Faz hoje vinte anos que Marcelo Rebelo de Sousa se demitiu da liderança do PSD e hipotecou a possibilidade de chegar a primeiro-ministro. A história podia contar-se em duas linhas: Marcelo perdeu a confiança em Portas e deixou a liderança. É, porém, mais complexa do que isso e envolve traições, investigações judiciais e uma entrevista explosiva.
O país era governado por António Guterres e a vida não estava fácil para o PSD quando, em 1996, Marcelo chegou à liderança do partido. No ano seguinte, Portas foi eleito presidente do CDS. As fracas sondagens faziam o agora Presidente da República acreditar que a única solução para vencer os socialistas passava por uma nova AD.
Existiam, no entanto, vários problemas a ultrapassar. As manchetes do jornal O Independente contra o cavaquismo deixaram marcas profundas no PSD e a relação entre Marcelo e Portas era tudo menos pacífica. Ainda hoje circula nas redes sociais a célebre entrevista de Paulo Portas no programa Parabéns de Herman José em que o então diretor d’O Independente arrasa Marcelo. “Costumo dizer que ele é filho de Deus e do Diabo. Deus deu-lhe a inteligência e o Diabo deu-lhe a maldade”. Portas queixava-se de que Marcelo lhe tinha passado informações falsas sobre um jantar no Palácio de Belém em que supostamente tinha sido servida vichyssoise. “Era tudo mentira. Tudo mentira. Os nomes, as pessoas, o que tinha cada um dito e até a ementa”, garantia Portas.
Nada disso travou Marcelo e a história do congresso de Tavira, em março de 1998, fez-se à volta da nova AD. O então líder do partido não podia ter sido mais ousado quando pediu dois terços para aprovar a sua estratégia. Contra ele tinha nomes de peso como Cavaco Silva, Durão Barroso ou Dias Loureiro. “As bases odiavam Paulo Portas. Era uma das pessoas que mais tinha contribuído para a queda do cavaquismo e o partido ainda estava a lamber feridas”, escreve o jornalista Vítor Matos, na biografia de Marcelo Rebelo de Sousa. Ao contrário do que muitos previam, a estratégia do líder saiu vencedora e a AD seguiu em frente mesmo com Durão Barroso a protestar contra a ideia de levar Portas “às cavalitas”.
“APOSTO NA AD” Uns meses depois do congresso, Marcelo dava uma entrevista à RTP e garantia que as divergências estavam ultrapassadas. “Joguei tudo no congresso de Tavira, porque não tinha dúvidas. Eu aposto na AD. Aposto nessa convergência de esforços. Até os adversários da ideia da AD reconhecem, hoje, que ela é fundamental”. Nessa entrevista, Marcelo elogiou a liderança “notável” de Paulo Portas e explicou a turbulência no PSD com a garantia de que era apenas uma consequência de não ter lugares para distribuir. “Só tenho convicções para dar”.
O CASO MODERNA Mas o pior estava para vir. No início do ano de 1999 rebentou o caso Moderna e Paulo Portas, que tinha sido diretor do centro de sondagens da universidade, viu-se envolvido no meio do escândalo. O PSD entrou em pânico e “Marcelo nunca apareceu em público a dar a mão a Paulo Portas e deixa-o fritar em lume brando a ver se ele aguenta”, recorda Vítor Matos.
Não aguentou. A falta de solidariedade do PSD desagradou aos centristas. O clima de desconfiança entre os dois aumentava de dia para dia e Portas resolve dar uma entrevista em que revela conversas privadas com Marcelo e sugere o fim da AD. António Capucho, que se tinha demitido do cargo de secretário-geral em rutura com o líder, recorda que a entrevista a Margarida Marante foi fatal. “O Marcelo e o PSD sentiram-se ofendidos. A razão de fundo [para o fim da AD] foi a manifesta falta de confiança do Marcelo no Paulo Portas. O que não admira tendo em conta que o comportamento deste putativo parceiro do PSD era bastante errático”.
Marcelo Rebelo de Sousa ainda ouviu muitos apelos para continuar, mesmo sem coligação, mas foi inflexível. Apostou tudo nesta aliança e entendeu que bater com a porta era a única solução depois de ter perdido a confiança no líder do CDS. Artur Torres Pereira, que era nessa altura secretário-geral do partido, prefere não entrar em detalhes, mas considera que “não estava nas mãos do PSD evitar determinados acontecimentos”. Vinte anos depois, Torres Pereira confessa que preferia que Marcelo não se tivesse demitido. “Foi uma decisão dele, tive muita pena que não tivesse sido primeiro-ministro de Portugal. Tive muita pena e vou ter pena toda a vida. Não tenho dúvidas de que o país teria sido poupado a muitas coisas negativas que se passaram nos últimos anos”, diz o então secretário-geral do PSD.