Chiara Manfletti, a ítalo-alemã que lidera a agência espacial portuguesa – ou Portugal Space -, divide o seu tempo entre o que virá a ser o porto espacial na ilha de Santa Maria, nos Açores, e as instalações em Lisboa, no Palácio das Laranjeiras, onde nos sentámos com ela. Manfletti é graduada em Engenharia Aeronáutica em Londres e em Estudos Espaciais em Estrasburgo, tendo passado os últimos anos como assessora na sede da Agência Espacial Europeia (ESA na sigla inglesa), em Paris. Nunca deixou de “querer ir a lugares maravilhosos”, mas o que a manteve ao longo dos anos agarrada às ciências espaciais foi o potencial para criar soluções para os problemas terrestres, seja através de sistemas de navegação para veículos autónomos, deteção remota de incêndios, monitorização da erosão costeira ou prevenção de catástrofes naturais. Nunca esquecendo o poder do espaço para fazer pontes através de fronteiras, incentivando à cooperação internacional. E é esse um dos objetivos expressos da Portugal Space, um polo da Agência Espacial Europeia. “Como se pode ver no facto de eu não ser portuguesa, sou italiana e alemã”, salientou Manfletti, que se vê sobretudo como “uma cidadã europeia”. E não consegue imaginar-se no mundo de outra maneira.
Quão exigente é o processo de encabeçar a formação de uma nova agência espacial?
De facto, é exigente, mas é um momento maravilhoso. Montar uma agência espacial de certa maneira parece como montar uma startup mas, por outro lado, significa liderar uma estratégia à escala nacional. É uma mistura incrível, que consome muito tempo mas é absolutamente fascinante.
Até agora, considera esses esforços bem-sucedidos?
Começámos há pouco tempo, ainda é difícil parar e olhar para trás. Nem tens tempo de parar, só queres seguir em frente. Mas as coisas estão a avançar depressa, passo a passo.
Em que áreas da exploração espacial Portugal pode dar maior contributo?
Portugal pode fazer muitas coisas. Uma das coisas incríveis que descobri é que, das indústrias que temos, algumas são especializadas no espaço, mas muitas são multidisciplinares, ou seja, têm uma base tanto no setor espacial como não espacial. O investimento no espaço pode contribuir para o sucesso de muitos outros setores. Ter à partida uma indústria que já liga os diferentes setores é ótimo. Queremos fazer mais na observação da Terra, tanto contribuindo para os grandes satélites como fornecedores como desenvolvendo sistemas mais pequenos, como nanossatélites, para complementar os dados que recebemos dos satélites maiores, que têm maiores períodos de revisita (observações mais espaçadas do mesmo ponto). Lançar satélites mais pequenos, através da nossa atividade no porto espacial que temos nos Açores, é uma área em que Portugal pode trazer uma contribuição enorme para democratizar o acesso ao espaço. Mas também o poderá fazer noutras áreas que tenham a ver com as interações entre o espaço, a Terra, os oceanos, o clima, por causa da posição estratégica de Portugal no Atlântico, das indústrias e do conhecimento que temos dos oceanos.
Falou anteriormente da possibilidade de deteção de incêndios do espaço. Pode falar-nos um pouco disso?
Bem, não é um programa específico, mas é algo que podemos pensar fazer, enquanto país, porque é uma necessidade específica que temos. Com os incêndios, a dificuldade é que eles se desenvolvem muito rápido. O que se pode fazer é criar elementos de prevenção. Monitorizando constantemente, é possível ver se a floresta se está a desenvolver demasiado próxima de locais urbanos, se é preciso desmatar, que compostos estão na água, etc. Podemos questionar-nos: “As condições estão a começar a ficar críticas para um incêndio se desenvolver?” É a maneira de começarmos a preparar-nos, bem como preparar os serviços de emergência. Por outro lado, importa ter tanto detetores in situ como satélites com períodos de revisita mais curtos. E especializados em observar que tipo de vapores surgem, perceber se é só vapor de água ou um incêndio… Estamos a tentar desenvolver tanto satélites mais pequenos como outras coisas. Não posso dizer que tenhamos um projeto ou produto concreto em cima da mesa, mas é algo que vemos com grande entusiasmo.
