José Cardoso Bernardes. “O ensino da literatura corre o risco de desumanização”

José Cardoso Bernardes. “O ensino da literatura corre o risco de desumanização”


O seu gabinete de director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, cargo que ocupa desde 2011, tem vista directa para a Eloquência, a Filosofia, a História e a Poesia, as quatro estátuas da fachada da Faculdade de Letras.


É ali que ocupa um lugar de professor catedrático de literatura portuguesa. Com os autores do século xvi mantém, de há muito, um diálogo próximo, assíduo, mantendo-os à distância das “nebulosas hermenêuticas”. A expressão é de Jorge de Sena, de quem muito falou ao i. O trato intimo, intenso com Gil Vicente e Camões não o impede de chegar à fala com modernos e contemporâneos, de modo mais espaçado e com a cautela que a tradição universitária tem por costume aconselhar. Mas também o meio editorial, a multiplicação de prémios literários, a crítica literária que hoje (não) se faz e o próprio Plano Nacional de Leitura lhe merecem uma palavrinha – apreensiva, perplexa, desgostosa. José Cardoso Bernardes (n. 1958) traçou-nos o breve sumário da história, nem sempre amena, dos estudos literários e conversou connosco sobre o ensino da literatura. 

Especialista em Gil Vicente, fomos encontrá-lo acompanhado dos símbolos caracterizadores do literato: enciclopédias, dicionários, cartapácios de espessura variável. Com José Camões coordenou um livro dedicado ao autor das Barcas, acabado de publicar. O grosso volume, com dupla chancela – a da Imprensa da Universidade de Coimbra e a da Imprensa Nacional – começa por agarrar o leitor por onde mais depressa ele se poderia esgueirar: a noção de compêndio.

Quando é que a literatura lhe bateu à porta?

A literatura bateu-me à porta muito cedo. Posso dizer que comecei a ler em registo de completa inocência. Só muito mais tarde adquiri a noção de que a literatura resultava de um trabalho, por exemplo. Quando as crianças começam a ler pensam que a literatura resulta de um milagre, não há um escritor, uma pessoa por detrás de um texto ou de um poema. Verifico que essa sensação que eu tinha quando comecei a ler, alastrou hoje às escolas. Fico com a ideia de que um adolescente que hoje contacta com Gil Vicente, Camões, Eça ou Saramago, com 16 ou 17 anos, pensa a mesma coisa que eu pensava quando tinha 6, 7 anos. Isto sucede porque os programas escolares quase suprimiram a ideia de autor. Os textos vêm no manual, não vêm sequer num livro. Nós antes tínhamos a ideia de livro: tínhamos uma antologia, uma biblioteca que frequentávamos e de onde tirávamos o livro, a título de empréstimo, levando-o para casa como coisa preciosa. Eu sabia, por isso, que o excerto de “A Ci dade e as Serras”que vinha na antologia fazia parte de um livro maior.  Ficava assim, em aberto, o estímulo de leitura para além da Escola, o que me parece essencial.

Entretanto, o cenário mudou.

Sim, os jovens podem pensar que, no limite, Eça ou Camões escreveram directamente no manual deles. A ideia de autor quase desapareceu, o que me parece um erro, mesmo sob o ponto de vista da eficácia pedagógica. O aluno necessita de saber que o texto resulta de um trabalho humano. A antologia de outros tempos tinha o retrato dos autores. E isso favorecia a percepção de uma presença humana.  Claro que, propensos à transgressão, nos entretínhamos a enfeitar o dito retrato: a pôr bigode nas figuras que não o tinham, por exemplo. Mas até esse procedimento implicava um relacionamento directo de pessoa a pessoa, que hoje se perdeu. Deste modo, o ensino da literatura corre o risco de desumanização.

E quais são as consequências dessa desumanização?

