Há dias em que nos dói a alma


Centro da tradição cultural do País Basco, Guernica foi arrasada numa única e sinistra tarde de bombardeamentos contínuos pelos aviões da Legião Condor.


«Bem podemos apertar o pescoço com uma gravata de cetim, usar na lapela uma roseta do tamanho de um pires e jantar nas Tulherias… Qual quê, há dias em que nos dói a alma» Georges Bernanos, Os grandes cemitérios sob a Lua (1938)

Passaram, no dia 1 de Abril, oito décadas sobre o fim da Guerra Civil de Espanha, decretado pelo ‘caudilho’ Francisco Franco a partir do seu quartel-general: “No dia de hoje, capturado e desarmado o Exército vermelho, as nossas tropas vitoriosas alcançaram os últimos objectivos militares. A guerra terminou”. E, como salienta o historiador inglês Paul Preston, na História concisa da Guerra Civil de Espanha, o ‘generalíssimo’ Franco teve a satisfação de receber um telegrama de Pio XII, que fora eleito Papa um mês antes (a 2 de Março), agradecendo a imensa alegria que lhe causou a “vitória católica” em Espanha – verdadeira “cruzada”, como a tinham qualificado os bispos espanhóis no início da Guerra Civil, em 1936.

A Guerra Civil de Espanha foi uma verdadeira tragédia europeia e mundial. Guerra de aniquilação e de extermínio, levada a cabo pelas tropas fascistas chefiadas por Franco, na qual perderam a vida mais de meio milhão de espanhóis. O extermínio continuaria, porém, já depois da guerra terminar, com dois milhões de prisioneiros concentrados em campos de trabalho forçado (seriam eles a edificar a Basílica de la Santa Cruz del Valle de los Caídos, em 1939-1940) e com mais 200 mil mortos sobre os quais o ditador fascista iria edificar o seu ‘regime franquista’, abençoado pela Santa Madre Igreja, pois que, como teria dito o piedoso cardeal Goma, citado por Georges Bernanos: “Quando a legalidade se tornar militar, nós abençoaremos a legalidade militar”. E foi mesmo isso que aconteceu em Espanha.

Não resisto à tentação de reler Bernanos quando, a páginas tantas, ele evoca os “camponeses semelhantes aos que vós conheceis, ou melhor, aos que os vossos pais conheceram e aos quais apertaram a mão” – que “não tinham morto nem ferido ninguém”, cujo único ‘pecado’ teria sido clamarem: “Viva la Republica!”, a qual “ainda era, ao anoitecer de 18 de Julho de 1936, o regime legal reconhecido por todos, aclamado pelos militares, aprovado pelos farmacêuticos, os médicos, os professores primários, enfim, por todos os intelectuais” – camponeses esses que foram prontamente executados pelos fascistas. Ao que os bispos espanhóis terão replicado, segundo Bernanos, assim: “Nós não duvidámos de que eles eram pessoas muito honradas, de facto, pois a maior parte desses infelizes converteu-se in extremis. Segundo o testemunho do nosso Venerável Irmão de Maiorca, só dez por cento desses queridos filhos recusaram os sacramentos, antes de serem executados pelos nossos bons militares”. Ou seja, pelos ‘cruzados’!

Mas a Guerra Civil de Espanha foi também o terrível prelúdio da II Guerra Mundial. Além da crudelíssima soldadesca africana da guarnição marroquina sob as ordens de Franco, as tropas fascistas espanholas beneficiaram de apoios decisivos, quer de forças militares e de aviões de combate italianos enviados pelo ditador Benito Mussolini, quer, sobretudo, dos caças-bombardeiros alemães da Legião Condor enviada pelo ditador nazi, Adolf Hitler. O chefe de estado-maior e, posteriormente, comandante da Legião Condor, tenente-coronel Wolfram von Richthofen, primo do famoso “Barão Vermelho”, era um comandante profissional, exigente e metódico, que estava firmemente convencido da eficácia do uso do terror.

Um dos episódios mais trágicos da guerra civil ocorreu durante o ataque ao País Basco, na Primavera e no Verão de 1937, desencadeado por um exército de 40 mil combatentes chefiados pelo cruel general fascista Emílio Mola (que haveria de morrer num acidente aéreo nesse mesmo ano). Mola iniciou a sua campanha com a proclamação de uma terrível ameaça: “Se a rendição não for imediata, arrasarei a Biscaia, começando pelas indústrias de guerra. Tenho meios para o fazer”. E, de facto, os nazis da Legião Condor estavam desejosos de entrar em cena e ensaiar as técnicas do bombardeamento picado e do bombardeamento de saturação. Ora, o general Mola estava longe de conseguir a vitória rápida que desejava, dado que os bascos se defendiam corajosa e encarniçadamente. Foi então que Richthofen, que dirigiria mais tarde a invasão alemã da Polónia, aconselhou Emílio Mola: “Não é inoportuna qualquer medida que destrua o moral do inimigo, e é preferível pô-la em prática imediatamente”. E assim foi. Alvo escolhido: Guernica.

