Manuel Vilas. “A força da literatura é falar das coisas de que ninguém quer falar”

Manuel Vilas. “A força da literatura é falar das coisas de que ninguém quer falar”


“Em tudo havia beleza” – um romance que se lê como uma estupenda crónica, alongando-se por 400 páginas. O autor, Manuel Vilas (Barbastro, 1962), não doura a pílula, não se poupa nem ao leitor; escreve como quem se salva de um espectacular naufrágio, depois de, aos 50 anos, ter dado por si órfão, divorciado, sem…


Talvez nem praguejando se consiga ir longe o suficiente, nem com a boca cheia das asneiras mais grossas, como quem se exalta, perde a cabeça recomendando um livro e acaba às cabeçadas. Mas será pelo menos uma boa tentativa se quisermos ser leais ao espanto que nos toma com o achamento de “Em tudo havia beleza” (“Ordesa”, no original). A avançar por ela, com a carne enfurecida, esta obra de Manuel Vilas dá-nos os motivos para se incomodar muita gente, acordar alguns ao estalo. Mas se de louvores a coisa já tem o saco cheio, está meio enfastiada até de tanto elogio, tentemos situá-la um pouco melhor. Estava-se em 2014, a colher em pleno os efeitos da crise económica, em Espanha como por cá; Vilas entrava pelos 50 anos ficando órfão. Dez anos depois do pai, morria-lhe a mãe, e a pata que tinha em cima ainda o pisoteou, com um divórcio da mulher de quem tem dois filhos. Para ajudar a compor o desastre, nesse fim de linha tinha ainda de lidar com o alcoolismo, esse buraco por onde se metia saindo do outro lado numas figuras de meter dó. E isto tudo é-nos contado em capítulos irregulares, curtos, ao ritmo das lembranças, num lúcido canal que, desde logo, não se põe a saltar à corda da auto-ficção para justificar pretensões literárias. É um livro assumidamente autobiográfico, uma obra em que o que menos interessa é discutir questões de etiqueta literária. Aqui, estamos fora desses programas de incentivo, há muito que os dentes de leite da escrita foram cuspidos, os definitivos também caíram, e agora, se é preciso, morde-se com as gengivas, numa escrita que se sente como uma faca só lâmina, “qual uma faca íntima/ ou faca de uso interno,/ habitando num corpo/ como o próprio esqueleto” (João Cabral de Melo Neto). De resto, foi como poeta que Manuel Vilas primeiro foi assinando as suas investidas, e obteve algum reconhecimento. Nada que se compare, no entanto, ao sucesso que alcançou “Ordesa” ao ser publicado no início do ano passado. E também assim retiramos uma comparação que não nos é nada favorável, se virmos que nas listas de livros do ano os espanhóis eram instigados a meter-se com uma obra que não quer nada com meias tintas, uma visão que balança entre a acidez crítica mas demolidora (começando pela forma como o narrador passa o escalpelo pelo seu próprio carácter, os seus medos e fracassos), uma escrita mordida por tudo o que há de pulgas, e que obriga o leitor a seguir de tão perto, a ascultar-se a si mesmo. Por outro lado, culturalmente, isto também nos mostra como, com a nossa autosuficiência provinciana, enquanto por cá engolíamos as recomendações do que é nacional, Elietes e demais “Emmas desflaubertizadas”, do outro lado da fronteira, ao invés de os leitores andarem “amolentados com soluços e choros” de ficções comezinhas, só para distrair a cuca, nuestros hermanos ofereciam a pança, recebiam em cheio este golpe no estômago. Agora, vamos ver que repercussão tem o livro por cá.
Entretanto, o autor deu um salto a Lisboa, e mal se terá dado por ele entre as centenas rumaram à Póvoa de Varzim, para celebrar os vinte anos das Correntes, o evento máximo das nossas letras e que, por uns dias, falhou o carnaval, uma coincidência que certamente lhe teria feito toda a justiça.

Passou uma temporada nos EUA… O que ensinava?
Escrita criativa, na Universidade de Iowa. Foi só um ano.

