Com o sol por dentro


Se o meu amigo José Vidal vendesse nostalgia, era milionário. Mas ele não precisa disso para que a vida seja para lá da vida


Tombo pelas escadas com a facilidade com que uma enguia se escapa do pescador pelos lamaçais do Sado. As escadas de minha casa, em Alcácer, são íngremes como as escarpas dos Himalaias e eu bem sei porque já escorreguei numas e noutras. Os estragos resumem-se ao pulso da mão direita pelo que resolvo reentrar em casa e escrever isto que vos deixo antes que efeitos secundários me embaracem os  movimentos do qwerty. Estico os dedos, faço-os estalar nos nós, e comento em voz baixa, sussurrante: «Partamos, então, na fascinante aventura da crónica…».

Roubo a frase ao meu já desaparecido camarada de trabalho António de Sousa, portuense, figura arredondada de Hercule Poirot de cabeça de ovo mas sem bigode. Era um tipo castiço. Passava metade do tempo na Lua e só isso justificou que, passados uns meses de irritantes ruídos no motor do seu automóvel, o tenha feito descer à Terra e, numa oficina qualquer, um mecânico tenha descoberto que guardava debaixo do capô o cadáver de um gato já com algum dose razoável de degradação.

Bom, antes de disparar pela escadaria, estava convencido de que estas linhas iriam ser dedicadas a Jorgen Hansen, um boxeur dinamarquês que lutou pelo título mundial de pesos pesados e era tão ou tão pouco pesado e tão ou tão pouco resistente que ganhou a alcunha de Gamla: Gamla Hansen, o Velho Hansen. Quando me ergui a custo para recolher a papelada que se espalhara até à saída para a Rua Rui Salema, apalpando cotovelos, joelhos e outras matérias que se encontram um pouco por todos os açougueiros do país, transformei o Gamla Hansen no Gamla Ven que é o José Vidal, camarada, companheiro, um daqueles irmãos que a vida fez o infinito favor de me oferecer e, de repente, a memória disparou em todas as direções._«Gamla ven!».

Eu e o Vidal falamos muito da morte. Falamos demasiado da morte. Imaginem o ridículo de se pensar na morte ao fim de 14 degraus! Era um insulto do pior para Eisenstein e para o seu Couraçado Potemkin, ainda que com cadeirinha de bebé a despencar-se da Escadaria de Odessa. E, já agora, acrescento que na Escadaria de Odessa mantive-me tão firme como a estátua de  Armand Emmanuel Sophie Septemanie du Plessis (Duque de Richelieu) que se conserva imóvel lá no topo. Não fiz concessões!

O Zé Vidal podia ficar milionário se vendesse nostalgia. Ele que na noite de Natal de 1968, porque não quis ir parar com os costados a Nambuangongo ,onde o meu tão querido mestre Manuel Alegre diz que não viste nada, e o meu outro tão querido mestre, Fernando Assis Pacheco, dizia que as bombas rebentavam nas mesas de cabeceira, desembarcou em Estocolmo para lá ficar até hoje, filhos, netos, e tudo e tudo. Foi confidente da Amália e um dia perguntou-lhe: «Por que gosto eu tanto de música italiana». E ela, em italiano: «Perché tu sei um romantico Giuseppe». Tem um passaporte assinado pelo Pavarotti e cantou fado com Carlos Paredes à guitarra, algo que a foto que vem adjunta não deixa mentir.

O Zé odeia a morte, como eu. Mas eu raramente falo da morte. Há uns dias, n’O Dinis, no Carvalhal, vendo o mar de um azul impossível, começou a fazer-me uma lista de todos aqueles que conhecemos na nossa existência tão comum e tão parceira que já faz com que tenhamos o mesmo sangue: Eusébio e Coluna, Fernando Mendes e Damas, Aurélio Márcio e Alfredo Farinha, Cruyff e Di Stéfano, Vítor Santos, Nuno Ferrari, António Capela, Carlos Pinhão (saravá!), Carlos Miranda, Cruz dos Santos, Homero Serpa, Margarida Ribeiro dos Reis, Carlos Silva, Vítor Campos, José Saramago, Baptista Bastos, Gervásio e Livramento, os carinhosos Viriato Mourão e Ramos Rosa, José Plácido e João Canena, agora até Camolas e mais e tal e tal e tal que temos a vida muito mais cheia de mortos dos que de vivos. Escuta Zé, o sangue que temos juntos não sei de que tipo é, mas sei que é positivo. Se soubesse cantar afinado, com voz de fazer tremer as pernas das senhoras da canasta, cantaria: «Gli amici miei son quasi tutti via/E gli altri partiranno dopo me/Peccato perché stavo bene/In loro compagnia/Ma tutto passa tutto se ne va…».

Um pouco por todo o mundo fomos atrás do futebol e dos jornais, das imagens e das histórias, daquilo que fez de  ambos habitantes do ponto mais alto da curiosidade e da ternura. A partir daí, não sei mais nada. «Che sarà che sarà che sarà?/Che sarà della mia vita chi lo sa?/So far tutto o forse niente/Da domani si vedrà/E sarà, sarà quel che sarà».