Às primeiras horas da tarde de segunda-feira 26 de Abril de 1937, dia de mercado naquela pequena cidade basca, os bombardeiros que garantiam cobertura aérea à Legião Condor atacaram em força a cidade mais antiga do País Basco, centro da sua tradição cultural e, por isso, símbolo de importância vital para o povo basco. Guernica foi arrasada numa única e sinistra tarde de bombardeamentos contínuos pelos aviões da Legião Condor, a voarem baixo, a provocarem o terror e a morte, a fazerem tiro ao alvo contra homens, mulheres e crianças, destruindo caminhos e bosques em volta.

Na cidade em chamas, o fumo era tão intenso que nada se via a poucos metros de distância. Um padre basco, que chegara nesse dia a Guernica e testemunhou a tragédia, declarou, designadamente, ao jornal inglês The Times: “Ouviam-se gritos de dor por todo o lado e as pessoas cheias de terror ajoelhavam-se e erguiam as mãos ao céu, como se implorassem a providência divina… Como sacerdote católico, digo que não se podia infligir maior ofensa à religião do que o te deum celebrado à glória de Franco na igreja de Guernica, milagrosamente salva pelo heroísmo dos bombeiros de Bilbau”. Está hoje mais do que comprovado que Guernica foi destruída por bombas explosivas e incendiárias lançadas pelos aviões da Legião Condor, pilotados por alemães, e que o bombardeamento foi executado a pedido do alto comando das tropas nacionalistas de Emílio Mola.

Ao evocar o dia da destruição de Guernica, símbolo do ‘Holocausto Espanhol’ que Paul Preston descreveu num livro impressionante, devo lembrar o que escreveu o grande escritor francês, católico raro, coerente e justo, que foi Georges Bernanos: “Há dias em que nos dói a alma”. E nunca os deveremos esquecer…

Há dias em que nos dói a alma


Centro da tradição cultural do País Basco, Guernica foi arrasada numa única e sinistra tarde de bombardeamentos contínuos pelos aviões da Legião Condor.


«Bem podemos apertar o pescoço com uma gravata de cetim, usar na lapela uma roseta do tamanho de um pires e jantar nas Tulherias… Qual quê, há dias em que nos dói a alma» Georges Bernanos, Os grandes cemitérios sob a Lua (1938)

Passaram, no dia 1 de Abril, oito décadas sobre o fim da Guerra Civil de Espanha, decretado pelo ‘caudilho’ Francisco Franco a partir do seu quartel-general: “No dia de hoje, capturado e desarmado o Exército vermelho, as nossas tropas vitoriosas alcançaram os últimos objectivos militares. A guerra terminou”. E, como salienta o historiador inglês Paul Preston, na História concisa da Guerra Civil de Espanha, o ‘generalíssimo’ Franco teve a satisfação de receber um telegrama de Pio XII, que fora eleito Papa um mês antes (a 2 de Março), agradecendo a imensa alegria que lhe causou a “vitória católica” em Espanha – verdadeira “cruzada”, como a tinham qualificado os bispos espanhóis no início da Guerra Civil, em 1936.

A Guerra Civil de Espanha foi uma verdadeira tragédia europeia e mundial. Guerra de aniquilação e de extermínio, levada a cabo pelas tropas fascistas chefiadas por Franco, na qual perderam a vida mais de meio milhão de espanhóis. O extermínio continuaria, porém, já depois da guerra terminar, com dois milhões de prisioneiros concentrados em campos de trabalho forçado (seriam eles a edificar a Basílica de la Santa Cruz del Valle de los Caídos, em 1939-1940) e com mais 200 mil mortos sobre os quais o ditador fascista iria edificar o seu ‘regime franquista’, abençoado pela Santa Madre Igreja, pois que, como teria dito o piedoso cardeal Goma, citado por Georges Bernanos: “Quando a legalidade se tornar militar, nós abençoaremos a legalidade militar”. E foi mesmo isso que aconteceu em Espanha.