Temo que isso possa ser letal. Hoje como ontem, o adolescente gosta do diálogo. Ler um poema é, antes de mais, ouvir a pessoa que o fez. Se o poema é apresentado totalmente separado da pessoa que o concebeu, o adolescente pode ficar com a ideia que está a dialogar com uma coisa fria, inumana e sente-se muito menos implicado. Se lhe mostram o poema como simples repositório das figuras de estilo que o adornam, o jovem leitor  pode limitar-se a decorar as figuras de estilo mas, a seguir, esquece o poema. Se o diálogo ocorrer entre o adolescente e o escritor/pessoa, existe muito mais possibilidade de o poema deixar rasto.

A minha relação com a literatura começou muito cedo. Tive a sorte de nascer numa casa que tinha livros. Não eram muitos mas eram objeto de escolha, o que talvez configure a situação ideal. Julgo que tratando-se de uma criança, é importante não haver muitos livros porque a superabundância pode ser dissuasora. Um dos principais inimigos da desqualificação, da menorização do livro a que estamos a assistir no mundo ocidental tem decerto muitas causas mas uma delas é seguramente a profusão. Veja: temos aqui [na Biblioteca Geral] depósito legal. Registámos 15 mil novos títulos editados em Portugal em 2018. Em 1990, editavam-se 6 mil títulos novos. No espaço de 30 anos, quase se triplicou o número de títulos (em Portugal como no mundo). Isto poderia ser motivo para celebração. Em face destes números, poderia concluir-se que hoje se lê muito mais. Mas não é verdade Editam-se muitos mais livros mas com tiragens muito mais baixas. Não há dúvida de que a facilidade com que hoje se edita um livro fez diminuir o escrutínio e a qualidade

É uma espécie de febre editorial?

Febre que tem efeitos negativos, como todas as febres. Ultimamente, tenho verificado que o próprio Plano Nacional de Leitura, que começou por obedecer a um propósito muito positivo de selecionar alguns livros e recomendá-los aos jovens, tem vindo a alargar essa oferta para níveis que reputo de excessivos. Receio mesmo que este propósito (teoricamente louvável) esteja a ter resultados contraproducentes. Quem sente vontade de ler mas não sabe o que há-de ler no pouco tempo de que dispõe sente-se hoje mais confuso.  Num cenário destes, a opção mais fácil é desistir.

Há até nomes que nos deixam perplexos: “como é que este entrou?!”

Pois, mas entrou.

E quem são os sujeitos de culpa desse alargamento?

É justo reconhecer que os equilíbrios são difíceis de alcançar. Por um lado, devemos procurar a pluralidade, não devemos fechar o cânone. Por outro, existe a conveniência de não o alargar sem critério. Olhando para a profusão de livros que atualmente têm o selo do PNL, fico com a ideia de que esse compromisso se rompeu. Mas posso estar enganado.

E que tipo de pressões podem favorecer esse alargamento?

Cada pessoa que escreve um livro acredita que fez uma coisa  muito importante. Foi sempre assim e não devemos admirar-nos por isso. É também natural que depois se sujeite a cumprir todas as etapas necessárias para promover o livro que produziu. Ele sabe, por exemplo, que as câmaras municipais apoiam a ida de autores às escolas. As crianças são então confrontadas com o autor que vai à escola. Isso é virtualmente bom. Os futebolistas não podem ser os únicos heróis que impingimos às crianças. Mas quando se recebe um autor numa escola há que ter especial cuidado. Temos que ser exigentes. Quando um professor organiza uma visita de estudo a um museu, vai lá antes, para identificar as obras de arte que vai mostrar e explicar. O mesmo deve acontecer com os escritores. Pode não ser o autor certo. Alguns jovens nunca leram um livro nem nunca viram um escritor. Olham para os livros com desconfiança e têm a ideia de que a leitura (sobretudo em versão impressa, que requer mais tempo e atenção) é coisa anacrónica. É necessário fazer tudo para que esse primeiro contacto não resulte em desilusão e produza resultados positivos.

Teme que estas dinâmicas de crivo largo possam ser desastrosas, a curto prazo?