E agora que voltou a Madrid, o que faz?
Vivo dedicado a isto. O livro foi um êxito em Espanha, e foi publicado numa série de países. Estive na Colômbia, no México, no Peru, a promovê-lo. Agora estou aqui, na semana que vem vou a Itália… Ando nisto.

Começou pela poesia… Mas deixou-a de lado?
Sim, tenho-me dedicado mais ao romance. Mas, antes deste livro, era mais conhecido como poeta. Na verdade não acredito nessa coisa dos géneros literários. Acho que é mais útil por motivos pedagógicos, mas quem trabalha com literatura livra-se dessas definições. 

O que acha do Javier Marías?
Gosto bastante. Acho que é um grande escritor.

Recentemente, na crónica dele no “El País”, lançou um vigoroso ataque à literatura autobiográfica, à auto-ficção, etc…
Sim, eu li-a.

Sentiu-se visado?
Não, não senti que fosse um dos alvos dele. O diagnóstico que ele fazia não acho que me inclua. Aquilo que tenho escrito está em diálogo com autores como Proust, ou seja, é uma literatura que tem um nível autobiográfico, mas que não serve para partilhar agruras ou expor-me de forma dolorida.

Sei que tem também uma admiração grande pela obra de [Karl Ove] Knausgård.
Sim. É verdade que Javier Marías se atirava ao Knausgård, mas creio que o fez injustamente. Parece-me que é o autor de uma das grandes aventuras literárias que produziu o romance europeu [os seis volumes de “A Minha Luta”]. Trata-se de um projecto literário de uma ambição desmedida, e que abre caminhos – essa narração de uma vida comum… Eu gosto muito do que escreve Knausgård. Também gosto do que escreve Marías. Não creio que na literatura tenhamos de eleger uma via. Podemos ir buscar lições às diferentes escolas.

Sente que “Ordesa” tem uma dívida para com a obra de Knausgård?
Anda lá perto, mas não penso que tenha sido uma influência. Acho que foi uma coincidência. Li-o mas não foi o que me levou a escrever este livro. Na literatura ocidental há uma necessidade dos escritores reflectirem sobre as suas próprias vidas. Repara que também “O Livro do Desasssossego” é, em certo sentido, uma obra autobiográfica. Hoje, há uma série de autores que escolhem esta abordagem, e parece-me que isto se liga ao próprio momento que vivemos, uma espécie de autópsia do ego, que diz muito sobre a actualidade.

E de que modo lhe parece que tem evoluído o romance entendido como esse género omnívoro?
O romance é, de facto, um género omnívoro. Um dos aspectos que lhe confere grandeza é caber lá tudo. Tanto se serve de uma reportagem jornalística, simula uma conversa, tem margem para o que vai por aí nas colunas de opinião, pode integrar um poema, uma carta, uma chamada telefónica – é esse ser que se define pela capacidade de tudo devorar. Por isso, também o autobiográfico integra perfeitamente.

Por outro lado, um dos seus princípios é a forma como faz uso da imaginação, e não vive sem a capacidade de criar algum grau de autonomia face à realidade, criando personagens, estabelecendo leis próprias, desligando-se até da vida do seu autor?
A imaginação, a ficção pura é-lhe útil, mas a vida do autor também pode encher esse grande estômago. Para mim, o fim último do romance é provocar o leitor, devorá-lo também a ele. Emocioná-lo. E a emoção tanto a ficção pura a trabalha como a autobiografia. Um bom leitor de romances não está muito preocupado com essas fronteiras a que a teoria literária vai dando relevo. Este leitor abre o livro e, seja o que for que encontre, serve-lhe, contando que, de algum modo, lhe diga respeito. Seja capaz de tratar com ele, puxá-lo para si. No meu entender, qualquer estratégia literária é válida se conseguir dominar o leitor.

