Carlos Chaves. ‘Não gostava de ver militares fardados na rua. É um espetáculo indecoroso’

Carlos Chaves. ‘Não gostava de ver militares fardados na rua. É um espetáculo indecoroso’


Há cerca de um ano chamou “Mr. Magoo” a Azeredo Lopes por causa do roubo de Tancos – “Não vê nada”. Agora, também tem palavras pouco simpáticas para o sucessor de Azeredo na pasta da Defesa. Diz que Gomes Cravinho “não fez tudo mal” e está num papel difícil porque não há dinheiro. Mas critica-o…


Carlos Chaves dispara também na direção dos militares. “Não é por se vestir uma farda e andar numa academia militar que já se é patriota”. Ainda assim, omajor-general na reforma faz questão de esclarecer: “Não saí zangado, não saí deprimido, gostei muito de ser militar e gostei muito de por quatro vezes ir à política. Sou realizado. Quando saí, disse: ‘O Exército deu-me muito, mas eu também paguei com dedicação’. Temos as contas saldadas, ninguém deve nada a ninguém. Mas não estou afastado da luta pela instituição”.

Qual é a origem do mal-estar que se faz sentir nas Forças Armadas? Tem só que ver com a questão das carreiras especiais?

Todas as situações têm uma gota de água. Havia uma certa expectativa de que aquilo que se passou em diversos setores com este Governo – de voltar atrás, de emendar – fosse também muito rápido nas Forças Armadas. Eu sempre disse que não seria possível. Mas as pessoas foram acumulando algumas angústias. E quando se aperceberam do tratamento dos juízes, de que há acordos com os polícias, depois com os professores, esse sentimento rebentou. O ministro das Finanças disse – penso que numa entrevista ao Público – que já tinha concertado com o sindicato e as associações socioprofissionais a modalidade que ia ser instaurada. Ora, os chefes militares não foram consultados por ninguém.

Não foram ouvidos?

Não. Isto é o maior ‘pontapé’ que se pode dar na hierarquia e no prestígio dos chefes dos militares. No caso concreto, não merecem essa atitude por parte do Governo. Portanto as pessoas estão muito tensas. Não há golpes de Estado – isso é impraticável em democracia. Mas há um certo ruído de fundo que não é agradável.

O 25 de Abril começou com uma questão deste tipo, não é verdade?

Começou com um problema salarial puro e duro. Com a vinda para a Academia dos oficiais milicianos, e com uma progressão rápida na carreira. Já dizia o Ortega y Gasset que cada homem vale por si e pelas circunstâncias que o envolvem. E as circunstâncias neste momento são um bocadinho penosas. Os militares e a instituição ao longo destes anos têm sofrido reversões duras. Mas eram necessárias. Não podem sequer ser postas em causa. Só que gerou-se a expectativa de que agora ia ficar tudo bem muito rapidamente. Não é assim, porque até não há dinheiro.
Com o cenário de golpe fora de questão, em que poderia traduzir-se o descontentamento dos militares?
Com opiniões de desagrado nos órgãos na comunicação social, por exemplo. E não afasto a hipótese de uma manifestação. Não gostava de ver militares fardados na rua, acho que é um espetáculo indecoroso. Mas é possível.

E acha que estamos a caminhar para aí?

Estamos. As eleições aproximam-se e as pessoas vão tentar jogar no tabuleiro e chegar as pedras à frente. Depois as associações socioprofissionais estão muito politizadas e são nitidamente correias de transmissão. A única associação que me merece algum respeito é a Associação dos Militares na Reserva e na Reforma.

Porque são pessoas que não têm nada a ganhar nem a perder?

Imagine uma pessoa que está a dirigir. Num dia aparece na televisão a dizer umas barbaridades e no outro dia está a comandar?! Não é bom, não é saudável. Acho que as associações socioprofissionais foi uma moda, mas o presidente do sindicato dos militares têm que ser os chefes dos ramos.

Ainda há pouco reconheceu que não há dinheiro para responder a todas as exigências. Face a isso, qual seria a solução?

Tem de haver prioridades nacionais. Eu tenho as minhas:saúde à frente, a infância a seguir, a seguir a velhice, a seguir o ensino. As Forças Armadas, em tempo de paz, acima de tudo têm de ter um estado de preparação suficiente para se chegarem à frente no caso de haver um problema. Às vezes diz-se: é preciso comprar artilharia. Não é preciso, é preciso a artilharia mínima. Em caso de guerra o material aparece. O orçamento das Forças Armadas continua com uma composição muito desequilibrada. Gasta-se 65% a 70% em pessoal, depois fica o restante para investimento e para operação e manutenção. É curto. Mas é o que temos. Há quem faça muito barulho, alegando que a Nato impõe isto e aquilo… a NATO não impõe nada.

