“Quero um primeiro-ministro/ pra comer ao pequeno-almoço” bem podia ser um pedido feito por Hannibal Lecter, mas esta ordem é dada com o sotaque portuense de António Pedro Ribeiro, vocalista dos Sereias, na faixa Primeiro-Ministro, disponibilizada online a 25 de setembro, em plena campanha eleitoral para as legislativas portuguesas. Estava lançado o manifesto anarco-punk da banda que amanhã, 5 de novembro, lança o seu primeiro álbum: O País a Arder.
“Esta letra já é antiga, do tempo do Sócrates. Não se aplica só a um primeiro-ministro, não se aplica só ao Costa”, explica António Pedro ao i. “Queria pôr em causa todos os poderes e hierarquias”, diz. “Neste caso, [a música] põe em causa um sistema de poder que vigora em Portugal há décadas”.
Estamos no campo, portanto, da música de intervenção com uma crítica intemporal. Os Sereias enquadravam-se bem tanto no 25 de Abril (atentar na música FP-25 – Forças Populares 25 de Abril), como na altura em que o FMI entrou em Portugal para tentar resolver a crise financeira, ou, claro está, em 2019. “Podíamos ter aparecido antes, podíamos ter aparecido depois”, diz o vocalista, poeta, autor de 15 livros, candidato dos partidos PSR, Bloco de Esquerda e MRPP e ex-candidato à Presidência da República. Mas a questão que permanece é: porquê agora? “Tal como os Mão Morta e outras bandas que já vêm de trás, acho que, no fundo, somos uma resposta a estes tempos que correm. É o contexto português e mundial, é o tédio que se vive, a doença, as conversas de café desinteressantes que se têm tantas vezes, a imbecilidade da televisão, os programas da manhã e da tarde que nos infantilizam e nos tratam como atrasados mentais”, sustenta.
Os programas da manhã são um dos alvos do disco, aqui tratados na música Putas da TV : “Falais de curas de emagrecimento/ e de culinária/ sois as putas da tv”. Mas este não é o único tema nas letras ácidas e provocatórias de Ribeiro, que não se cansa de desferir farpas contra o estado político do país. “O país a arder/ e eu também/ o país a chorar/ e eu a enlouquecer”, pode ouvir-se na música que encerra o trabalho e que partilha nome com o álbum – as alusões ao fogo são, aliás, transversais ao projeto.
Livres e selvagens Nascidas da liberdade do jazz e da selvajaria do punk, as dez faixas que compõem O País a Arder (descritas pela banda como “jazz-punk pós-aquático”) são acompanhadas por um descontrolado saxofone (soprado por Julius Gabriel, que ainda tem o seu projeto em nome próprio e empresta os seus serviços a bandas como os Glockenwise ou os Solar Corona); o sintetizador cósmico de Nils Meisel; os acordes punk rock de Sérgio Rocha; e uma secção rítmica, composta por João Pires (bateria) e Tommy Luther Hughes (baixo), que de alguma forma tenta oferecer coesão a toda esta loucura.
Uma loucura que precisa de contexto e, como tal, passemos à história da banda. Os Sereias foram formados por João e Tommy, amigos que tocam juntos desde a infância, quando regressaram a Portugal depois de terem vivido uns anos em Inglaterra. “Convidámos o Sérgio Rocha para vir tocar guitarra e o António Pedro para declamar uns poemas. A ideia era fazermos umas jams e improvisarmos com alguma regularidade, e perceber se resultávamos como banda”, esclarece o baterista. “Quando nos apercebemos do que se estava a passar na sala de ensaio quisemos marcar logo um concerto e tivemos de arranjar um nome à pressa”, conta entre risos.
A improvisação (que tão bem pode ser sentida ao longo do álbum) é um pilar na identidade da banda. “Nos ensaios fazemos, exatamente, o mesmo que nos concertos”, explicou João Pires. “Os poemas do Pedro já estão escritos, mas ele não nos diz quais vai declamar. Nós estamos a tocar e ele vem atrás de nós ou nós vamos atrás dele”. No entanto, a espontaneidade não fica encerrada no estúdio. “O que ouves no álbum nunca mais vai ser tocado da mesma maneira. Os poemas vêm sempre com uma ideia diferente, o Sérgio nunca repete aquilo que faz na guitarra nem o Nils. Ou seja, o Primeiro-ministro que ouves no álbum nunca mais foi tocado da mesma maneira”.
O País a Arder será apresentado ao vivo, no dia 29 de novembro, no Understage do Rivoli, Porto, e no dia 5 de dezembro no Sabotage, em Lisboa. Eles prometem que será qualquer coisa assim: “Loucura/ outra vez a loucura”.
*Editado por Mariana Madrinha