Foram saindo tantas críticas ao seu livro, mas lendo-as, se se percebe que causou impacto, apesar de todo o louvor, não me parece que entrem em diálogo com o livro… 
É um livro que convoca o íntimo, um livro que toca questões como o divórcio, o alcoolismo, a morte do pai e da mãe… Há um retrato político de Espanha, a convocação da sua História, e admito que o leitor se sinta como que golpeado. Acho que um romance com esta carga de intensidade remete o leitor para as suas experiências pessoais e talvez seja difícil falar sobre o livro sem discutir a relação que se teve com os seus próprios pais. A família, a perda, são temas universais, mas que nos tocam de forma íntima. É difícil discutir um romance que vive tanto da própria vivência íntima do leitor.

E a crítica? Não lhe desagrada esta incapacidade de ir além do elogio ou, então, ser indiferente a uma obra?
(Ri-se) Em Espanha, o livro esteve nas listas dos melhores do ano, foi o livro do ano para publicações como o “Babelia”, e gozou de uma enorme fortuna crítica. Ainda estou à espera de uma crítica negativa (risos). Acho que é difícil falar de um livro que acima de tudo nos comove. 

Um tema que encontra tradução imediata em Portugal é a questão da classe média-baixa, e disso ser uma mistificação.
A classe média é universal. Ao falar deste livro noutros países, nomeadamente na Colômbia e no México, dei-me conta de que a classe média respeita a todos: o desejo de constituir família, ter-se um automóvel, uma máquina de lavar louça ou roupa, ou uma televisão; ter os filhos com boas notas na escola, de modo a que possam ir para a Universidade… Essas são as preocupações das pessoas, e a classe média é hoje o que o proletariado foi no século XIX. O êxito de “Roma”, o filme de Alfonso Cuarón, é porque retrata a vida da classe média, e isso é um retrato que abarca realidades em todo o mundo. 

Mas uma das denúncias deste romance é que a chamada classe média-baixa não passa de uma espécie de paliativo em termos de definição social, porque a classe média-baixa são já os pobres. Não acha que a força deste romance lhe vem da coragem do narrador assumir a classe à qual pertence?
Para mim era importante mostrar que a minha família viveu a pobreza. Era uma classe média que nos anos 60 vivia relativamente bem, mas que, com a crise de 1973, que foi sentida em vários países, passou bastante mal. O meu pai ficou quase sem trabalho. Senti que era preciso desvendar o que é pertencer a essa classe média-baixa, que só na aparência é classe média, mas sente na pele a miséria, e está a um pequeno infortúnio de ficar completamente desamparada. Acho que esse foi um dos aspectos importantes do romance, o ter assinalado isso. Creio que o mesmo se aplica a Portugal. E esta última crise, em 2008, levou a que as pessoas se dessem conta de que a classe média-baixa é uma ficção. São pessoas que têm emprego e que têm o suficiente para se sustentar, mas apenas para continuar a trabalhar. Esta crise, no fundo, o que fez foi destruir a classe média. 

Não sente que a literatura e muita da arte tem participado num encobrimento? Às tantas, andamos a ler romances que não fazem mais que distrair-nos daquilo que são as lutas do nosso tempo.
Sim, é preciso que haja na literatura alguma urgência de reflectir de forma crítica sobre a sociedade, ter uma percepção de como está o mundo hoje. Este meu romance é realista porque põe sobre a mesa a realidade social e histórica em que estamos metidos. Há toda uma literatura que serve como entretenimento e que não se interessa por qualquer forma de crítica social. Esse não é o meu caso. O meu é um romance construído de forma crítica, que quer enfrentar o capitalismo, que encara esta ansiedade de ter, de ganhar mais. 

