O consenso jurídico


O Parlamento insistiu e Marcelo promulgou o diploma que permite o acesso aos metadados. Ao que parece, colocar serviços de informação a violar a privacidade dos cidadãos é a melhor forma de proteger os seus direitos fundamentais…


Já há bastante tempo que os serviços de informação pretendem ter acesso a metadados relativos aos cidadãos fora do quadro de uma investigação criminal, pretensão essa que contende claramente contra o disposto no art. 34º, nº4, da Constituição. Efectivamente essa disposição proíbe expressamente “toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”. Precisamente por isso, no Acórdão 403/2015, de 17 de Setembro, o Tribunal Constitucional tinha declarado inconstitucional o acessos dos cidadãos a esses dados, após pedido de fiscalização preventiva por parte do então Presidente da República, Cavaco Silva.

O Parlamento viria, porém, a insistir em permitir aos serviços de informação o acesso a esses metadados, só que desta vez o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, promulgou o diploma sem suscitar qualquer fiscalização preventiva da constitucionalidade. Na sua mensagem a justificar a promulgação salientou o “consenso jurídico atingido, tendo em vista ultrapassar as dúvidas que haviam fundamentado anteriores pedidos de fiscalização preventiva da constitucionalidade”, bem como a “relevância do regime em causa para a defesa do Estado de Direito Democrático, em particular para a proteção dos direitos fundamentais”. Como tem vindo a ser o paradigma das decisões presidenciais de promulgação, a anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional é desconsiderada perante a descoberta de um novo “consenso jurídico” e descobrem-se realidades novas como a de que colocar serviços de informação a violar a privacidade dos cidadãos é afinal a melhor forma de proteger os seus direitos fundamentais.

E assim o diploma foi promulgado e entrou em vigor, tornando-se a Lei Orgânica 4/2017, de 25 de Agosto. O art. 3º desta Lei dispõe que “os oficiais de informação do SIS e do SIED podem ter acesso a dados de base e de localização do equipamento para efeitos de produção de informações necessárias à salvaguarda da defesa nacional, da segurança interna e da prevenção de atos de sabotagem, espionagem, terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça e criminalidade altamente organizada e no seu exclusivo âmbito”. Já o seu art. 4º estabelece que “os oficiais de informações do SIS e do SIED apenas podem ter acesso a dados de tráfego para efeitos de produção de informações necessárias à prevenção de atos de espionagem e do terrorismo”. Passou a ser assim permitido aos serviços de informação o acesso aos metadados em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Mas infelizmente há gente mais céptica relativamente ao consenso jurídico atingido e trinta e cinco deputados descrentes resolveram pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização sucessiva dos referidos arts. 3º e 4º da Lei Orgânica 4/2017. Esperava-se que, apesar da sua anterior jurisprudência, o Tribunal Constitucional rejeitasse esse pedido e não pusesse em causa o consenso jurídico tão doutamente proclamado pelo Presidente da República. Mas o Tribunal Constitucional lamentavelmente também não encontrou consenso jurídico algum e no seu Acórdão 464/2019 declarou parcialmente inconstitucionais estas disposições, apenas permitindo o acesso a dados de base e de localização para efeitos de produção de informações necessárias à prevenção de actos de sabotagem, espionagem, terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça e criminalidade altamente organizada. Aliás, a falta de consenso jurídico ocorreu entre os próprios juízes-conselheiros, não tendo havido um único juiz, nem sequer o relator, que não tenha apresentado uma declaração de voto ao referido acórdão.

Essa falta de consenso entre os juízes foi aliás de tal ordem que nem sequer se entenderam sobre o texto do projecto de acórdão, acabando a relatora inicial por renunciar ao cargo por não aceitar incluir modificações ao seu projecto e não ter sido aceite o seu pedido para ser designado outro relator. Independentemente de quem tenha razão nesta querela, é absolutamente lamentável que uma questão desta ordem provoque uma demissão no Tribunal Constitucional, enfraquecendo a sua capacidade para exercer a fiscalização da constitucionalidade das leis.

Em qualquer caso, o resultado deste processo é que durante dois anos as secretas tiveram acesso a metadados em condições que agora foram consideradas inconstitucionais. Ora, a fiscalização preventiva da constitucionalidade existe precisamente para se evitar esse tipo de situações. Não é invocando um consenso jurídico, pelos vistos absolutamente irreal, que se protegem os direitos fundamentais dos cidadãos.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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