A demora no acesso a medicamentos inovadores por parte dos portugueses é um dos alertas da edição deste ano do Relatório da Primavera, que propõe um conjunto de dez medidas para que se passe a antecipar melhor os ciclos de introdução de inovação no mercado, envolver mais os doentes e definir um quadro orçamental de decisão plurianual que ligue a inovação no SNS à sustentabilidade do financiamento. E para separar avaliação técnica das decisões de comparticipação, o observatório defende que o Infarmed passe a ser uma entidade reguladora independente, deixando de estar na dependência hierárquica do Ministério da Saúde.
O observatório analisou a evolução das moléculas inovadoras autorizadas em Portugal e conclui que, na última década, houve “flutuações significativas”, determinadas também por ciclos de contenção de custos no SNS, nomeadamente no período de ajustamento. Ainda assim, a demora no acesso à inovação mantém-se já depois da saída da troika, concluem, citando um estudo comparativo realizado pela associação europeia da indústria farmacêutica, que revela que Portugal surge no terceiro lugar em termos de demora no acesso a inovação.
A espera foi seis vezes mais longa do que o país com o tempo de espera mais curto no período de 2014 a 2016, a Alemanha, país que registou 106 dias de espera entre a autorização de introdução no mercado – concedida centralmente pela Agência Europeia do Medicamento – e a medicação começar a ser dispensada aos doentes, o que em Portugal implica uma avaliação prévia por parte do Infarmed e a decisão de comparticipação pelo ministério. Já entre 2015 e 2017, a espera em Portugal foi cinco vezes mais longa, mas porque a Alemanha piorou o resultado: em Portugal continuam a registar-se mais de 600 dias de espera. O relatório indica ainda que, comparando com Espanha, país com mercado “mais comparável e próximo” ao nacional, Portugal teve um desempenho 1,7 vezes pior entre 2014 e 2016 e 1,6 vezes pior entre 2015 e 2017.
Rogério Gaspar, porta-voz do observatório, professor na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa e especialista em regulação do medicamento, sublinha que, embora possa haver ajustes nestes tempos relacionados com o facto de os processos serem interrompidos quando alguma das partes – regulador ou farmacêutica – é chamada a dar informação, estes são processos comuns em todos os países e os indicadores que permitem uma comparação europeia revelam que em Portugal a espera é “muito superior” ao referencial mínimo. “É um pouco difícil continuar a dizer a um cidadão português que tem de esperar seis vezes mais do que um alemão por um medicamento aprovado a nível centralizado na Europa, quando essa informação está disponível.”
É nesse sentido, explica, que pretendem lançar o debate sobre o Infarmed poder funcionar como uma entidade reguladora independente, sendo que o relatório deixa ainda a sugestão de se equacionar uma eventual junção com a Entidade Reguladora da Saúde. “É um debate que tem acontecido sobretudo entre peritos nos últimos anos, mas que deve vir para cima da mesa. Pensamos que iria aumentar a transparência do processo, uma vez que é o Governo que fixa o preço e a comparticipação e o Infarmed faz uma avaliação técnica. Pode levar a uma perpepção duvidosa a entidade que realiza uma avaliação técnica estar sob a dependência hierárquia da entidade que define o preço e a comparticipação”, diz. Por outro lado, Gaspar defende que a autonomia financeira desta futura entidade, sendo que as taxas hoje cobradas pelo regulador não podem ser investidas em equipamentos analíticos e recursos humanos, poderia contribuir para uma maior eficiência da agência do medicamento nacional, tornando assim os processos mais céleres.
“Falta de informação” no caso Matilde
Nas últimas semanas, o caso de Matilde, a bebé que nasceu com atrofia espinhal muscular, chamou a atenção para o acesso a medicamentos inovadores no país. Gaspar considera que houve “falta de informação e de pedagogia” no debate público. Sempre que qualquer medicamento está em fase de investigação e não tem autorização no mercado europeu, o médico, se entender que existe indicação para um caso específico, pede autorização excecional ao Infarmed e, sendo um tratamento hospitalar, é custeado pelo Estado. “É algo que está previsto na legislação há muitos anos”, sublinha Gaspar.
Diferente é pensar num futuro em que a inovação aprovada a cada ano será crescente. “É preciso antecipar os ciclos de inovação, planear o financiamento e garantir transparência na avaliação. Se a decisão de um Governo for não comparticipar, o medicamento está no mercado europeu e os hospitais podem comprá-lo, pagando a totalidade ou até repercutindo o custo no doente, uma situação que nunca tivemos cá porque tem havido uma gestão com bom senso e de forma equilibrada. O problema é que, se confiarmos sempre no bom senso, há uma altura em que nos vai atraiçoar.”