Um dos momentos mais fortes é a descrição da visita que faz ao palácio dos reis de Espanha, para participar numa homenagem ao escritor Juan Goytisolo, quando se põe a imaginar quanto ganham os guardas que estão ali, de pé, segurando lanças. Diz-nos que, hoje, quando sabemos quanto ganha uma pessoa a vemos como se estivesse nua. 
A literatura de verdade é a que nos fala de coisas concretas. Em Espanha dizemos literatura pura e dura. A sua força é falar das coisas de que ninguém quer falar. No meu livro, a morte é uma questão que está sempre presente. Nessa recepção dos reis de Espanha, o narrador não está a pensar em ir mostrar-se mas põe-se a imaginar quanto ganharão os soldados que ali estão de pé, com as lanças. Há um outro momento em que o narrador diz que a pergunta mais importante que podes fazer a outra pessoa é quanto ganha ao mês e quem são o seu pai e a sua mãe. Portanto, há um esforço neste romance de expor nuamente a realidade social e económica em que vivemos.

Agora que anda a viajar para apresentar o seu livro, e está prestes a ir para a Póvoa de Varzim, para participar no Correntes d’Escritas, gostaria de saber se lhe parece que esses ambientes onde se celebra a literatura promovem um debate honesto, realista, sobre a realidade.
Acho que, nos eventos sociais, ficamos por detrás de um vidro, de uma barreira de comodidade que nos impede de falar das coisas que realmente importam. Não falamos de dinheiro, não falamos de quanto ganhamos, mas sabemos que o dinheiro e a nossa posição no mercado de trabalho é o que mais importa nas nossas sociedades. Tentamos evitar falar destas coisas, mas é aquilo que está nas entrelinhas e que consome mais a nossa atenção. A hipocrisia é, por isso, a moeda corrente nas relações que mantemos socialmente.

Um dos aspectos que mais me impressionou no livro foi o debate que vai mantendo consigo mesmo por ter cremado os seus pais, acabando por se decidir já depois que teria sido melhor enterrá-los. 
Ao contrário do meu pai, a minha mãe não me chegou a expressar essa última vontade, de ser cremada ou enterrada. Se os teus pais não te dizem o que preferem a decisão recai sobre ti. O mais fácil é a cremação. Toda a gente te irá dizer que é a opção mais ecológica, mais económica, mais simples, mais fácil. A inumação mantém o resto orgânico, permite a perseverança dos ossos. A cremação, não. É a desaparição absoluta do corpo. É um gesto radical, ao passo que o enterro te deixa com um último lugar onde um resto permanece. Eu queria falar disso, das dúvidas que tive na hora de tomar uma decisão.

Porque é que este tema se torna tão central? 
Na tradição, o costume era enterrar aqueles que nos são próximos. Hoje, toda a gente opta pela cremação, mas acho que isso ocorre porque é mais fácil e mais barato. Não tens que pensar no túmulo. Dão-te uma caixa com as cinzas e lá vais tu espalhá-las no mar ou onde quer que seja. Senti-me culpado por ter tomado a decisão de cremar a minha mãe. Na hora, não sabes muito bem o que fazer. O melhor é que sejam os teus pais a decidi-lo, mas é claro que se trata de um assunto muito incómodo, e nenhum filho deseja tomar a iniciativa de ter essa conversa. “Pai, mãe, o que devemos fazer quando chegar a hora…” Não vais querer perguntar-lhes isso.

Depois de o Sebald ter usado fotografias nos livros vulgarizou-se essa opção e, hoje, há uma praga de livros que o fazem a despropósito. No seu livro, quando nos deparamos com fotografias, estas tornam-se gatilhos esplendorosos. Uma das mais fortes é a fotografia do seu pai, ainda antes de ser casado ou ter filhos. Agora que também tem dois filhos, gostava de saber se imagina como eles irão relacionar-se um dia, não com fotografias suas, mas com livros como este. Sendo que, no seu caso, há até o risco de os livros ficarem até para além dos seus filhos… 
Quando eu tiver morrido, e os meus filhos se virarem para este livro, creio que ele será como um templo. O lugar onde irão para se encontrar com o pai. Tal como hoje temos a internet, que nos liga uns aos outros de forma instantânea e ultrapassando as distâncias físicas, também há uma conexão entre vivos e mortos. Qualquer pessoa que já tenha perdido o pai ou a mãe tem uma ligação com o mundo dos mortos. “Ordesa” será como o modem (risos) na ligação entre mim e os meus filhos quando eu tiver morrido. Venho do norte de Espanha, e no ambiente rural de onde provenho havia uma comunicação constante com os mortos. Os mortos estão presentes, não se afastam, não são banidos, mas permanecem com os vivos, que continuam a relacionar-se e a falar com eles. Porque se foram importantes na tua vida não consegues simplesmente esquecê-los, deixá-los ir, mas guardas um espaço para eles no teu quotidiano. “Ordesa” será a forma de os meus filhos me terem perto. Quando o lerem, dirão: “este era o meu pai”.

