Lisboa caótica


Há uma tendência para a anarquia sistemática na cidade, onde cada um parece fazer o que quer e lhe apetece.


1. É preciso começar por dizer que Lisboa é das cidades mais bonitas do mundo e que aquilo que tem de mau se deve à incompetência, incúria e anarquia resultante, em boa parte, de quem a governa há anos.

Claro que importa reconhecer também que a cidade tem melhorado em bastantes aspetos urbanísticos, com intervenções estéticas e equipamentos de qualidade. É verdade, mas não chega porque, entretanto, se multiplicam exemplos de verdadeira anarquia urbana, como a torre da Fontes Pereira de Melo ou o mastodôntico hospital de Alcântara, para citar apenas dois casos e ignorar a prevista alteração na Praça de Espanha, que promete semear a confusão durante uns anos num eixo fundamental da cidade. E atenção: neste texto fala-se apenas de Lisboa cidade e não das condições de absoluta degradação que se verificam em algumas áreas periféricas nas zonas sul e norte.

Hoje, na nossa capital, temos lixo acumulado apesar de a receita do turismo ser astronómica e de os estrangeiros e portugueses que pernoitam na cidade pagarem uma pesada taxa diária de dois euros (antigamente 400 escudos, como convém referir para se ter uma ideia concreta das coisas). Passeios sujos com todo o tipo de dejetos (inclusive de animais) são mais do que vulgares. As trotinetas e bicicletas invadiram tudo e permitem uma nova e rápida mobilidade, mas a verdade é que os utilizadores circulam de forma anárquica, sem capacetes, muitas vezes com mais do que um passageiro e num estado de exaltação etílica preocupante. Depois são abandonadas à balda, tornando-se frequentemente obstáculos que, por exemplo, os invisuais não detetam. É o paradigma de algo que se fez sem planeamento. Junte-se a isso os tuk–tuks, conduzidos às vezes por sujeitos com um ar patibular que transformam os condutores de táxi em fidalgos de esmerada educação. Ao desordenamento dos táxis soma-se, entretanto, o dos carros da Uber e quejandos, que também circulam sem regras, parando de qualquer maneira. Ultimamente multiplicam-se empresas de entrega de tudo e mais alguma coisa em todo o lado, utilizando motos e bicicletas que fazem corridas frenéticas, ignorando passadeiras, semáforos e quaisquer outros sinais. Para cúmulo, temos uma Carris sempre fora de horas, um metro lento (com uma estação como a de Arroios, cujo empreiteiro desapareceu e a deixou ao abandono), uns comboios suburbanos lamentáveis, uma câmara sem resposta para nada e uma cidade em obras permanentes, a qualquer hora do dia, da noite e mesmo ao fim de semana. Como se não bastasse, há todo o tipo de corridas e eventos que cortam o trânsito sem dar alternativas aos indígenas. Existem também os esbirros da EMEL (uma autoridade típica de ditaduras latino-americanas ou do leste europeu, cuja própria provedora não se digna responder a queixas), que são uns autênticos cobradores do fraque, ao ponto de terem conseguido receitas para a cidade na ordem de 38 milhões de euros, boa parte dos quais por via de multas e reboques. E para onde vai a maquia? Indiretamente, para a polícia municipal, que é a mais bem equipada do retângulo nacional, que não serve para prender ou salvar quase ninguém, mas que é muito diligente a ajudar a EMEL, et pour cause. Os polícias camarários têm ainda a magnífica missão de tomar conta de obras, enquanto os agentes da PSP se arrastam com fardas debotadas em carros a cair de podres, com os quais não conseguem perseguir nenhum meliante, correndo o risco de serem atacados logo que chegam a bairros periféricos mais complicados onde os seus colegas municipais não vão.

Lisboa está difícil. É verdade que o turismo a faz viver e que a embelezou. Mas não é menos verdade que é complicado viver dentro dela. Muito do que tinha de genuíno e tranquilo está a desaparecer, substituído, nomeadamente, por extravagantes conceitos culinários a armar ao pingarelho ou por cadeias de comida rápida igual em todo o mundo. A culinária portuguesa, genuína e incomparável, já era.

Simultaneamente, são expulsos muitos lisboetas por via da lei Cristas e da incapacidade de albergar gente nova a preços aceitáveis. E a culpa não é do alojamento local, que trouxe postos de trabalho e restaurou a cidade. O problema está naquele clássico do humor brasileiro: “Não é que esteja caro, você é que está ganhando pouco”. Por muita propaganda que se faça e nos caia em cima, a realidade é essa e não muda há muitos anos.

2. Mário Centeno hostiliza Carlos Costa porque este não o promoveu no Banco de Portugal (BP). A história é antiga e há pratos que se comem frios. Agora, Centeno quer governamentalizar as nomeações no BP. O pretexto é aumentar a eficácia do regulador bancário, apesar de o método contraditar a legislação europeia e transformar os dirigentes do banco em funcionários públicos nacionais. Para o cidadão comum, que tem suportado os custos de todas as omissões na fiscalização feita pelo Banco de Portugal (BES, BPP, Banif, BPN, entre outros), é um caso bicudo para tomar partido. Por um lado, governamentaliza-se o BP, o que é mau. Por outro, pode ser que o BP passe a supervisionar e deixe de funcionar como uma entidade invisual. Arrisca-se mudar ou, para pior, já basta assim? Eis a questão.

3. Agora que se vive um certo revivalismo da AD, talvez seja útil recordar que aquela aliança foi criada numa altura muito específica em que Portugal vivia numa espécie de sistema eurocomunista, em que existia uma economia estatizada por efeito do 11 de Março de 75. A AD foi, basicamente, um movimento de libertação da sociedade civil, nascido numa época em que só havia uma televisão que era pública, em que todos os jornais eram do Estado, em que não havia rádios privadas (tirando a Renascença), em que a reforma agrária ainda ocupava grande parte do Alentejo através de cooperativas agrícolas, em que não existia Tribunal Constitucional, mas um Conselho da Revolução que estava acima do governo, e em que só um militar teve condições de ser Presidente da República e que acumulava essas funções com as de chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. A AD de Sá Carneiro, Freitas do Amaral, Ribeiro Telles (líder vanguardista de um PPM ecologista e ambientalista antes de todos) foi um movimento de libertação e um estado de espírito de uma vasta franja da população que estava farta do espartilho em que vivia. Será repetível?

 

Escreve à quarta-feira