Admitamos que há trinta anos, quando não havia distrações eletrónicas, um jovem de 15 ou16 anos (daqueles que gostavam mesmo de ler) chegava a ler 10 livros por ano. Esse tipo de jovens ainda existe (conheço alguns). Mas os inquéritos dizem-nos que são raros aqueles que vão além de um livro por ano. Muitas vezes, pode começar a ler um romance e desistir ao fim de dez páginas. Foi aliciado por alguém para ler aquele livro, que afinal não o satisfaz. Esta situação reforça os cuidados que é necessário ter, hoje mais do que ontem. Em geral, o jovem leitor parte com relutância para a leitura Se a recomendação não é certeira, pode perder-se um leitor para sempre.

Acompanha, de algum modo, o que se vai publicando no campo da literatura portuguesa actual?

Sou um leitor selectivo da ficção portuguesa contemporânea. Leio mais autores de períodos anteriores. Ainda assim, sigo regularmente aquilo que os colegas que se dedicam a esse período me vão sinalizando como “imperdível”. Mantenho-me fiel ao princípio que de que a aclamação de um escritor deve ser lenta, ponderada e reticente. Quando um escritor surge envolvido em festas e homenagens imediatas, a minha tendência é para esperar. Parece-me que as aclamações súbitas podem conter algum exagero. Decididamente, não consigo acompanhar todas as aclamações que os jornais vão fazendo.

É como se os jornais existissem para seguir os tempos? E a crítica literária, não tem aqui um papel a jogar? Não deveria ela opor resistência à cumplicidade entre os media e o mercado editorial?

A critica literária deixou de existir, ou existe hoje apenas em alguns nichos. Crítica pressupõe frontalidade, coragem, escrutínio desassombrado. Desconfio quando vejo críticos dizerem sempre bem de todos os livros que leem ou sobre os quais dão testemunho público.

Parece-lhe que a crítica literária hoje não consegue romper as malhas do elogio?

Prefiro um crítico que tenha a coragem de dizer o que pensa do que aquele que escreve sempre em registo de encomenda. Isso ficou conhecido, no século XIX, pela “escola do elogio mútuo”. Presta-se assim um mau serviço à literatura. Há literatura que não é boa e devemos assumir essa realidade como natural. Os atributos de qualidade aplicam-se a qualquer criação humana. E a literatura é uma criação humana exigentíssima. Requer um trabalho oficinal apuradíssimo e um saber sólido e multiforme que implica memória de muitas leituras.

O mesmo acontece com a multiplicação dos prémios literários, instituídos por editoras, bancos, fundações, câmaras municipais, juntas de freguesias, etc. O que pensa deles?

Não saímos de Camões. Camões morre em 1580 e vai a enterrar num lençol que se vai buscar a casa do Conde de Vimioso. E os Portugueses ficaram, desde então, com o trauma de que pode haver por aí mais escritores geniais a viverem mal. Não queremos repetir a ingratidão do século XVI, o que está bem. Pensa-se então que o melhor é instituir muitos prémios para que os escritores actuais se sintam agasalhados. Para que tenham todos, pelo menos, a oportunidade de ter o seu lençol para descer à terra. Mas a constituição dos júris também me parece reveladora. Vemos júris de prémios constituídos por escritores que se premeiam uns aos outros. Não significa isto que não haja escritores com capacidade de escrutínio. Muito pelo contrário. Mas um escritor é uma figura pública, também ele publica livros e é candidato a prémios. É por isso mais difícil acreditar na sua isenção.

Voltamos a Camões: [os prémios] “Melhor é merecê-los sem os ter, / Que possuí-los sem os merecer”

As entidades que promovem os prémios deviam talvez entender-se entre si. A instituição de um prémio anual parte do princípio de que todos os anos são publicados livros de grande qualidade, que merecem reconhecimento. Ora isso pode não acontecer. Não deveríamos banalizar os prémios. Tenho a ideia de que antes eram iniciativas mais raras e exigentes.

Curiosamente, é conterrâneo de João Gaspar Simões, também ele nascido na Figueira da Foz. O que pensa da crítica que ele praticava?