Mas é preciso estar preparado para participar nas missões, certo?

Temos de participar de acordo com as nossas capacidades. É verdade que somos corajosos, temos boas tropas especiais, os nossos comandos, paraquedistas, fuzileiros são bons e são reconhecidos na Europa. Mas temos tropa portuguesa em condições que dificilmente outro país aceitaria. O que estamos a fazer na República Centro-Africana é de alto risco.

E é exatamente o quê?

Estamos a tentar criar condições de paz para impor uma democracia. No Afeganistão estivemos a fazer a segurança do aeroporto de Cabul. É difícil – tive lá um familiar e sei bem o que aquilo é. Mas é para isso que existem as Forças Armadas. Sou contra esta ideia das Forças Armadas com creches e jardins de infância nos quartéis. As Forças Armadas são para exportar, não são para estar dentro dos quartéis. Já para não falar da questão das mulheres. Fui um grande defensor da entrada das mulheres nas fileiras mas tem de ter uma percentagem adequada. Na altura li um estudo de um sociólogo americano que dizia que não devem passar dos 14%. 

Porquê esse valor?

Segundo ele, porque elas são boas e mandam. E depois quem precisa de quotas somos nós [risos].

Neste momento qual é a percentagem de mulheres no Exército?

Estamos com 20%. Os 14% do sociólogo americano já lá vão.

Ao fim destes seis meses, que balanço faz do mandato do ministro João Cravinho?

Não lhe reconheço competências específicas na matéria, mas os lugares fazem-se.

E Cravinho tem conseguido isso?

Não digo que fez tudo mal, fez algumas coisas boas, nomeadamente não mexer no que estava feito. Mas acho que está a fazer uma passagem e não acredito que no próximo Governo continue como ministro da Defesa. Lembro-me sempre do dr. Vitorino, que quando viu onde estava metido, na primeira oportunidade disse que tinha pago pouca SISA quando até tinha pago mais do que devia! É muito difícil ser ministro da Defesa. O que fez Cravinho de significativamente mal? Vou dar um exemplo: ter convidado uma ex-ministra da Saúde para fazer um estudo sobre a saúde militar que já estava feito. Se ela não foi capaz de ser ministra da Saúde como é que vai fazer um estudo sobre a saúde militar? Além disso, é uma desautorização nítida do Chefe do Estado Maior, o almirante Silva Ribeiro.

Há um certo ressentimento das chefias militares por não serem escutadas pelo Governo?

Os militares estão habituados a colaborar. Não quer dizer que o façam sempre de boa-fé, mas estão. E é um facto que o ministro Cravinho, ou por inabilidade ou até por formação, não tem feito isso. Claro que eu também tenho de dizer que este modelo é um modelo difícil. O único interlocutor do poder político devia ser o Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas (CEMGFA). E essa mudança devia ser feita já, até porque não vamos ter outra oportunidade de ter um CEMGFA com a preparação, com a bagagem, com a personalidade do almirante Silva Ribeiro. Ter quatro chefes para o diálogo é difícil mas às vezes é cómodo: chama-se dividir para reinar. E há políticos que jogam isso com muita habilidade. Mas assim não vamos a lado nenhum.

E, no seu entender, a situação é mais difícil para os militares ou para o Governo?

Apesar de tudo para o Governo. Os militares hão de sobreviver, já sobreviveram a muita coisa. O Governo é que vai a eleições. O Governo está numa encruzilhada muito grande, tem muitos fogos para apagar ao mesmo tempo, casos a aparecer todos os dias, cada um vez mais grave que o anterior, e a gente sabe que, quando há erosão, o poder cai na rua. E eu não não tenho confiança nenhuma na capacidade do Presidente da República para lidar com uma crise a sério. Não é fiável nem confiável, e eu posso prová-lo. Numa situação de grande tensão, só tenho uma certeza:fará aquilo que lhe for mais conveniente.

O que pensam os militares deste Presidente?

Os antigos chefes estavam todos com o Sampaio da Nóvoa. Depois Marcelo fez um processo de cativação – nisso é exímio.Mas, para lhe dar um exemplo, foi a Angola e não foi ao cemitério onde estão os soldados portugueses. Isso deu um barulho de todo o tamanho. Disse que está a tratar da recuperação dos corpos, mas ninguém acredita nisso. E os militares não querem um civil em sentido, sentido fazem os fardados.

Deixe-me perguntar-lhe: os militares respeitam os políticos?

