Jorge de Sena, Camões e a Literocambada

Jorge de Sena, Camões e a Literocambada


2019 é o ano em que se assinala o centenário do nascimento daquele que, sem complacência alguma, deu pontapés no rabo da “literocambada”, transformou Camões num seu contemporâneo e fez dele o seu grande interlocutor.


A data é redonda como um seixo: 100 anos, que a 2 de Novembro se completam, sobre o nascimento de Jorge de Sena. Quase tudo o resto se furta à lisura e à regularidade, a começar pela atenção crítica que o autor tem recebido ou pelas homenagens que lhe têm sido feitas. O seu próprio trajecto existencial, que o fez assumir o destino trágico de Camões, não rima com formas harmónicas: difícil, acidentado, peregrinante, eriçado de angulosas e tristes surpresas, incompreensões, impossibilidades. Tudo somado, faz avultar aquela “dor de haver nascido em Portugal / sem mais remédio que trazê-lo n’alma”.

Este “exilado profissional” nasceu em dia de Fieis Defuntos, mas cedo se rendeu à “glória de existir”. E existir, para Jorge de Sena, era vontade sobreaguda de intervir, disponibilidade para lutar contra a impotência, indignação face a infinita estupidez humana, protesto, resistência angustiada. E, nisto, a existência de Sena foi bem camoniana. Mas foi também gozo explosivo, apropriação da dimensão viva desta língua, que sempre se abriu aos prazeres do humor, que em Sena mal se desenhava e já estava transformado em enérgica descarga verbal: “Ó cães da morte, que me uivais, mordeis! / Humanos-infra, que sois morte e cães!”. Do seu existir não excluiu o autor de “Metamorfoses” imagens desabridas e orgulhosas do “Desejado Túmulo”, nem o registo de epitáfios. À distância de quase quatro décadas do desfecho de uma vida de andanças e mágoas, já Jorge de Sena escrevia o seu primeiro “Epitáfio”: “Eu sou daquela espécie/ de quem se diz depois da morte:/ – a sua melhor obra foi morrer”.

Não calava insatisfações (que eram nele às bátegas), não evitava a fricção, não reprimia fúrias, e também não se resguardava em varandins de ocasião ou em simpatias de conveniência. Deixou, sobretudo em quem não o conheceu de perto, a imagem de um homem intempestivo, temível, impertinente, ríspido, intratável, às vezes de uma agressividade e uma contundência quase intoleráveis (enfim, o catálogo da sua negra reputação poderia estender-se mais e mais). Muito embora outras se lhe possam justapor, foi esta imagem, repetida pelos anos com algumas variações, que chegou até nós.

De uma tal figura, que partilhava com Camões uma muito inflexível espinha dorsal, não poderíamos esperar uma literatura de brisas e amenidades. Na sua vasta tábua bibliográfica raro é o título que não seja, a este respeito, todo um contrário programa. E basta citar uns poucos – dos mais emblemáticos: “Peregrinatio ad Loca Infecta”, “No Reino da Estupidez”, “Andanças do Demónio”, “Sinais de Fogo”. É verdade que a sua obra literária, e concretamente a obra de ficção narrativa, sabe acariciar os detalhes, como de resto recomendava Nabokov, mas ela não é propriamente o lulu que se possa afagar no colo. É um espécime indomável. E o mais provável é que a prosa se erice e os próprios versos se lancem às canelas. A “literocambada” nunca esteve a salvo. Escreve Sena num poema de “Visão Perpétua”: “Curioso: têm as bolsas e os empregos,/ os prémios e as histórias e os louvores da pátria,/ as editoras, as literárias páginas,/ os amigos fieis dizendo-os génios […] Hão apanhar/ ainda muito mais – no grande estilo/ com que em milénios a poesia deu / os pontapés devidos a uma tal cambada.”