Sento-me na praia da minha infância porque todas as praias são espelhos da minha infância. Há, em todo o redor, a paz infinita de quem foi à procura das coisas ignorando os cantos que o mundo tem e as fronteiras erguidas pelos homens obscenos. Há sempre um poema, dizia o meu pai, há sempre um poema! E eu, que estava proibido de olhar o céu de frente, fixo-o sem vergonha porque ele vive para sempre dentro de mim.

afonso.melo@newsplex.pt


Com o sol por dentro


Se o meu amigo José Vidal vendesse nostalgia, era milionário. Mas ele não precisa disso para que a vida seja para lá da vida


Tombo pelas escadas com a facilidade com que uma enguia se escapa do pescador pelos lamaçais do Sado. As escadas de minha casa, em Alcácer, são íngremes como as escarpas dos Himalaias e eu bem sei porque já escorreguei numas e noutras. Os estragos resumem-se ao pulso da mão direita pelo que resolvo reentrar em casa e escrever isto que vos deixo antes que efeitos secundários me embaracem os  movimentos do qwerty. Estico os dedos, faço-os estalar nos nós, e comento em voz baixa, sussurrante: «Partamos, então, na fascinante aventura da crónica…».

Roubo a frase ao meu já desaparecido camarada de trabalho António de Sousa, portuense, figura arredondada de Hercule Poirot de cabeça de ovo mas sem bigode. Era um tipo castiço. Passava metade do tempo na Lua e só isso justificou que, passados uns meses de irritantes ruídos no motor do seu automóvel, o tenha feito descer à Terra e, numa oficina qualquer, um mecânico tenha descoberto que guardava debaixo do capô o cadáver de um gato já com algum dose razoável de degradação.

Bom, antes de disparar pela escadaria, estava convencido de que estas linhas iriam ser dedicadas a Jorgen Hansen, um boxeur dinamarquês que lutou pelo título mundial de pesos pesados e era tão ou tão pouco pesado e tão ou tão pouco resistente que ganhou a alcunha de Gamla: Gamla Hansen, o Velho Hansen. Quando me ergui a custo para recolher a papelada que se espalhara até à saída para a Rua Rui Salema, apalpando cotovelos, joelhos e outras matérias que se encontram um pouco por todos os açougueiros do país, transformei o Gamla Hansen no Gamla Ven que é o José Vidal, camarada, companheiro, um daqueles irmãos que a vida fez o infinito favor de me oferecer e, de repente, a memória disparou em todas as direções._«Gamla ven!».

Eu e o Vidal falamos muito da morte. Falamos demasiado da morte. Imaginem o ridículo de se pensar na morte ao fim de 14 degraus! Era um insulto do pior para Eisenstein e para o seu Couraçado Potemkin, ainda que com cadeirinha de bebé a despencar-se da Escadaria de Odessa. E, já agora, acrescento que na Escadaria de Odessa mantive-me tão firme como a estátua de  Armand Emmanuel Sophie Septemanie du Plessis (Duque de Richelieu) que se conserva imóvel lá no topo. Não fiz concessões!

O Zé Vidal podia ficar milionário se vendesse nostalgia. Ele que na noite de Natal de 1968, porque não quis ir parar com os costados a Nambuangongo ,onde o meu tão querido mestre Manuel Alegre diz que não viste nada, e o meu outro tão querido mestre, Fernando Assis Pacheco, dizia que as bombas rebentavam nas mesas de cabeceira, desembarcou em Estocolmo para lá ficar até hoje, filhos, netos, e tudo e tudo. Foi confidente da Amália e um dia perguntou-lhe: «Por que gosto eu tanto de música italiana». E ela, em italiano: «Perché tu sei um romantico Giuseppe». Tem um passaporte assinado pelo Pavarotti e cantou fado com Carlos Paredes à guitarra, algo que a foto que vem adjunta não deixa mentir.

O Zé odeia a morte, como eu. Mas eu raramente falo da morte. Há uns dias, n’O Dinis, no Carvalhal, vendo o mar de um azul impossível, começou a fazer-me uma lista de todos aqueles que conhecemos na nossa existência tão comum e tão parceira que já faz com que tenhamos o mesmo sangue: Eusébio e Coluna, Fernando Mendes e Damas, Aurélio Márcio e Alfredo Farinha, Cruyff e Di Stéfano, Vítor Santos, Nuno Ferrari, António Capela, Carlos Pinhão (saravá!), Carlos Miranda, Cruz dos Santos, Homero Serpa, Margarida Ribeiro dos Reis, Carlos Silva, Vítor Campos, José Saramago, Baptista Bastos, Gervásio e Livramento, os carinhosos Viriato Mourão e Ramos Rosa, José Plácido e João Canena, agora até Camolas e mais e tal e tal e tal que temos a vida muito mais cheia de mortos dos que de vivos. Escuta Zé, o sangue que temos juntos não sei de que tipo é, mas sei que é positivo. Se soubesse cantar afinado, com voz de fazer tremer as pernas das senhoras da canasta, cantaria: «Gli amici miei son quasi tutti via/E gli altri partiranno dopo me/Peccato perché stavo bene/In loro compagnia/Ma tutto passa tutto se ne va…».

Um pouco por todo o mundo fomos atrás do futebol e dos jornais, das imagens e das histórias, daquilo que fez de  ambos habitantes do ponto mais alto da curiosidade e da ternura. A partir daí, não sei mais nada. «Che sarà che sarà che sarà?/Che sarà della mia vita chi lo sa?/So far tutto o forse niente/Da domani si vedrà/E sarà, sarà quel che sarà».

Sento-me na praia da minha infância porque todas as praias são espelhos da minha infância. Há, em todo o redor, a paz infinita de quem foi à procura das coisas ignorando os cantos que o mundo tem e as fronteiras erguidas pelos homens obscenos. Há sempre um poema, dizia o meu pai, há sempre um poema! E eu, que estava proibido de olhar o céu de frente, fixo-o sem vergonha porque ele vive para sempre dentro de mim.

afonso.melo@newsplex.pt