No princípio era o verbo…


Assistimos ao crescimento de um verdadeiro mercado digital de compra e venda de dados que tendemos a confiar a quem os solicita


“Consentir” é, provavelmente, nos tempos de profunda e intensa revolução digital que vivemos, o verbo que mais se atravessa no nosso caminho.

Ainda há bem pouco tempo, quando me preparava para satisfazer mais um dos meus incontroláveis impulsos consumistas, acrescentando mais um livro à já minha extensa estante (por vezes questiono-me, sinceramente, se nesta vida terei tempo para os ler a todos…mas, na dúvida, vou continuando a comprar…), a diligente funcionária que me atendia, perguntou-me se já tinha cartão de cliente, ao que retorqui amavelmente dizendo que não.

Perante as vantagens do mesmo, que depressa se apressou a debitar, não hesitei. Avançámos então para o miraculoso cartão de cliente.

Pediu-me os elementos… os do costume…nome, morada, telefone e, se possível, um e-mail para futuras divulgações literárias e outros eventos. Anui e dei-lhe a informação pretendida.

Concluída esta simples operação, e quando me preparava já para agarrar no meu livrinho e vir embora, qual não foi o meu espanto quando vi sair da máquina colocada em cima do balcão um papel que, e não estou a exagerar, teria certamente a extensão próxima daquelas faturas de hipermercado em vésperas de Natal, com uma letra tão pequena que, se fosse lida, demoraria seguramente mais tempo do que o livro que acabara de comprar…

“Preciso que me assine aqui, por favor, em como consente na utilização dos seus dados”… disse melodiosamente a zelosa funcionária, ao mesmo tempo que esticava o longo papel que a máquina acabara de imprimir…

Fiquei sem pinta de sangue, ganhei coragem e perguntei se era mesmo necessário…ao que ela, simpaticamente, respondeu “faz parte das condições de utilização do cartão de cliente…!”

Ou seja, ou era assim ou bem podia dizer adeus ao miraculoso cartão de cliente…

Esta pequena história, experienciada na primeira pessoa, serve para ilustrar um dos principais problemas com que hoje nos defrontamos quanto à utilização, abusiva refira-se, que as empresas em geral fazem dos dados que nós, na maior parte dos casos de forma pouca ou nada esclarecida, tendemos voluntariamente a fornecer.

Mas é uma história que se repete em múltiplas plataformas disponíveis online que oferecem bens e serviços a troco, claro está, do respetivo pagamento e do preenchimento prévio de pesados formulários requerendo informação diversa, ena maior parte dos casos sensível, do comprador e das suas preferências consumistas.  

Existe, por detrás destas plataformas, um modelo de negócio estruturado e de elevada eficácia, envolvendo as mais insuspeitas empresas na prossecução de um objetivo principal que passa, em boa verdade, não tanto por vender bens ou serviços mas sim por obter dados e informação diversas, relativos aos perfis de consumo dos respetivos utilizadores para, ato contínuo, os vender a outras empresas vampiras, por valores inimagináveis.

Ora tudo isto faz com que os nossos dados sejam encarados como um dos mais valiosos bens atualmente transacionados no mercado, sem qualquer controlo ou regulação, permitindo às empresas que os detém, preparar e dirigir eficazmente publicidade personalizada e, por essa via, maximizar pornograficamente os seus já consideráveis lucros. Essas empresas recolhem a informação que lhes chega, tendo por base os inúmeros formulários que preenchemos online quando aderimos a um determinado website ou quando compramos o último CD do Post Maloneou, ainda, quando concordamos com a política de cookies na visualização de um inovador e apelativo site de robótica.

Assistimos pois, pelos dias que correm, ao crescimento de um verdadeiro mercado digital de compra e venda de dados que atua, impune e sem regulação, comercializando massivamente, de forma ínvia, inapropriada e despudorada, a informação que de boa-fé, todos e cada um de nós, tendemos a confiar a quem no-la solicita.

O quadro é agravado pois a utilização do serviço ou do website é condicionada ao nosso prévio consentimento sendo que este ou é total ou, não o sendo, nada feito.

Urge, nesta medida, iniciarmos todos (governo, instituições públicas, sociedade civil e, em particular, empresas tecnológicas) no espaço público um esforço de discussão e de consensualização das medidas consideradas prioritárias à criação de um adequado ambiente de segurança, confiança e previsibilidade em que todos saibamos exatamente qual o destino e a utilização dos dados que diariamente, seja em ambiente real seja em ambiente virtual, fornecemos às mais diversas entidades.

Esse é, porventura, um dos mais importantes debates a que, no curto prazo, nos deveremos propor, seja em prol de uma maior transparência na relação das empresas e entidades públicas com os cidadãos, seja igualmente em benefício de uma mais efetiva (e desejada) proteção da privacidade dos dados relativos a todos e a cada um de nós.