É preciso começar por dizer que era um crítico profissional que publicava as suas críticas em jornais de grande tiragem. Não era um académico nem tinha a pretensão de o ser. Acho que cumpriu uma função muito necessária naquela altura e que seria ainda muito necessária hoje: dizia o que pensava e, em geral, pensava com critério. Como era um leitor regular, insistente e atento, foi adquirindo uma experiência de leitura que hoje é raríssima. Vemos hoje pessoas a fazer “crítica literária”(com muitas aspas) que se percebe claramente que só leram 4 ou 5 livros. O que precisaríamos hoje era de críticos que lessem atentamente, perseverantemente e de forma abrangente a literatura que depois criticam.

A verdade é que essa contundência lhe trouxe algumas agruras. Ele próprio chegou a dizer-se “o Cristo da crítica literária nacional”, não lhe tendo faltado sequer “o beijo de Judas”, “a esponja de fel”.

É um estilo de época, estamos a falar dos anos 30, 40, 50. Na altura, o mundo intelectual funcionava mesmo assim, com toda essa dureza. Se quiser outros exemplos: Jorge de Sena, António José Saraiva, Vitorino Nemésio. A maneira como estas pessoas se afrontavam uns aos outros nos jornais seria hoje considerado motivo para crime de difamação.

Nesse capítulo, o feroz Jorge de Sena levava vantagem…

Era terrível. Mas era retribuído da mesma forma. Recordo as querelas camonísticas que ele mantinha com os académicos, de Coimbra e de Lisboa, que lhe pagavam na mesma moeda. Ou daquelas que  mantinha com António José Saraiva, na altura ligado ao Partido Comunista, e que lhe retribuía com a mesma feridade. Isto era sentido como muito natural. Nós hoje é que adoramos água morna.

Aproxima-se mais um 10 de Junho. Em que estado editorial está Camões?

Não muito bem. Se quiser ir à Baixa de Coimbra comprar uma edição anotada, actualizada e fiável das “Rimas” de Camões, o maior poeta de língua portuguesa, não encontra. Existiram mas estão esgotadas. É um paradoxo que surpreende os estrangeiros cultos que nos visitam e queiram comprar as obras completas de Camões. Se for a Espanha e perguntar por uma edição das obras de Garcilaso de la Vega, o livreiro, que disporá de 6 ou 7 edições, vai-lhe perguntar qual delas quer. E não há nenhuma editorial de prestígio em Espanha que não tenha gosto em ter no seu catálogo uma edição da lírica deste poeta . E repare que Garcilaso, sendo importante para a literatura espanhola, não tem, apesar de tudo, a importância que Camões tem para a as letras portuguesas. A verdade é que, por motivos compreensíveis, os estudiosos da literatura também fogem das missões difíceis. E uma das missões mais difíceis que há, neste campo, é editar e anotar as obras de Camões. A este respeito, contudo, há notícias boas. Sei que está para sair uma importante edição da Lírica de Camões. Trata-se de um trabalho da Professora Maria Vitalina Leal de Matos, que já deu a público um volume com “Os Lusíadas” e as cartas. Isto significa que se for às livrarias da Baixa daqui a algum tempo encontrará, pelo menos, uma boa edição camoniana.

Entrámos no território da especialidade, onde não faltam ramos de onde se desprendem frutos cultos em que nem todos podem meter o dente. E não é raro encontrarmos especialistas com uma ideia muito própria da literatura: um vasto domínio dividido em leiras, ou canteirinhos. A cada académico, seu canteirinho. Em pleno século XXI, é uma visão inquietante, não lhe parece?