Um ministro, para ser respeitado, tem de se dar ao respeito. E é um lugar que se constrói. Porque se o ministro entra muito áspero, é um desastre; se entra muito mole, ninguém lhe liga. Tem de haver um equilíbrio. Diria que é preciso olhar para a idiossincrasia do que é ser militar, perceber os corpos sociais que ali se movimentam, os ativos, os agitadores, os porta-vozes, os manobradores que estão por trás. E muitas vezes esses manobradores já nem estão no ativo. Uma vez assisti, com um colega espanhol, a uma conferência de um general que estava na reforma. Quando terminou, o colega espanhol diz-me: ‘Carlos, aqui é como em Espanha. O general no ativo é muito reservado, um general na reserva é muito ativo’. [risos]

Esses militares na reserva, o que os move?

Vaidade, presunção. Veja o caso do presidente da Proteção Civil, que eu conheço bem, desde que eu era cadete e ele era capitão, servimos os dois na GNR, ele como comandante, eu como general subordinado dele. É uma pessoa ambiciosa e vaidosa e por dinheiro ou por protagonismo é capaz de tudo. E arranjou mais uma complicação agora ao Governo só por causa da sua posição protocolar. E depois tem um estatuto remuneratório que é uma coisa fantástica. A lei diz isto: a remuneração do presidente da Autoridade Nacional de Proteção Civil [ANPC] é igual à da autoridade mais bem paga participante na autoridade da proteção civil. Ora, se olharmos, vemos lá a autoridade aeronáutica, que é a mais bem paga do país. A isto chama-se habilidades.

Acha que o presidente da Proteção Civil tem de ser um militar?

Não. Só em circunstâncias excecionais. As duas grandes estruturas da Proteção Civil são por um lado os bombeiros e por outro os militares. Da parte dos bombeiros perguntam: ‘Por que não nós, porque é que nós nunca fomos?’. O presidente da ANPC deve ser uma pessoa com grande experiência política, competências administrativas e um indivíduo capaz de estabelecer o máximo denominador comum e não o menor denominador comum. Se algum dia pusessem um bombeiro a comandar uma unidade da tropa como é que eu fazia? Já tivemos diplomatas a serem ministros da Defesa. Os diplomatas aceitariam um general como ministro dos Negócios Estrangeiros? Cada macaco no seu galho. E os militares ao longo destes anos foram sempre fatores de instabilidade, nunca foram fatores de convergência de esforços, de apaziguamento, de união. Não, foram sempre um fator de divisão.

Tocou na questão dos bombeiros. Seria importante a profissionalização do corpo de bombeiros?

Hoje em dia não podemos depender só de voluntários. Tem de haver um corpo profissional de bombeiros que sustente as operações. O senhor presidente da Liga diz que tem 48 mil bombeiros. Não é verdade. Há bombeiros e bombeiros. Eu tenho o azar de cada vez que passo à porta dos bombeiros da minha terra, em S. Pedro do Sul, vejo dois homens de cerveja Sagres na mão… Os bombeiros têm de fazer um esforço muito grande de profissionalização e de organização para se posicionarem. Ninguém foi condenado a ser bombeiro, assim como ninguém foi condenado a ser militar. É um ato voluntário. Eu fui para a Academia Militar em 71, havia guerra de África. Fiquei muito contente com o 25 de Abril. Mas sabia que o meu destino era bater numa colónia.

Os militares têm as suas peculiaridades, as suas ‘manias’?

É um corpo social confuso, não é penetrável imediatamente, tem oficiais de diversas origens, uns que entram nas Academias militares aos 19 anos, outros da carreira ascendente, outros recrutados diretamente das faculdades, aos 24, 25 anos. Essa dialética também é positiva, quando os chefes têm inteligência suficiente para entender o que está em jogo, quais são as linhas de força. Mas isso exige que as pessoas passem menos tempo aos computadores e mais na rua. E hoje em dia os oficiais andam pouco na rua, passam o tempo nos seus gabinetes a olhar para o computador e na internet – coisas fabulosas, reconheço – mas o que se exige da vida militar é o contacto com o homem.

Mas deviam andar na rua a fazer o quê?

A inspecionar, a auditar, a ver se não há buracos na rede, a ver se as fechaduras estão lá no sítio… Não é uma coisa pidesca, é para ver se as coisas funcionam, para depois não haver surpresas. Se um chefe fica no gabinete, só lhe levam o que é agradável para ele ouvir. Se ele quer ouvir o que é verdadeiro, tem de ir para a rua. O Santos Costa [ministro da Defesa durante o Estado Novo, figura-chave do Exército], ia sempre às unidades de Lisboa, às nove da noite, dez da noite. Assim é que ele sabia o verdadeiro estado das unidades. Porque o comando impõe-se pela presença. Os homens têm de sentir o cheiro do comandante e vice-versa. Não é como há dias dizia o General Jerónimo, que conhecia os soldados pelas cuecas. Não sejamos tão exagerados. Mas lembro-me do general Firmino Miguel tratar toda a gente pelo nome. O que dá logo um sentido de proximidade. Isto perdeu-se um bocadinho porque as pessoas passam muito tempo nos computadores. É uma tentação…

E o que há de tão fascinante para um militar na internet?