Mário Tavares da Silva

 

 

 

No princípio era o verbo…


Assistimos ao crescimento de um verdadeiro mercado digital de compra e venda de dados que tendemos a confiar a quem os solicita


“Consentir” é, provavelmente, nos tempos de profunda e intensa revolução digital que vivemos, o verbo que mais se atravessa no nosso caminho.

Ainda há bem pouco tempo, quando me preparava para satisfazer mais um dos meus incontroláveis impulsos consumistas, acrescentando mais um livro à já minha extensa estante (por vezes questiono-me, sinceramente, se nesta vida terei tempo para os ler a todos…mas, na dúvida, vou continuando a comprar…), a diligente funcionária que me atendia, perguntou-me se já tinha cartão de cliente, ao que retorqui amavelmente dizendo que não.

Perante as vantagens do mesmo, que depressa se apressou a debitar, não hesitei. Avançámos então para o miraculoso cartão de cliente.

Pediu-me os elementos… os do costume…nome, morada, telefone e, se possível, um e-mail para futuras divulgações literárias e outros eventos. Anui e dei-lhe a informação pretendida.

Concluída esta simples operação, e quando me preparava já para agarrar no meu livrinho e vir embora, qual não foi o meu espanto quando vi sair da máquina colocada em cima do balcão um papel que, e não estou a exagerar, teria certamente a extensão próxima daquelas faturas de hipermercado em vésperas de Natal, com uma letra tão pequena que, se fosse lida, demoraria seguramente mais tempo do que o livro que acabara de comprar…

“Preciso que me assine aqui, por favor, em como consente na utilização dos seus dados”… disse melodiosamente a zelosa funcionária, ao mesmo tempo que esticava o longo papel que a máquina acabara de imprimir…

Fiquei sem pinta de sangue, ganhei coragem e perguntei se era mesmo necessário…ao que ela, simpaticamente, respondeu “faz parte das condições de utilização do cartão de cliente…!”

Ou seja, ou era assim ou bem podia dizer adeus ao miraculoso cartão de cliente…

Esta pequena história, experienciada na primeira pessoa, serve para ilustrar um dos principais problemas com que hoje nos defrontamos quanto à utilização, abusiva refira-se, que as empresas em geral fazem dos dados que nós, na maior parte dos casos de forma pouca ou nada esclarecida, tendemos voluntariamente a fornecer.

Mas é uma história que se repete em múltiplas plataformas disponíveis online que oferecem bens e serviços a troco, claro está, do respetivo pagamento e do preenchimento prévio de pesados formulários requerendo informação diversa, ena maior parte dos casos sensível, do comprador e das suas preferências consumistas.  

Existe, por detrás destas plataformas, um modelo de negócio estruturado e de elevada eficácia, envolvendo as mais insuspeitas empresas na prossecução de um objetivo principal que passa, em boa verdade, não tanto por vender bens ou serviços mas sim por obter dados e informação diversas, relativos aos perfis de consumo dos respetivos utilizadores para, ato contínuo, os vender a outras empresas vampiras, por valores inimagináveis.

Ora tudo isto faz com que os nossos dados sejam encarados como um dos mais valiosos bens atualmente transacionados no mercado, sem qualquer controlo ou regulação, permitindo às empresas que os detém, preparar e dirigir eficazmente publicidade personalizada e, por essa via, maximizar pornograficamente os seus já consideráveis lucros. Essas empresas recolhem a informação que lhes chega, tendo por base os inúmeros formulários que preenchemos online quando aderimos a um determinado website ou quando compramos o último CD do Post Maloneou, ainda, quando concordamos com a política de cookies na visualização de um inovador e apelativo site de robótica.

Assistimos pois, pelos dias que correm, ao crescimento de um verdadeiro mercado digital de compra e venda de dados que atua, impune e sem regulação, comercializando massivamente, de forma ínvia, inapropriada e despudorada, a informação que de boa-fé, todos e cada um de nós, tendemos a confiar a quem no-la solicita.

O quadro é agravado pois a utilização do serviço ou do website é condicionada ao nosso prévio consentimento sendo que este ou é total ou, não o sendo, nada feito.

Urge, nesta medida, iniciarmos todos (governo, instituições públicas, sociedade civil e, em particular, empresas tecnológicas) no espaço público um esforço de discussão e de consensualização das medidas consideradas prioritárias à criação de um adequado ambiente de segurança, confiança e previsibilidade em que todos saibamos exatamente qual o destino e a utilização dos dados que diariamente, seja em ambiente real seja em ambiente virtual, fornecemos às mais diversas entidades.

Esse é, porventura, um dos mais importantes debates a que, no curto prazo, nos deveremos propor, seja em prol de uma maior transparência na relação das empresas e entidades públicas com os cidadãos, seja igualmente em benefício de uma mais efetiva (e desejada) proteção da privacidade dos dados relativos a todos e a cada um de nós.

Mário Tavares da Silva