Sou democrata e de esquerda, adepto duma democracia pluralista e pluripartidária que dê todas as garantias essenciais, tais como, por exemplo, eleições livres regulares, liberdade de expressão e de opinião, respeito pelos direitos humanos fundamentais, igualdade de acesso de todos os cidadãos ao bem-estar, à saúde, à educação, à cultura, à justiça, ao trabalho e à segurança social. Por isso, concordo totalmente com um ultimato da União Europeia (Portugal e o ministro Santos Silva incluídos) que reclame a realização, a muito curto prazo, de eleições livres e democráticas na República Popular da China, na Coreia do Norte, na Arábia Saudita, na Turquia, nas Filipinas, no Brasil, nos EUA, na Hungria, na Polónia e, claro, na Venezuela. E daqui não saio, daqui ninguém me tira!
Mas, ó senhor Barroso, tenha lá paciência – interrompe-me um advogado do diabo -, olhe que vossência ou está a sonhar acordado ou está equivocado!? É que o ultimato da União Europeia a macaquear os EUA (com Portugal e o ministro Santos Silva, apoiado pelo PM António Costa e pelo PR Marcelo Rebelo de Sousa, puxados pela arreata) é apenas e tão-só dirigido ao Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, esse prodigioso país detentor de inesgotáveis reservas de petróleo, o tal líquido que não serve somente para fazer andar “popós” (como diz um amigo seu) e que é cobiçado pelos EUA, por vários aliados e até por alguns inimigos, todos eles sedentos de “ouro negro”, pois pudera!
E, ó senhor Barroso, faça-me também o favor de não se meter com a República Popular da China, que já implantou há umas boas décadas uma sólida ditadura de partido único que aplica regularmente a pena de morte e pratica quotidianamente essa tão gloriosa variante neoliberal do comunismo que é o comunismo neoliberal – como diriam Dupond e Dupont -, variante essa que lhe permite adquirir grandes e pequenas empresas por esse mundo fora, nomeadamente em Portugal. Já agora, não incomode o louco furioso que manda na Coreia do Norte – país onde a fome e as carpideiras são autênticas pragas – porque ele é um protegido dilecto do governo chinês e, agora, até é amigo do Trump. E deixe lá em paz a Arábia Saudita, monarquia absoluta medieval, provadamente impiedosa e brutal, mas também insubstituível aliada, no Médio Oriente, dos EUA e da Europa, que se pelam por intervenções humanitárias (Portugal, o seu MNE, o seu PM e o seu PR incluídos), unidos num comovente tributo ao “ouro negro” e aos “negociantes de canhões”.
Senhor Barroso, vossência não pode enfiar no mesmo saco em que mete a Venezuela as “democraduras” vigentes na Turquia, nas Filipinas, na Hungria, na Polónia, no Brasil ou nos EUA. Vossência endoideceu ou quê?! Ainda não percebeu que, tal como há ditaduras boas e ditaduras más, também há “democraduras” boas e “democraduras” más?! Ora, a única “democradura” má, neste momento, é a do Maduro e mais nenhuma!
Será que estas subtis distinções ainda não penetraram na sua mente embotada, senhor Barroso? Olhe que tem mesmo de fazer um esforço, se não quiser passar pela vergonha de ser gozado por democratas pragmáticos e realistas habituados a identificar claramente os “filhos da puta” que são nossos amigos e os “filhos da puta” que são nossos inimigos. Como disse Henry Kissinger (o conselheiro político mais cínico da história dos EUA no séc. xx), creio que acerca do ditador civil dominicano Joaquín Balaguer e do ditador militar chileno Augusto Pinochet: “Eles são uns filhos da puta, é verdade, mas são os nossos filhos da puta!” Há quem diga que Kissinger se limitou a parafrasear e adaptar uma frase de Franklin D. Roosevelt acerca dos ditadores sul-americanos das “repúblicas das bananas”. Seja lá como for, é uma frase filha da chamada Realpolitik.
Agora eu. Um velho amigo quis convencer-me há dias de que o problema dos democratas imprudentes, extravagantes e excêntricos como eu (também os haverá concêntricos?) é não sermos capazes de fazer a subtil distinção kissingeriana. Contou-me ele que visitou a Venezuela várias vezes, no “tempo da democracia”, e lembra–se bem de que o país era propriedade de apenas uma dúzia de famílias: “Senhoras da alta sociedade iam de avião privado a Miami, para fazer compras e ir ao cabeleireiro, enquanto o povo vivia na miséria e os políticos ‘democratas’ enchiam os bolsos. Conheci um fulano, amigo de sicrano, que foi governador de Caracas e, depois, representante permanente da Venezuela na ONU (…) e que, durante os quatro anos em que foi governador, amealhou o suficiente para comprar um apartamento na Park Avenue e uma ilha nas Caraíbas!” Nem mais…
Quanto a mim, confesso que fiquei deveras impressionado com uma crónica no “Jornal de Negócios” que considerava ser “intolerável” o que se passa na Venezuela – não o que se passa na China, na Coreia do Norte, na Arábia Saudita, na Turquia, nas Filipinas, nos EUA e no Brasil, mas o que se passa na Venezuela. O que me levou a responder à provocação de outro jornalista sabichão que proferiu esta sentença: “A esquerda que for democrática só pode querer o fim do regime de Maduro na Venezuela!” Fiquei perplexo, mas acabei por escrevinhar, ingenuamente, o texto que se segue: “Em minha opinião, a esquerda que for democrática só pode querer o fim do regime de Maduro (um fantoche tão medíocre como Trump e Bolsonaro) mas na condição de esse regime ser derrubado e o seu Presidente ser destituído pelos próprios venezuelanos, sem interferências ou apoio militar estrangeiros (ao invés do que sucedeu com o golpe de Pinochet no Chile, escandalosamente apoiado pela CIA e por empresas multinacionais norte-americanas, no tempo de Nixon), devendo, a seguir, serem organizadas eleições gerais democráticas. E eu pergunto: alguém poderá imaginar o que teria sucedido em Portugal se tivessem sido forças militares de um país estrangeiro a derrubar o regime ditatorial de Salazar e Caetano, em vez do Movimento das Forças Armadas, em 25 de Abril de 1974, com o apoio dos partidos políticos clandestinos de oposição à cruel ditadura que vigorou no País entre 1926 e 1974?!”
Pois é, tudo isso são delírios de um idealista excêntrico (não concêntrico) que por alguma razão se afastou completamente da política activa. Ora, todos os políticos pragmáticos e realistas, assim como os idiotas que os aconselham, não querem saber para nada desses pruridos que podem pôr em causa, por exemplo, a electricidade que nós consumimos (foi totalmente privatizada, lembram-se?), a fidelidade aos ditadores que são nossos parceiros comerciais (designadamente nos seguros de vida, mas não só!) e aos outros estrangeiros que generosamente nos compraram quase todas as empresas públicas. Como disse certa vez um insigne político português, hoje secretário-geral da ONU: “É a vida!”
Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990