Um especialista é alguém que estuda aprofundadamente um assunto. Os especialistas são, por isso, imprescindíveis. Porém, o conceito de especialista não se aplica às ciências humanas da mesma forma que se aplica às ciências exactas. Costumo dizer que um médico pode dedicar-se a estudar a unha do dedo mindinho; podemos sempre considerá-lo um médico de via estreita, mas haverá sempre pessoas com problemas na unha do dedo mindinho. O dito especialista pode assim dedicar-se a essa área e será sempre útil. No caso das ciências humanas, o conceito de especialista não pode ser encarado dessa forma, mesmo quando falamos de estudos literários. Desde logo, porque a literatura portuguesa é (queiramos ou não) uma literatura periférica. Alguém que saiba só de literatura portuguesa é olhado com alguma desconfiança por parte dos seus pares europeus. Então uma pessoa estuda Camões e nunca leu Petrarca, ou Garcilaso ou Dante? Estuda Gil Vicente e nada sabe do teatro medieval europeu? Estuda Eça e não sabe o suficiente de Flaubert, Zola ou Machado de Assis? O conceito de especialista de dedo mindinho não é ajustável às ciências humanas. A literatura pressupõe um saber de convergência, de cruzamento. Estudar literatura implica ter uma visão abrangente do saber de que o escritor beneficiou na época em que escreveu., desde logo. Vejo com desgosto que esse conceito de especialista também entrou nas ciências humanas. Quero pensar que estamos a sair dessa fase, mas tem de reconhecer-se que houve um tempo em que os estudos literários se fecharam, se ensimesmaram. E quase se perderam por isso.

As teses académicas que estão soterradas nos anais da Academia serão o exemplo mais à mão desse fechamento ou falta de visão.

Houve um tempo de vertigem, sim. Uma tese de doutoramento poderia ser feita apenas para que o júri a lesse. Mas o júri eram 6 pessoas. Em alguns casos, o autor dessas teses podia dar-se ao luxo de ignorar os seus próprios alunos, por exemplo. Mas vejo sinais de superação dessa fase menos positiva.

Por vezes, fica a ideia de que a moeda da comunicabilidade parece ter deixado de ter valor de circulação quando nos movemos em território académico.

Sim. Por vezes podia ficar a ideia de que o autor procurava a ininteligibilidade. E voltamos à analogia com as ciências médicas. Os médicos foram sempre conhecidos por terem uma letra difícil; “letra de médico” – ainda hoje dizemos. E isso entende-se. Um médico necessita de preservar o seu saber e evitar que o paciente saiba tanto como ele. Porque a verdade é que nunca sabe o suficiente. Essa pretensão do doente (que vem muitas vezes do recurso ao Google)  pode mesmo tornar-se muito perigosa. Quando uma pessoa quer construir um muro à sua volta pode construí-o com “palavras difíceis”. À semelhança do que ocorreu com outros domínios disciplinares, os estudos literários cometeram esse pecado.

Jorge de Sena falava de uma “nebulosa hermenêutica”.

São muitas vezes uma forma de demarcar um território. Em determinada fase, os estudos literários entenderam que deviam afastar-se do contágio com áreas vizinhas. Assim sucedeu, por exemplo, com os estudos historiográficos. Entenderam então desvalorizar a importância do contexto. Quando entrei para a Faculdade, em 1976, tudo o que não pudesse ser convalidado no texto, não era merecedor de atenção, o que levou à construção dessa linguagem demarcativa, esotérica, que só os iniciados entendiam.   

 Era uma forma de resistir às ameaças? 

As ciências humanas tiveram sempre alguma dificuldade de arrumação interna. Há períodos em que os estudos historiográficos reivindicam direitos sobre a literatura. Há, depois, uma resistência dos historiadores da literatura, a dizer que não precisam dos historiadores das ideias porque se julgam capazes de alcançar um hipotético saber depurado. Esta luta (doméstica) leva a esse enquistamento da linguagem. Neste momento, porém, julgo que o campo literário recuperou o seu ethos cívivo. Está persuadido de que tem uma missão social a cumprir: a de dar a conhecer os textos literários, designadamente os que têm valor. E estes não podem ser apreendidos pelo público, desde logo pelo público escolar, se não forem explicados com rigor e clareza.

O rigor e a clareza formam uma dupla difícil de equilibrar, não lhe parece?