A tecnologia já existe ou teria de ser desenvolvida de raiz?
Há uma missão chamada Rosetta, concebida pela ESA com todos os Estados- -membros, para visitar um cometa, para responder à questão de onde vem a água da Terra, porque não sabemos de onde vem. O objetivo é observar e analisar a água noutros corpos celestes, como os cometas, e perceber se a água vem de cometas. Os cometas são muito escuros. São cinzento-escuro, cinzento muito escuro, pretos, quase cor de carvão… até se poderia dizer que são de muitos tons de cinza [risos]. Houve uma câmara que foi especificamente desenvolvida para reconhecer estes diferentes tons. Essa câmara, por exemplo, pode ser instalada para monitorizar a floresta, para detetar a diferença entre vapor de água, fumo, o que seja. Há muita transferência de tecnologia desenvolvida para o espaço. [Aponta para o teto] Vê aquele detetor de fumo? Os detetores de fumo foram desenvolvidos nos tempos do programa Apollo.
A sério?
Sim, houve uma missão Apollo, logo a primeira, em que três astronautas morreram por causa de um incêndio. Desenvolveram-se detetores de fumo para garantir que não voltaria a acontecer. É um desenvolvimento vindo diretamente da atividade espacial.
Mencionou que o desenvolvimento espacial pode ajudar as indústrias portuguesas. De que modo?
Transporte marítimo autónomo, por exemplo, poderia ser uma grande ajuda para Portugal. Significa que haveria navios autónomos, com otimização do combustível que usam e das rotas que seguem – ou seja, com baixo consumo. Ao serem independentes, poderiam ser usados para fazer todo o género de coisas. Mas, para isso, precisam de sistemas de comunicação, serviços de navegação e observação da Terra, para saber por onde navegar. É algo que poderia dar bastantes benefícios a Portugal, especialmente se pensarmos na segurança dos navios. Nem todos os navios são bons navios, por isso têm de ser protegidos, e para isso podemos usar observação a partir do espaço.
Em que outras áreas lhe parece haver vantagens?
Estive há algum tempo em Santa Maria, nos Açores, e vi como podemos fazer muito com a informação obtida do espaço. Avisos antecipados para a erosão costeira, pensar em prever erupções vulcânicas… As erupções não são um problema para o Continente, mas são para os Açores. Do mesmo modo que os incêndios não são um problema para os Açores, mas são para o Continente. O primeiro grande avanço nas ciências espaciais foi reconhecer que podemos conseguir informação do espaço e usá-la. O próximo avanço chegará quando usarmos o espaço proativamente para enfrentar as dificuldades na Terra. Prevendo eventos catastróficos que podem causar perda de vidas, garantindo que podemos agir antes de acontecerem…
Os meios que lhe foram dados são os adequados para estas tarefas?
O primeiro grande meio são as mentes das pessoas, a capacidade, o entusiasmo. E Portugal tem muito disso para oferecer. Todo o ecossistema é muito dinâmico, muito aberto a avançar rapidamente. Por isso, sim.
E em termos de financiamento, de logística?
Em termos de logística, tenho este gabinete maravilhoso [risos], a sede será em Santa Maria. Mas seria bom ter voos mais frequentes entre Lisboa e Santa Maria, sem ter de parar em Ponta Delgada. Isto é algo de que teremos de voltar a falar. Mas as coisas vão desenvolver-se.
Um dos objetivos da agência é incentivar empresas privadas a investir no espaço. Já tiveram sucesso nessa área?
Estamos em discussões com muitas empresas, muitas das quais não estão estritamente relacionadas com o espaço. De momento, o objetivo é estabelecer contactos e consciencializar. Posso dizer que estamos no caminho certo.
De momento, que tipo de regulações há para este tipo de empresas?
Há uma lei espacial já desenhada. A nossa autoridade reguladora nacional é a Anacom, e está em curso o processo de elaborar as regulações. Haverá outras considerações a tomar, por exemplo acerca de seguros, mas isso é algo que será feito pelo Governo.
De todos os programas em curso, de qual se orgulha mais?
