro e à leitura, mas também de uma degradação do espaço literário. Este encontra-se, de momento, sitiado, e o cerco é garantido pelas novas métricas – desde logo, “a tirania dos likes” -, impondo outras regras e critérios, que não literários, à aferição do valor das obras que hoje se escrevem e publicam. No polémico ensaio La lira de las masas: Internet y la crisis de la ciudad letrada, Martín Rodríguez-Gaona toma o pulso aos atuais fenómenos de populismo digital que levaram a que um bando de influencers dominem atualmente os tops das livrarias em Espanha como em vários outros países. Ali, algo nunca antes visto tem sucedido repetitivamente: volumes de versinhos de uma banalidade confrangedora vendem dezenas de milhares de exemplares. E o livro, que recolhe muitas vezes tweets e publicações do Facebook, transforma-se num simples veículo de comercialização, com os catálogos de respeitáveis editoras a aproveitarem-se deste fenómeno, dirigido já não aos leitores de poesia, mas aos seguidores e fãs destes autores 2.0. 

Nos seus efeitos de autorrepresentação, estes poetas estão mais próximos das Kardashian do que de Rimbaud ou Dylan Thomas. E, assim, “é o mercado quem hoje dita o cânone”, garante Rodríguez-Gaona, ligando esta preferência pela “imediatez, popularidade, interatividade e efémero” ao desprezo atual pela crítica. A tradição literária torna-se um mero cadáver consumido e estraçalhado em fórmulas de reverência inócua, e tudo fica à mercê desta forma de leitura como um desvairado formigueiro.

Já há uns anos, num dos seus ensaios, Berardinelli notava que, “se na atualidade há tantos poetas, isto deve-se sobretudo ao facto de estes considerarem que a poesia é um género literário sem regras, onde vale tudo, e que não exige que se tenha alguma coisa para dizer”. Ainda antes destes fenómenos de “poesia pop tardo-adolescente”, este acutilante leitor havia notado que “tanta liberdade mal entendida” foi o que levou a que a poesia se visse desamparada nas últimas décadas, sem um público de leitores capazes de um verdadeiro juízo crítico, “transformando-a numa terra de ninguém, um género de livre acesso e que antes era considerado árduo até ao ponto do ascetismo”.

Mesmo que esta mudança de paradigma venha a provar ser apenas um período de transição, um momento de especial ingenuidade em que reinam o género de tendências e modas que, assim que a sobriedade recobre as suas faculdades, acabaram por ser lançadas para a berma da longa e impassível estrada, ou mesmo atirados à fossa, sobrando apenas o registo na longa lista de bestas céleres que nos fazem corar, passados uns anos, ou, ao ritmo atual, uns meros 15 minutos. Mas, por agora, isto significa que, como refere Berardinelli, estamos condenados a aguentar o alarido e a histeria, e quem quer que “ouse emitir juízos críticos e fazer comparações com o passado será malvisto, tido como inoportuno, invejoso, rancoroso, inimigo da vida e da criação”.