O rigor tem muitas vezes como adversário a demagogia. E clareza opõe-se a hermetismo. É preciso encontrar um ponto de equilíbrio. São as virtudes que eu mais aprecio quando leio um trabalho académico, por exemplo.

Há, no entanto, teses que, sendo claras e rigorosas, conseguem ser bastante enfadonhas… 

Aí, entra um outro factor. Se uma escrita é rigorosa e é clara, a possibilidade de ser enfadonha é mais reduzida. A clareza (que não pode ser confundida com simplismo demagógico) constitui, por si mesmo, um vector de persuasão A clareza capta e envolve o leitor. O terceiro vértice do triângulo é a pertinência, que é outra questão muito importante nas ciências humanas. Se eu quiser especializar-me na pontuação em Camões, ou levando mais longe o meu propósito, se pretender dedicar-me ao estudo da vírgula, posso produzir um discurso rigoroso, até talvez tendencialmente claro, mas não produzo um discurso pertinente. Ninguém está interessado no assunto. É uma questão que não tem substância. A medicina (volto a este termo de comparação) não tem este problema. Se um médico quiser explorar a tal unha, haverá sempre doentes que necessitam da intervenção daquele médico e ninguém se atreverá a dizer que ele deve ser dispensado dos quadros do hospital. Levada ao extremo, a especialização pode ser  particularmente nociva para os estudos literários. Mas faço notar que fazer valer este princípio é incómodo do ponto de vista humano. É muito mais fácil eu fechar-me na minha especialidade.

Centremo-nos no ensino da literatura, uma área em que tem concentrado também a sua atenção. Quem não conheça os programas escolares, guarda a ideia de que autores como Gil Vicente ou Camões foram remetidos para os confins curriculares.

Em 2014, a literatura voltou aos programas e voltou em força. O problema não está agora na presença da literatura na Escola. Pode estar na maneira como ela aí é ensinada. Tomemos o exemplo de Camões, que de uma forma ou outra esteve sempre nos programas escolares. De Camões não se pode falar aos alunos de forma fria, tem de se falar de peito aceso. Se o professor não tiver essa chama, nada se consegue de duradouro. E de onde pode vir essa chama? De um saber aprofundado e renovado e de um gosto pessoal. E tudo isso se cultiva. Nada brota sem motivação e sem esforço. A Escola deve ser vista como um espaço de iniciação à leitura. Digo de iniciação e não de limitação. Nesse sentido, atrevo-me a dizer algo que pode parecer herético. Acho que programa actual do 9.º ano pode ser acusado de consagrar demasiado tempo a dois autores do século XVI: Camões e Gil Vicente. Por junto, creio que os alunos passam cerca de metade do ano letivo com esses dois autores. O perigo maior é o de que esse tempo cancele a possibilidade de um convívio futuro com esses grandes nomes que tanto têm para nos dizer. Temo que, propiciando aos alunos um contacto tão extenso com dois autores que viveram há 500 anos, eles desenvolvam uma atitude de saturação. Se assim suceder (não há estudos que o demonstrem mas o perigo existe) compromete-se um objetivo essencial: a possibilidade de os alunos manterem o interesse por esses grandes nomes. O ideal seria que pudessem beneficiar de uma iniciação cuidada e intensa. Mas não tão extensa que afetasse a vontade  de voltar a contactar com eles em estádios posteriores da sua vida.

Está, então, a sugerir que se reduza o contacto com os canónicos da literatura portuguesa?