Tudo. De todo o mundo. Aquilo que demorava um mês a pesquisar e tinha de se pedir livros, ir às bibliotecas, agora mete-se uma palavra e o computador busca. Dá-me informações de todo o mundo, até do inimigo, coisa que era impensável aqui há uns tempos. O Pacto de Varsóvia era uma coisa secreta. Completamente opaco. E mesmo aquilo que se obtinha suscitava-nos desconfiança. Hoje não, as coisas estão abertas. Já para não falar da ciberguerra. Não sei como é que isto vai terminar. Acho que o Bill Gates foi o Anti-Cristo. 

Agora fala-se de apagões de eletricidade na Venezuela. Apesar de tudo é mais benigno do que mandar uma bomba para lá…

É. Claro que os hospitais têm sistemas supletivos. Mas temos de ver as consequências da falta de energia. Pode matar pessoas.

No universo militar também há cada vez mais robots. Isso já acontece em Portugal?

Acontece, à nossa dimensão, à nossa escala. Mas nos exércitos evoluídos é uma coisa louca. E não sei quando é que o robot não se vira contra o humano. Vemos isso nos filmes de ficção. A inteligência artificial é inteligência, mas é artificial. 

Há muitas fações, rivalidades no Exército?

Os militares só funcionam em bloco para as questões salariais e corporativas. Os quartéis não são imunes às ideologias políticas. Lembro-me de uma conversa com um colega e um padre que teve lugar a seguir ao 25 de Abril. O meu colega disse: ‘Os comunistas até na Academia militar meteram gajos’. E diz o padre: ‘Até no seminário!’ [risos]. Nos quartéis também há representatividade das diferentes cores e ideias políticas. A Associação dos Profissionais da Guarda há algum tempo tinha como secretária a filha do Jerónimo [de Sousa]. Esta coisa das famílias não é de agora e não é só no PS. Há em todo o lado. Nós somos assim. O comandante supremo [o Presidente] diz que somos os melhores do mundo em tudo. Isso é demagogia e populismo do mais perigoso. Alguns militares também acham que são ungidos. Não. Não somos ungidos nem temos o exclusivo do patriotismo. Há pessoas que nunca pegaram numa arma e defendem mais a pátria do que nós que pegamos todos os dias. Até porque há muitos entre nós que são antipatriotas. Não é por se vestir uma farda e andar numa academia militar que já se é patriota.

Mas além disso também fazem um juramento…

O juramento ou é sentido, interiorizado e praticado ou é mais um ato gratuito. A pessoa que vai a tribunal também jura dizer a verdade. Os espanhóis vão ao exagero de beijar a bandeira um a um. Tudo bem. Mas depois é preciso justificar no dia-a-dia. Sou colega de curso do tenente-coronel piloto aviador Brandão Ferreira, dormíamos lado a lado. Sempre foi a antítese do militar. Alguém disse que a religião católica é tão boa, tão boa, que mesmo os padres que tentaram acabar com ela não conseguiram. E eu aplico isto aos militares. [risos]

Refere-se também ao episódio de Tancos?

Tancos é o barómetro mais duro, mais cruel de que as coisas não estão bem. É impossível uma coisa daquelas acontecer, portanto temos de saber rigorosamente o que aconteceu. E escusamos de andar aqui com fantasias. Temos de ser objetivos. Tem de se apurar.

Com as informações que lhe chegam, acha que isso vai ser possível?

Vamos lá chegar. A grande vantagem que tivemos foi a ‘intrusão’ da justiça civil nos quartéis. Porque os militares estavam convencidos de que eram um estado dentro do Estado. Não é verdade, não pode ser. Eu serei sempre a favor de que tudo o que é crime não cometido em teatro de guerra seja investigado pela justiça civil. Fizeram asneirolas graves porque não conheciam as leis. Claro que houve muita incúria, mas já nem falo no roubo, falo no tratamento que lhe foi dado. Depois um chefe vem dizer que o armamento era velho?! É contra o código de honra militar mentir. E mente-se contra o código de honra? Deliberadamente. Organizadamente. Mas em democracia há sempre um tempo em que a verdade vem ao de cima. A mentira não resiste ao tempo. Até porque há um momento em que os intervenientes se zangam e sabe-se tudo.