Ao falar sobre a monarquia discute também essa questão da permanência…
A ideia simbólica da monarquia é que uma família tem uma longa linhagem cujo rasto se conhece. O rei sabe quem foi o seu tetravô e pode ver o seu retrato, comparar-se-lhe. A maioria de nós não tem memória para lá dos familiares que conhecemos vivos, ou daquilo que nos foi contado sobre os nossos antepassados. Hoje, parece-me que a classe média, através dos livros, está a construir a sua memória familiar. Algo que antes apenas a aristocracia tinha condições de fazer. Antes só os ricos conheciam a sua árvore genealógica, e usavam a pintura para criar um álbum de família. Acho que há muitos escritores que provêem da classe média que narram a história das suas famílias da mesma forma que a aristocracia, nos séculos XVIII, XIX, mandavam pintar os membros da sua família, para persistir face ao tempo e chegar às gerações vindouras.

Hoje, vivemos uma época em que há um excesso de fotografias e outros registos. Se a internet não desaparecer, vamos todos deixar aos nossos filhos, não uns poucos retratos, mas uma abundância nauseante…
Sim, tenho pensado sobre isso. Provavelmente, terão demasiadas fotografias. 

E saberão demasiadas coisas dos seus pais?
Haverá milhares de fotografias e outros registos, mas apenas quatro ou cinco irão ser preservadas… Não sei bem. Ainda não encontrei uma resposta para essa questão. Há muito que me questiono sobre isso, porque eu passo a vida com a máquina, e vou fazendo fotografias, e dou-me conta de que tenho já demasiadas fotografias. O que é que vai acontecer dentro de uns 30 anos? Os meus filhos terão tantas fotos do pai… Mas penso que três ou quatro fotos serão marcantes, aquelas onde se tornará mais aparente a passagem do tempo. O que acho é que eles terão muito mais por onde escolher, mas que essas quatro ou cinco, talvez dez fotografias, serão as importantes. Mas é claro que me causa grande perplexidade pensar sobre um tempo que produz tantos registos, que está constantemente a tentar preservar-se, controlar e amplificar os seus ecos…

Não poderá resultar disto um problema de excesso de memória? E as pessoas às tantas não quererem…
Guardar nenhuma (risos).

Sim, habituarem-se a desprezar o que lhes chega do passado.
Não sei…

Um pouco como a cremação.
Sim, vou pensar sobre isso. A verdade é que ando com essa questão há algum tempo mas não consegui ainda… É uma coisa que me preocupa. O que acontecerá a todos estes registos?… Talvez daqui a uns dois ou três anos possamos reencontrar-nos e, então, talvez eu tenha uma resposta para te dar.

Combinado. Há neste livro uma reflexão muito inquietante sobre as vítimas. Diz-nos que, na verdade, ninguém se interessa pelas vítimas, e que o interessa são os heróis. Num momento em que a nossa sociedade tem como um dos seus passatempos preferidos esta tentação de descobrir vítimas em toda a parte…
Hoje há uma sacralização das vítimas, mas o que se percebe é que isto é acompanhado de um desprezo íntimo pelas vítimas. Compadecemo-nos num primeiro momento, mas, no nosso íntimo, sentimos por elas também algum desprezo. Como escrevi, a culpa é irredimível. Criámos esta condição para as vítimas que a mim não me convence. O estatuto da vítima parece algo que se eterniza, como um papel que se espera que representes até ao último dos teus dias. Isto impede-te de viver de uma forma sã e natural, e, por outro lado, obriga os demais a compadecerem-se das vítimas. Creio que há um excesso de vitimização das pessoas no momento actual. O mero facto de se estar vivo já é para muitos uma pena gravosa, já é o suficiente para que muitas pessoas busquem aquilo que faz delas vítimas. Por isso fui levado a pensar que é preciso evadirmo-nos deste ciclo vicioso: a ideia da vítima.