Não tenho convicções definitivas sobre o assunto. Penso, contudo que, a redução do tempo de contacto dos alunos com “Os Lusíadas”, sem diminuir a intensidade desse contacto, poderia deixar uma semente de interesse mais promissora. E tenho receio de que isso não esteja a acontecer. Todos os anos vou a escolas e penso identificar um certo ambiente de saturação. Mais: essa saturação pode ocorrer também nos professores, o que é humano. Se se estuda, por exemplo, o “Auto da Barca do Inferno” (em alternativa, o “Auto da Índia”) durante anos a fio, isto cria uma inevitável mecanização relativamente a processos de ensino. O que se diz sobre a personagem A ou B não se altera de um ano para outro. A repetição dos mesmos textos pode neutralizar o entusiasmo com que se fala deles. E o professor quando fala de Gil Vicente ou de Camões ou fala com entusiasmo – e contagia, ou fala de forma fria e não contagia. Se isto não acontecer, o seu objectivo falhou. Em suma: atrevo-me a dizer que, tratando-se de alunos com 14-15 anos,  preferia um Programa com mais autores e que incutisse nos alunos e nos professores a ideia de que é preciso dar a ler com gosto, na perspetiva de que esse gosto possa ser mantido, alimentado e recuperado ao longo da vida.

Também é verdade que os tempos, que a tudo parecem pedir rapidez e legibilidade máxima, correm ao arrepio das exigências que o convívio com estes autores pressupõe: tempo, disponibilidade, capacidade de espera, silêncio, reflexão.

Essa é uma questão política muito relevante. Deve a Escola ser um espaço de continuidade em relação à vida que ocorre no exterior ou deve preservar uma certa especificidade? Falo de comportamentos, linguagens, atitudes, e até de coisas tão básicas como a alimentação: deve ser servido nas cantinas o que os alunos encontram nos restaurantes de fast-food que existem à volta da escola? Isto acontece exactamente com os livros que se dão a ler. Há quem defenda que a escola deve ser um lugar de prazer, de bem-estar, de gratificação imediata e permanente. E há outros que dizem que a escola, embora não tendo que se transformar num espaço de repressão e de tortura, não deve capitular, devendo manter-se como espaço diferenciador, assumindo a coragem de preservar regras, mesmo que estas estejam em processo de dissolução no espaço familiar e até em outros espaços públicos.

Resistir é o verbo?

Não digo resistência armada (risos), mas sim resistência cultural, cívica, sempre norteada pelo que possa considerar-se o interesse público. Se as crianças e os adolescentes têm no tempo escolar a réplica exacta do tempo fruitivo que passam enquanto deambulam por shoppings, isso significa que a escola não está a cumprir a sua função. É que o tempo de adulto não vai ser uma deambulação permanente pelos centros comerciais. E eles têm de ser minimamente preparados para as dificuldades que vão encontrar, mais cedo ou mais tarde. Uma metáfora dessa dificuldade pode ser um texto do século XVI. Ninguém acorda com uma vontade irreprimível de ler um soneto de Camões. Mas se a escola tiver a coragem de proclamar que a partir da leitura de um soneto de Camões podem obter-se ganhos educativos que são importantes para a vida, em termos de maturação pessoal, conhecimento histórico, estético, o professor deve ter a coragem de dizer: “tens de desligar o telemóvel, tens de cortar com a festa tecnológica que marca a tua vida e olhar para estes 14 versos, escritos por uma pessoa, há 500 anos. Esses versos reflectem problemas da condição humana que tu, como pessoa que também és, ainda tens vantagens em perceber, em sentir”. Estes dilemas que se colocam à Escola dos nosso tempo mereciam maior ponderação do que aquela que tem tido. Não vejo neles sequer razão para clivagens entre Esquerda e Direita.

E estamos longe de a ver saltar para os jornais.

Em geral, os nossos jornais falam do que tem impacto assegurado. Ora o impacto é muito mais seguro quando estão em causa interesses corporativos ou quando se institui a luta por ganhos de imagem ou por benefícios salariais. Não quero dizer que isso não seja importante. Mas parece-me que, em si mesmas, as questões educativas são objeto de um debate mais regular e mais sereno em outros países. Quando há alteração de programas, por exemplo, os jornais franceses acolhem numerosos artigos de opinião e tomadas de posição de muitas instituições credenciadas. Por cá, na melhor as hipóteses, a discussão fica-se pela presença ou ausência de uma obra no programa, como aconteceu recentemente com “Os Maias”. É melhor do que nada mas é pouco. Verifico, para mais, que, com poucas exceções, os nossos jornais não têm páginas sobre educação (como não têm sobre crítica literária, de resto). Ora estão a acontecer transformações importantes, a muitos níveis. A mesma omissão verifica-se no debate político, ao qual raramente chegam temas educativos. Ora, a ausência de debate fundamentado e regular favorece o aventureirismo, por exemplo. A inovação deve ser um desígnio permanente mas deve resultar da pesquisa qualificada. Se não, pode confundir-se com aventura perigosa. Voltemos à área médica.

