Sonata para clarinete e explosivos

Sonata para clarinete e explosivos


Itália é o segundo centro europeu de criação e produção de BD. Vieram dali, entre muitos outros,Corto Maltese, Tex, Valentina… e o Superpato


Depois do universo franco-belga, a Itália é o segundo centro europeu de criação e produção de BD com projeção global. Vieram dali, entre muitos outros, Corto Maltese, Tex, Valentina… e o Superpato.

Dylan Dog, criado em 1986 por Tiziano Sclavi (Broni, Pavia, 1953), um escritor à procura de leitores, é uma personagem curiosa: antigo agente da Scotland Yard, passa a trabalhar por conta própria, deslindando casos em que o paranormal faz as suas aparições. Calmo (detesta armas) e morigerado (não bebe nem fuma), tem um fraco por mulheres, que se sucedem quase à cadência de uma por história. No mais, é um tipo reflexivo que gosta de ler e tocar clarinete, chegando a fazer um dueto com Woody Allen… Contudo, o seu tema preferido não está no dixieland mas na sonata Il Trillo del Diavolo, do compositor setecentista Giuseppe Tartini – ou melhor, da autoria do próprio Satanás, que em sonhos o visitou, executando a composição que ficaria também conhecida como a “Sonata do Diabo”. Nada de admirar, para um detetive do pesadelo. A acompanhar Dylan Dog temos um auxiliar com cara, nome e chistes à Groucho Marx.

Apesar de ser um dos fumetti mais populares em Itália, com cada revista a atingir um milhão de exemplares de tiragem nos tempos áureos, entre nós, Dylan Dog é pouco conhecido, como a generalidade da BD italiana, com as assinaláveis exceções.

Em Até que a Morte Vos Separe, de 1996, Sclavi desenvolveu uma ideia de Mauro Marcheselli, recuando aos tempos da polícia londrina e aos ataques e retaliações perpetrados pelo IRA na capital inglesa. Estava-se ainda a dois anos da assinatura do Acordo de Paz de Sexta-Feira Santa, e os atentados faziam vítimas, em especial entre os representantes do Estado, que por sua vez reprimia com condições carcerárias duríssimas, contra as quais se insurgiram Bobby Sands e outros prisioneiros independentistas irlandeses, numa greve de fome histórica e fatal. Dylan conhece Lillie Connolly, uma irlandesa do Ulster a viver em Londres, militante daquela força paramilitar, sob disfarce. No entanto, apesar das mortes e das prisões, o dramatismo é moderado q.b., não só porque a menina é assombrada por visões, o que opera uma quebra no realismo da narrativa, como há pormenores de série humorística – veja-se aquele ponto de interrogação desenhado sobre a cabeça dum rato, numa das cenas passadas nos esgotos da cidade. Os registos realista, onírico e humorístico interpenetram-se, o que não tem mal, desde que o leitor, como é de bom uso, estabeleça com os autores o pacto da suspensão voluntária da descrença.

Bruno Brindisi (Salerno, 1964), não obstante algum tradicionalismo na disposição das vinhetas – convém lembrar que Dylan Dog se destina, antes do mais, ao grande público –, é um desenhador de assinaláveis recursos, como se verifica, logo na capa, no trabalho sobre o véu da noiva.

 


 

Dylan Dog – Até que a Morte Vos Separe

Texto: Mauro Marcheselli e Tiziano Sclavi

Desenho: Bruno Brindisi

Editora: G-Floy Studio, 2019

 

Uma folha de papel

Com Winsor McCay (1867-1934), os quadradinhos atingem a maturidade gráfica. Little Nemo in Slumberland, a sua mais célebre criação, estreou-se a 15 de outubro de 1905, no New York Herald. Cada prancha é um prodígio de imaginação e cor, e nunca mais se foi tão longe na disposição de uma narrativa em imagens. Jean Giraud / Moebius foi um dos muitos que aqui vieram beber.

A página é encimada por uma vinheta a toda a largura, espécie de friso ao gosto Arte Nova, que dá o mote: Morfeus, rei do País dos Sonhos, envia emissários a Nemo; e lá vai ele, até acordar, por vezes no chão. Há ocasiões em que, em vez de quadradinhos estanques, o mesmo desenho se prolonga, dando a ilusão de várias vinhetas – por exemplo, entre os vãos dos pilares de uma ponte. Esta linguagem, hoje comum, era nova no dealbar do séc. XX. Aliás, como notam os críticos, o caminho fazia-se à medida que o caminhante vencia cada etapa. No álbum que temos em mãos, esse work in progress é particularmente visível: nas pranchas iniciais, McCay, embora recorresse à filactera (o “balão”), introduzia texto sob a vinheta, uma redundância que só atrapalhava a fruição da beleza dos desenhos, a riqueza da composição e a inventiva das histórias que pretendia contar. Ao fim de 20 pranchas, essa excrescência será eliminada, dando a margem indispensável ao leitor para seguir a narrativa sem outra condicionante que não fosse a materialidade sobre a qual se aplica uma história em quadradinhos: uma folha de papel.

 

O Pequeno Nemo no País dos Sonhos – vol. I:1905-1907

Texto e desenho: Winsor McCay

Editora: Livros Horizonte, Lisboa, 1990