Considero-os todos muito interessantes, cada um deles tem aspetos fantásticos. Gosto do porto espacial, porque é sobre acesso ao espaço e permite tudo o resto. Gosto da pesquisa da observação da Terra a partir do espaço, por todos os motivos de que lhe falei antes. Sem comunicação não se consegue fazer nada, sem se construir capacidade, estimular pessoas, entusiasmar crianças, jovens, garantir que há emprego… Cada aspeto do trabalho tem a sua importância. E dá um orgulho particular.
Dá para sentir o seu entusiasmo. Numa nota mais pessoal, como se tornou tão interessada no espaço?
Boa questão. Bem, quando era criança tinha um livro sobre os planetas. Lia-o e relia-o imenso. Mas também comecei a interessar-me por animais, em miúda queria tornar-me veterinária… não sabia muito bem o que fazer. Quando cresci descobri a aeronáutica e comecei a ficar mais interessada em chegar ao espaço. Fui descobrindo mais e mais sobre o que se pode fazer em exploração espacial. É isso que nos inspira primeiro: explorar as fronteiras dos planetas, do universo, de tudo o resto. Sou o típico caso de quem apanhou o bichinho do espaço [risos], de querer ir a lugares maravilhosos. E depois descobri as coisas fantásticas que o espaço pode fazer pela Terra. Foi isso que me manteve agarrada.
A Agência Espacial Portuguesa tem a particularidade, relativamente a agências mais autónomas, como a alemã ou a francesa, de ser um polo da ESA.
Não diria que as agências espaciais da França e da Alemanha são mais autónomas. Todas as agências espaciais têm igual autonomia. A Agência Espacial Portuguesa é uma agência nacional. Mas uma coisa que Portugal sempre disse – como se pode ver no facto de eu não ser portuguesa, sou italiana e alemã – é que quer uma colaboração extremamente próxima da Europa, e de todos os outros países, através da ESA. Ser um polo da ESA não é uma perda de autonomia, mas sim um contacto mais próximo com o resto da Europa. Eu vejo isso como um grau adicional de liberdade, porque decidimos não fazer as coisas apenas numa base nacional, mas com todos os outros, num contexto europeu.
Uma agência espacial portuguesa teria sido possível sem esta colaboração?
Pelo que tenho visto em desenvolvimentos anteriores, o financiamento dado pela filiação na ESA foi fundamental para desenvolver consciência do que o setor espacial pode fazer a nível de construção de capacidade no país. Na minha opinião, foi instrumental para Portugal juntar-se à ESA a 14 de novembro de 2000, já lá vão quase 20 anos. Não estava lá na altura mas, entretanto, vi como foi importante para fazer as coisas acontecer.
A exploração do espaço pode ter um papel no incentivo a uma maior cooperação internacional?
Sim. Por exemplo, a Europa, de momento, não tem veículos capazes de transportar humanos para o espaço (human-rated access). Ou seja, dependemos dos nossos colegas russos e, de momento, porque o shuttle já não voa, até a NASA e os Estados Unidos estão dependentes dos russos. Poderia dizer-se que não é uma boa dependência, porque não somos autónomos. Por outro lado, significa que fazemos coisas juntos. Durante a crise na Crimeia, ainda assim havia astronautas a serem lançados – russos, americanos, europeus, independentemente da crise. O espaço tem o poder maravilhoso de fazer pontes através de fronteiras, apesar de dificuldades políticas e crises terrestres. Em termos de colaboração internacional, é fantástico. Quanto tentamos enfrentar problemas globais, alterações climáticas, ou levar humanos ao espaço… nisso, a prioridade número um é levar as pessoas até lá acima, e depois cá para baixo, em segurança, não importa se são chineses, russos, europeus, o que seja. São humanos, somos nós. Isso faz parte das razões pelas quais acho o espaço tão fascinante.
Acha que o seu percurso pessoal e académico, tão internacional, a qualifica particularmente para fomentar esta cooperação?
Não sei se me faz mais capaz, porque não conheço as outras pessoas que o poderiam ter feito. Mas considero-me uma cidadã europeia e não consigo imaginar-me num mundo diferente do que é hoje. Gosto de construir pontes. Não sei se isso me torna mais capaz, mas certamente tenho muita, muita vontade.