Acredita que haverá um momento em que, face à tentação de moralizar todos os aspectos da vida em sociedade, e tentando fabricar a imagem idílica de uma sociedade que não produz vítimas, chegaremos a um ponto em que a arte poderá vir a ser neutralizada?
A vigência da literatura passa pela sua capacidade de reflectir a vida, e a vida é imperfeita. E se o é, o reflexo dela na literatura tem que abrir margem para que essa imperfeição tenha reflexo na literatura. Uma literatura edulcorada é falsa. A literatura não vai longe se rejeitar a violência que faz parte da vida. O politicamente correcto não funciona na literatura, porque se a vida nos for contada segundo esses termos soa-nos falsa. O politicamente correcto é essa imposição que pretende polir tudo aquilo que nos fala da vida em termos crus. A partir do momento em que se corrige o reflexo, a arte torna-se estéril.

A forma como este livro conta a sua história pessoal, servindo um reflexo bastante tangível do que é a própria História da Espanha nos últimos tempos, foi assinalada pela crítica. Espanha vive um momento político bastante conturbado, ameaçada de desagregação… Parece a vida de uma pessoa, a passar por um divórcio. 
Há certamente, neste livro, uma visão crítica de Espanha. Sobretudo da direita espanhola, e do franquismo, como é óbvio. A visão da monarquia também é bastante crítica, mas acima de tudo há uma reivindicação política da classe média. Hoje, estamos a viver uma crise política importante, com o independentismo por um lado… Mas, na verdade, tudo são consequências da crise económica. A força do movimento independentista da Catalunha é uma consequência da crise. A aparição de grupos políticos extremistas como o Podemos ou o Vox é também uma consequência da crise. E o que foi a crise económica? Foi um ataque directo à prosperidade da classe média. De repente, a classe média foi proletarizada. Perdeu as suas conquistas e voltou a ser o que foi antes do século XX: trabalhadores, explorados, gente que trabalha 12 horas e não consegue pagar as contas. É aqui que reside a crise.

E como pretendeu que isso transparecesse no livro? 
O narrador deste livro está a pensar como superar isto. A certa altura, depois do divórcio, depois de ter deixado o seu trabalho, torna-se uma obsessão o esforço para conseguir pagar as contas. Isto é uma experiência comum a toda a classe média-baixa hoje. O que o narrador quer não é enriquecer mas tão-só livrar-se desta sombra, desta ameaça constante de não ter como pagar as contas. O tema fundamental deste romance é o capitalismo. Estamos todos metidos neste regime e não sabemos como escapar-lhe. É uma espécie de grande besta: compra um carro, compra uma casa, ganha mais, trabalha mais… E para onde vamos com isto, onde nos leva toda esta compulsão?

A certa altura diz-nos que o dinheiro é Deus, que vivemos voltados para o dinheiro, e lhe prestamos culto. Que antídoto é que arranjou para se livrar dessa pressão?
O antídoto contra a alienação capitalista é o amor do pai e da mãe. Assim, o narrador vira-se para a infância como o lugar onde o capitalismo não tinha ainda entrado. Na relação com o pai e a mãe, quando tinha 10 ou 11 anos, foi o seu ponto de ancoragem. Por isso, o romance é uma busca dessa idade perdida da inocência, quando era miúdo e os pais protegiam a sua vida. Essa pergunta é muito importante, porque, na verdade, todo o romance é a reconstituição dessa inocência, do tempo em que, na vida do narrador, não era o mal a força dominante. No reencontro com o pai e com a mãe é como se o narrador buscasse um território sagrado, e, no fundo, essa busca tem algo de religioso. A figura do pai e da mãe assumem uma presença divina, são como deuses…

E como é que isso afecta a sua maneira de se relacionar com os seus filhos?
Bem, eles não leram o romance. Andam pelos vinte anos. Mas ainda não o leram. Imagino que um dia, mais velhos, o façam. 