Sim, é melhor mantê-la por perto.

Um medicamento não pode ser prescrito sem ter passado por uma barreira de testes. Essa mesma cautela, talvez não com moratórias tão grandes, devia ser assumida pelo ensino. E o que eu vejo é uma enorme sede experimental. A educação tornou-se hoje um espaço aberto a muitas experiências insuficientemente testadas e discutidas. O exemplo mais visível é talvez o papel da tecnologia na sala de aula. Tratando-se de matéria tão importante, tem-se discutido tão pouco. Neste como noutros assuntos, o pior que pode haver é ser radicalmente contra ou radicalmente a favor.

Nessa sede experimental, incluem-se, de algum modo, os manuais gratuitos?

Ninguém pode contestar a validade social desta medida. O único aspeto que pode discutir-se é o seu alcance: há quem defenda que a medida não deveria atingir da mesma forma famílias pobres e famílias abastadas. A mim, porém, preocupa-me mais que os  manuais sejam emprestados sob compromisso de devolução “em bom estado”. Ora, isto embarga e constrange a relação que o aluno deve manter com o livro. O livro não é uma borracha que se empresta pontualmente e se devolve sem estragos. O manual gratuitamente distribuído – e devolvido – impede a possibilidade de o aluno o usar em sentido pleno (escrevendo nele, por exemplo). E impede, sobretudo, a possibilidade de o guardar. Vejo nisso prejuízos de vário tipo, incluindo perdas emocionais e sociais que não devem ser negligenciadas.

Com José Camões coordenou um compêndio de Gil Vicente, que acaba de ser publicado.  Quer explicar-nos que cartapácio é este?

Gil Vicente está longe de ser um autor devidamente editado e estudado. E, no entanto, pode parecer o contrário, uma vez que, a seguir a Camões, é o autor português que inspirou até hoje mais bibliografia crítica – ainda vai à frente de Fernando Pessoa, por exemplo. A sua obra continua a ser estudada em Portugal, em Espanha e em muitos países com uma regularidade impressionante. E há bons motivos para isso. Não há ninguém antes dele, no espaço europeu, que tenha produzido uma obra tão extensa e, ao mesmo tempo, tão diversa. Lembremos que ele é simultaneamente autor de textos tão diferentes como “Breve Sumário da História de Deus”,  “Auto da Índia” ou “Comédia da Rubena”. No espaço de 35 anos, esse trabalhador genial e infatigável escreve, encena e provavelmente ajuda a representar cerca de 50 peças.

É, portanto, um volume que pretende tomar o pulso aos estudos vicentinos?

Os estudos vicentinos atravessam neste momento uma fase de grande renovação e este volume procura dar conta disso mesmo. O leitor curioso encontra neste “Compêndio” estudos sobre a vida, a obra, a dramaturgia, o ensino, a iconografia, a música. O livro, que atinge as 600 páginas, não foi pensado para ser lido de uma ponta a outra. Trata-se mais de uma obra de consulta e de estudo seletivo. Da parte de quem o coordenou e da parte de quem nele colaborou, trata-se também de um livro de testemunho. Todos sentimos a obrigação de convergir na tentativa de dar conta pública do que neste momento se apurou a propósito de um dos maiores nomes das letras portuguesas e europeias. Temos perfeita consciência de que se trata de resultados provisórios e alteráveis. Ainda assim, sentimos que era importante chamar a depor estudiosos de várias gerações e proveniências. De resto, por natureza, um Compêndio é um livro que se encontra sempre em processo de atualização.