Não resisto à tentação de reler Bernanos quando, a páginas tantas, ele evoca os “camponeses semelhantes aos que vós conheceis, ou melhor, aos que os vossos pais conheceram e aos quais apertaram a mão” – que “não tinham morto nem ferido ninguém”, cujo único ‘pecado’ teria sido clamarem: “Viva la Republica!”, a qual “ainda era, ao anoitecer de 18 de Julho de 1936, o regime legal reconhecido por todos, aclamado pelos militares, aprovado pelos farmacêuticos, os médicos, os professores primários, enfim, por todos os intelectuais” – camponeses esses que foram prontamente executados pelos fascistas. Ao que os bispos espanhóis terão replicado, segundo Bernanos, assim: “Nós não duvidámos de que eles eram pessoas muito honradas, de facto, pois a maior parte desses infelizes converteu-se in extremis. Segundo o testemunho do nosso Venerável Irmão de Maiorca, só dez por cento desses queridos filhos recusaram os sacramentos, antes de serem executados pelos nossos bons militares”. Ou seja, pelos ‘cruzados’!

Mas a Guerra Civil de Espanha foi também o terrível prelúdio da II Guerra Mundial. Além da crudelíssima soldadesca africana da guarnição marroquina sob as ordens de Franco, as tropas fascistas espanholas beneficiaram de apoios decisivos, quer de forças militares e de aviões de combate italianos enviados pelo ditador Benito Mussolini, quer, sobretudo, dos caças-bombardeiros alemães da Legião Condor enviada pelo ditador nazi, Adolf Hitler. O chefe de estado-maior e, posteriormente, comandante da Legião Condor, tenente-coronel Wolfram von Richthofen, primo do famoso “Barão Vermelho”, era um comandante profissional, exigente e metódico, que estava firmemente convencido da eficácia do uso do terror.

Um dos episódios mais trágicos da guerra civil ocorreu durante o ataque ao País Basco, na Primavera e no Verão de 1937, desencadeado por um exército de 40 mil combatentes chefiados pelo cruel general fascista Emílio Mola (que haveria de morrer num acidente aéreo nesse mesmo ano). Mola iniciou a sua campanha com a proclamação de uma terrível ameaça: “Se a rendição não for imediata, arrasarei a Biscaia, começando pelas indústrias de guerra. Tenho meios para o fazer”. E, de facto, os nazis da Legião Condor estavam desejosos de entrar em cena e ensaiar as técnicas do bombardeamento picado e do bombardeamento de saturação. Ora, o general Mola estava longe de conseguir a vitória rápida que desejava, dado que os bascos se defendiam corajosa e encarniçadamente. Foi então que Richthofen, que dirigiria mais tarde a invasão alemã da Polónia, aconselhou Emílio Mola: “Não é inoportuna qualquer medida que destrua o moral do inimigo, e é preferível pô-la em prática imediatamente”. E assim foi. Alvo escolhido: Guernica.

Às primeiras horas da tarde de segunda-feira 26 de Abril de 1937, dia de mercado naquela pequena cidade basca, os bombardeiros que garantiam cobertura aérea à Legião Condor atacaram em força a cidade mais antiga do País Basco, centro da sua tradição cultural e, por isso, símbolo de importância vital para o povo basco. Guernica foi arrasada numa única e sinistra tarde de bombardeamentos contínuos pelos aviões da Legião Condor, a voarem baixo, a provocarem o terror e a morte, a fazerem tiro ao alvo contra homens, mulheres e crianças, destruindo caminhos e bosques em volta.

Na cidade em chamas, o fumo era tão intenso que nada se via a poucos metros de distância. Um padre basco, que chegara nesse dia a Guernica e testemunhou a tragédia, declarou, designadamente, ao jornal inglês The Times: “Ouviam-se gritos de dor por todo o lado e as pessoas cheias de terror ajoelhavam-se e erguiam as mãos ao céu, como se implorassem a providência divina… Como sacerdote católico, digo que não se podia infligir maior ofensa à religião do que o te deum celebrado à glória de Franco na igreja de Guernica, milagrosamente salva pelo heroísmo dos bombeiros de Bilbau”. Está hoje mais do que comprovado que Guernica foi destruída por bombas explosivas e incendiárias lançadas pelos aviões da Legião Condor, pilotados por alemães, e que o bombardeamento foi executado a pedido do alto comando das tropas nacionalistas de Emílio Mola.

Ao evocar o dia da destruição de Guernica, símbolo do ‘Holocausto Espanhol’ que Paul Preston descreveu num livro impressionante, devo lembrar o que escreveu o grande escritor francês, católico raro, coerente e justo, que foi Georges Bernanos: “Há dias em que nos dói a alma”. E nunca os deveremos esquecer…