E se, através do seu telemóvel ou computador, conseguisse contar quantas tostas mistas o seu filho comeu na escola, o que fez no recreio ou se se meteu em sarilhos? As novas tecnologias vieram permitir isso mesmo. Atualmente existem aplicações que ajudam as escolas a comunicar de forma diferente com os pais, permitindo a estes partilhar a rotina dos filhos de forma virtual. Será isto sinónimo de aproximação e melhor comunicação entre os professores e os pais? Até que ponto esta nova ligação é positiva para o desenvolvimento das crianças?
As dúvidas são muitas e há quem ache que a monitorização constante das crianças poderá ter um lado negro. É o caso de Leandra Cordeiro, psicóloga e professora universitária, que considera, em declarações ao i, que “a questão da monitorização das crianças e da hipervigilância está a retirar-lhes competências e a impedir que cresçam de forma autónoma e confiante”. A psicóloga admite ainda que estas aplicações podem ser úteis para comunicar situações excecionais de perigo mas, no fundo, “não há ganhos efetivos” com elas.
“Não sei se é saudável crescer com a sensação de que o meu pai ou a minha mãe, a partir do telemóvel, podem monitorizar e controlar o que como, a que brinco, como me comporto, sobretudo quando as famílias têm cada vez menos tempo para partilhas físicas e trocas emocionais que lhes permitam reconhecer e conhecer os próprios filhos”, admitiu a especialista.
Ao longo dos anos tem-se traçado um caminho para envolver mais os pais na vida escolar dos filhos. E, segundo Leandra Cordeiro, esse envolvimento é fundamental. Os pais não devem ser chamados à escola sempre que “há cartões vermelhos para distribuir” ou para ir buscar as notas, diz, acrescentando que essa relação deve respeitar “limites e fronteiras num espaço comum que é partilhado pela criança”.
Com esta vigilância através das aplicações, a psicóloga afirma que se estão a passar mensagens contraditórias às crianças. “Se, por um lado, aos três anos, eles são fantásticos e exibidos nas suas inúmeras habilidades, aos dez são incapazes de resolver por si um conflito com um coleguinha na escola. Isto não ajuda a criar uma autoimagem segura e coesa de si próprios. Para não falar da autonomia: não tenho a menor dúvida que muitos dos problemas de ansiedade derivam destes conflitos de dependência emocional e sentimentos contraditórios de competências e responsabilização.”
Já Ana Vasconcelos, pedopsiquiatra, acha que este tipo de aplicações podem ajudar a envolver mais os pais e, consequentemente, melhorar a comunicação entre a família e a escola. Segundo a especialista, o que importa no uso deste tipo de aplicações não é os pais verem o que a criança está a fazer, mas sim “a educadora partilhar momentos do quotidiano sobre os quais as crianças podem depois conversar com os pais”.
No entanto, Ana Vasconcelos não deixa de alertar para os perigos que estão associados ao uso destas tecnologias, porque pais “mais ansiosos”, que estejam sempre a fazer perguntas sobre o que acontece na escola, podem levar os filhos a deixarem de partilhar as suas experiências “com receio daquilo que os pais possam pensar, ou seja, podem criar um ambiente antagónico”.
A pedopsiquiatra explica também que esta atitude pode fazer com que as crianças comecem a questionar a fronteira entre o ambiente escolar e o ambiente familiar: “O que me pertence quando estou na escola e o que me pertence quando estou em casa? O que posso contar em casa do que faço na escola e o que posso contar na escola daquilo que faço em casa?” Dúvidas capazes de “diminuir as fronteiras dos espaços e afetar as narrativas que as crianças têm de ir construindo sem as imagens que os pais veem e que podem impedir boas perguntas aos filhos sobre o que eles fizeram na escola”.
Estas ferramentas podem ajudar os educadores a partilhar com os pais que atividades estão a ser desenvolvidas, mas Ana Vasconcelos adverte que é “preciso que os pais não se metam no cenário da escola”. Estas ferramentas têm de ser integradas no “projeto-escola”, sem que pais, escola e filhos percam “a sua identidade”.
Aplicações são o futuro? Vanessa Biléu, educadora de infância e criadora da aplicação ChildDiary, dá o outro lado da moeda. Ao i explica que a ideia surgiu depois de ter constatado, ela e o marido, todas as dificuldades que sentia quando queria falar com as famílias e todos os papéis que tinha de preencher diariamente sobre a rotina das crianças. Foi aí que o marido, João de Sousa, engenheiro informático e cocriador da aplicação, “teve a ideia de criar a plataforma digital”.
Esta aplicação serve “para facilitar a comunicação entre escola e família, bem como para reduzir o tempo que os educadores despendem com burocracia”, explicou Vanessa Biléu.
“Queríamos que ambos, pais e cuidadores, conseguissem partilhar informação não só sobre as rotinas dos seus filhos, mas, acima de tudo – e é aqui que fazemos bastante a diferença –, partilhar informação contextualizada sobre a aprendizagem e o desenvolvimento de cada criança de forma privada e segura”, adiantou.
Foi com esse princípio que a ideia viu a luz do dia em 2014, na Irlanda. Dois anos depois, chegou a Portugal. “Em dois anos, a ChildDiary já é utilizada em mais de 100 escolas em Portugal, maioritariamente creches e jardins-de-infância da rede solidária (IPSS) e privada. Contamos ainda com várias dezenas de educadores que utilizam a plataforma a título individual”, diz a cocriadora da ChildDiary.
Plataformas deste género permitem aos professores registar as rotinas das crianças ao longo do dia, “envolver os pais na aprendizagem dos filhos e dar a estes a oportunidade de perceberem qual a intencionalidade pedagógica desenvolvida ao longo do ano letivo, e não só apenas nas reuniões trimestrais”, explica Vanessa Biléu.
Apesar de as psicólogas se manterem com um pé atrás em relação a este tipo de ferramentas tecnológicas, a educadora de infância garante ao i que o feedback que tem recebido por parte de quem usa a sua aplicação é muito positivo: os pais congratulam-na pela ideia e afirmam que esta aplicação lhes abriu as portas da escola dos filhos, ajudando a reduzir a ansiedade e saber de recados que possam ser importantes a qualquer hora.
Já os educadores explicam que a plataforma os ajuda a poupar tempo quando têm de preencher a papelada relativa às atividades e rotinas das crianças e a “implementar estratégias pedagógicas e avaliações muito mais fundamentadas” e, por fim, facilita o envolvimento familiar.
“Se, por um lado, abre as portas da escola às famílias de uma forma inovadora, por outro, os docentes veem o seu trabalho mais valorizado junto dos pais, pois a informação que se faz chegar às famílias não se limita à partilha de fotografias, mas sim de evidências de aprendizagem contextualizadas curricularmente”, remata Vanessa Biléu.
Porém, a questão continua a pairar no ar. Até que ponto a facilitação do trabalho dos docentes e do envolvimento dos pais no ambiente escolar ajuda o desenvolvimento das crianças? Essa é uma resposta para avaliar no futuro.