O fracasso do pacto da justiça


As sucessivas propostas de pactos para a justiça ou não têm levado a nada, ou têm levadoa resultados absolutamente desastrosos para o nosso sistema de justiça


Em entrevista ao “Público” do passado fim-de-semana, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça declarou que “apesar das esperanças do Presidente da República, o pacto da justiça terá abortado”, não existindo “até ao momento qualquer iniciativa para o recuperar, nem total nem parcialmente”. Avisou, porém, os políticos de que o sector da justiça “não pode ser uma disputa permanente em termos político-partidários, porque isso desestabiliza o funcionamento do sistema”.

Pela nossa parte, sempre tivemos ocasião de criticar as sucessivas iniciativas de pactos para a justiça com que o sector da justiça anda entretido, pelo menos, desde 2003. Efectivamente, a primeira iniciativa de pacto para a justiça deveu–se a José Miguel Júdice que, quando era bastonário da Ordem dos Advogados, quis organizar um Congresso da Justiça do qual deveria sair um pacto para a justiça, que acabou por ser assinado em 2006 entre os grupos parlamentares do PS e do PSD. Esse pacto viria a ser rompido em 2008 pelo PSD, depois de ter conduzido a reformas desastrosas na justiça que, aliás, passaram com muito pouca contestação. Entre estas esteve o alargamento da possibilidade de suspensão das penas para crimes com penas de prisão até aos cinco anos, que hoje muita gente contesta, mas que na altura poucos criticaram.

Uma década depois, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, na abertura do ano judiciário em 2016, apelou novamente a que os agentes do sector se entendessem para organizar um pacto para a justiça. Segundo ele, o pacto partiria de uma base de consenso entre os agentes da justiça – magistrados, advogados, funcionários, universitários – e só depois deveria evoluir para a aprovação pelos partidos políticos. No seu entender, seriam os parceiros não partidários do mundo da justiça que deveriam “criar plataformas de entendimento que possam abrir caminho aos partidos políticos”. O apelo do Presidente da República foi seguido e, em Janeiro de 2018, foi efectivamente assinado um pacto para a justiça entre as associações sindicais dos magistrados e funcionários judiciais e as ordens dos advogados e dos solicitadores e agentes de execução. Esse pacto foi entregue pelos agentes do sector, em audiência no Palácio de Belém, ao Presidente da República, o qual “saudou a originalidade do contributo”, apelando a que os partidos também chegassem a consenso nas medidas apresentadas e desejando que “assim fosse também noutras áreas da sociedade portuguesa”, como a segurança social, a saúde e a educação.

Esse pacto continha 88 propostas, entre as quais estava a redução das custas judiciais, que todo o sector deseja, e que tem aspectos já declarados inconstitucionais, mas a verdade é que o governo e os partidos políticos não pegaram minimamente nessas propostas, tendo sido colocado na gaveta o referido pacto. Não espanta, por isso, que agora apareça o presidente do Supremo Tribunal de Justiça a reconhecer o fracasso do mesmo. Esperar-se-ia, porém, que o Presidente da República explicasse as razões por que o seu apelo caiu em saco roto e se responsabilizasse pessoalmente pelo ocorrido. Na verdade, não se mobiliza o sector para construir consensos sem assegurar pelo menos que há disponibilidade do poder político para dar sequência ao trabalho realizado. Fazer isso é brincar com os profissionais do sector e com uma área tão relevante para os cidadãos como a justiça.

As sucessivas propostas de pactos para a justiça ou não têm levado a nada, ou têm levado a resultados absolutamente desastrosos para o nosso sistema de justiça. É, por isso, mais do que altura de os profissionais do sector se deixarem de seguir os cantos de sereia do poder político a sugerir estas iniciativas, já que das mesmas não resultou até agora nada de positivo. A justiça não precisa de pactos que exprimem propostas vagas das quais nada de relevante resulta. Precisa de medidas concretas pelas quais o poder político tem de se responsabilizar. É altura de o sector da justiça abandonar os consensos vazios e passar a exigir as reformas que têm de ser feitas.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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