E como é que a relação que hoje tem com os seus pais leva a que se projecte como pai? A certa altura diz que o maior desejo de um pai é deixar as coisas limpas, não lhes deixar…
Preocupações. Não sei. A essa pergunta não te sei responder. Não faço a menor ideia de como irão eles relacionar-se um dia com a memória que tiverem de mim. Espero que, neste romance, encontrem amor. O sentimento que me interessava ao escrever este romance era a compreensão, a empatia, o amor. Há já bastantes coisas no mundo para torná-lo insuportável. Espero que o leiam com amor.

Já falámos da questão autobiográfica, mas a relação entre pai e filhos, como disse numa outra entrevista, tem uma longuíssima tradição na literatura… Referiu o “Hamlet”, “Os Irmãos Karamazov”…
Sim, falaste em Shakespeare e Dostóievski, mas é um tema universal. Em Espanha, hoje, têm-se publicado inúmeros livros que falam sobre a relação entre pais e filhos. Philip Roth fê-lo em “Património”; o primeiro volume da série de Knausgård é o da morte do pai… “Hamlet” é tão central no cânone ocidental porque é a história de um filho que não aceita a morte do pai, e que busca vingança… Na realidade essa obsessão, essa ligação com o pai é fundacional na literatura, desde a Bíblia. Jesus Cristo é um tipo que passa os dias a falar com o seu pai. Se retirares o aspecto divino, quem é Jesus Cristo? Alguém que passa os dias a falar com um fantasma. E o fantasma quem é? O do seu pai. E se seguirmos por aí vamos dar a Freud: tentar saber a importância do pai na vida de um indivíduo. É qualquer coisa de arquetípico e atávico. 

Em tempos foi bastante flagrante na escrita do romance a tentativa de se escrever um livro final, uma poderosa síntese da aprendizagem literária de um autor, mas hoje parece que os escritores escrevem para continuar. Acabam um e começam a pensar no seguinte. Imagino que a escrita de um livro como “Ordesa” seja difícil porque, como alguns críticos notaram, depois de um livro destes, Manuel Vilas será durante muito tempo o autor de “Ordesa”. 
O que acontece é que se a um escritor, hoje, lhe retiras a hipótese de escrever o livro seguinte estás a condená-lo. E isto decorre da profissionalização do escritor. Essa noção romântica que passava por escrever uma obra decisiva e dar-se por contente não faz já parte deste tempo. Entendo aquilo de que falas, e percebo que se possa perguntar se eu deveria escrever outro livro depois deste… O problema é que como escritor tu és hoje um trabalhador da literatura, que tem que considerar as exigências do editor, do jornal que lhe paga para escrever crónicas… Tens também de aceitar as exigências do público, que leu um dos teus romances e agora fica à espera que lhe sirvas o seguinte.

Isso é o capitalismo de que falava…
Sim. Não posso deixar de escrever outro romance, não só porque ninguém o entenderia, mas porque não teria de que sobreviver. É uma lógica capitalista, não é literária. Na literatura mexicana temos o exemplo de Juan Rulfo, que escreveu apenas dois livros, “Pedro Páramo” e a “Planície em Chamas”… Dois livros maravilhosos. E com trinta e tal anos abandonou a literatura. Não escreveu mais nenhum livro. É um caso extraordinário. Passou quarenta anos da sua vida a explicar porque é que não iria escrever outro livro (risos). Entendo a pergunta, e só te posso dizer que isto é o resultado de vermos o capitalismo metido dentro da literatura. O normal seria que eu me desse por satisfeito, sentisse que já tinha alcançado aquilo a que me propusera como escritor.