A literocambada e a “cambada toda” (para não nos afastarmos dos seus termos) – essa que, entretanto, não parou de se unir e multiplicar, parasitando as instituições, trocando favores, permutando lugares, nunca Sena deixou de a interpelar, de fazer com ela uma conversa irritada. Para diálogos subidos e mais expansivos sempre preferiu Camões, cujo destino agregou ao seu sem nunca os confundir. Ao vate negou Sena a monumentalidade entorpecida, a lágrima fácil à portuguesa e até um dos raros tectos que a tradição lhe fixou: “Não biografei, imaginosa e eloquentemente, a figura célebre, chorando a alma minha, nadando com o manuscrito de fora, lendo Os Lusíadas ao rei, ou metido em uma gruta onde não cabe senão um anão.”

Dizer que Camões é uma presença tutelar na obra de Sena é uma afirmação que o título “Trinta Anos de Camões – 1948-1978”, exprimindo a permanência, a intensidade e o fascínio por essa figura ímpar da literatura portuguesa, se apressa a revelar insuficiente. Num texto escarninho de jornal, mais concretamente numa “entrevista sensacional”, dada numa altura que coincidiria com uma intensa e apaixonada frequentação crítica da obra camoniana, declarava Jorge de Sena: “os grandes como as catedrais não devem ser visitados todos os dias, ou acabamos tendo com eles confianças de sacristães irreverentes – abstive-me cautelosamente, durante anos, de voltar ao Príncipe dos Poetas das Espanhas. Apenas, de vez em quando, lhe fazia uma visita de cerimónia, para mantermos em bom pé de cortesia as nossas relações”. Quem desconhecesse a relação de intimidade, estranharia talvez que o poeta, em carta-poema a Grabato Dias (António Quadros), motivada pelo prefácio assombroso que escrevera para “As Quibirícas” se refira ao autor d’ Os Lusíadas como “o nosso amigo Luís”. Neste prefácio, que partilha com os ensaios críticos reunidos em “O Reino da Estupidez” (em dois volumes, claro está) o humor e a ironia, não faltam notas de sarcasmo, auto-ironia e até uma autoparódia ao método estatístico de que se serviu no admirável estudo “A Estrutura d’ Os Lusíadas”

 Íntimo de Jorge de Sena, pelo menos desde o início da década de 50, Camões é uma referência existencial, é o poeta com quem mais intensamente conviveu, com quem mais de perto dialogou. Caminhemos ao encontro de “Camões na Ilha De Moçambique”: “Não é de bronze, louros na cabeça/ nem no escrever parnasos, que te vejo aqui./ Mas num recanto em cócoras marinhas,/ soltando às ninfas que lambiam rochas/ o quanto a fome e a glória da epopeia/ em ti se digeriam”. O lugar e a posição em que vamos encontrar o cantor máximo das glórias de Portugal, numa vulgar produção, falar-nos-iam suficientemente dos desígnios desmistificantes de Sena, que nunca poupou esforços para re-humanizar Camões. E curioso é observar que neste célebre poema Camões pousa a mão, não numa espada, não numa pena, mas no próprio sexo, convertido em instrumento de construir pátria. Dissemos pousa e não repousa. Sem nada que o vista, que o abrigue, sem “as ideias” – e citamos já o célebre poema “Camões Dirige-se Aos Seus Contemporâneos”, o único monólogo dramático de toda a obra poética de Sena – “as palavras, as imagens,/ e também  as metáforas, os temas, os motivos, os símbolos”. Tudo roubado. Escandalosamente nu, numa produção própria de um qualquer Luís. Dir-se-ia que há neste poema uma dupla expulsão, sendo que aquela que cabe a Sena não tem menos significado. Sena expulsa do seu discurso poético um biografismo romanticamente imaginoso e uma retórica tradicional de glórias, alturas e grandezas,  que tantas vezes encobrem um Camões humano, nas suas fraquezas de homem comum, nas suas prosaicas produções. É este Camões – e não “o pastelão patriótico-clássico” – que é chamado, em epígrafes, num lastro de referências várias, a acompanhar a obra de Jorge de Sena.