Somos um país sem meio-termo, em que mesmo quando não se preenche os requisitos mínimos em vastos setores da vida das pessoas, da valorização dos territórios ou da vivência em comunidade, os decisores não hesitam em querer ser mais papistas que o papa, num exercício desprovido de senso. Alguns dirão que se trata de impulsos visionários, de saltos civilizacionais ou de agir no presente para colher benefícios no futuro.
Com frequência passamos ou queremos passar do oito para o oitenta, sem cuidar que existem muitos que não têm o básico, muitas realidades que serão simplesmente erradicadas ou desvirtuadas e demasiados ficarão sempre para trás nesses rasgos sem meio-termo.
Foi assim com a radicalidade inicial da ASAE perante muitas das tradições que integram as marcas de identidade das comunidades e dos territórios, apesar dos ganhos de segurança alimentar; é assim com uma certa abordagem urbana a realidades do país que são eminentemente rurais, tradicionais e desestruturadas, em relação às quais se impõe um devastador jugo burocrático. O problema é que a deriva da ausência do meio-termo, da razoabilidade, por mediatismo, ignorância ou falta de jeito, se apossa amiúde dos decisores políticos que, em vez de assegurarem resposta atual para os problemas e os desafios, se colocam num patamar de pseudovisão de futuro, muito próxima do oitenta. Não cumprimos mínimos em muitas áreas do presente, mas queremos ser um país de máximos no futuro, sem ter as bases e sem atender à realidade.
É assim que surgem os higienizadores que, ao mesmo tempo que querem máximas liberdades e reconhecimentos de nichos de diversidade, não hesitam em querer proibir ou impor comportamentos restritivos aos outros. É nesta deriva que surge o ministro do Ambiente e (agora) da Transição Energética, quiçá em busca de notoriedade em rota para a Câmara Municipal do Porto, a propor num curto espaço de tempo que se baixe a potência contratada de energia elétrica lá de casa para pagar menos pela luz, que se deixe de produzir e comer carne de vaca para reduzir a pegada ecológica e erradicar parte da realidade rural do país, ou a decretar o fim dos carros a diesel que foram, e ainda são, opção de muitos para tentar minorar o chorrilho de impostos que oneram os combustíveis em Portugal. Em muitas destas questões, mais do que com o bitaite, o Estado pode intervir através da política fiscal, da valorização de comportamentos positivos de mudança ou da criação de um ambiente positivo do mercado para a transformação, mas opta pelo moralismo das palavras, sem suporte nas opções políticas e fiscais e sem nexo com a realidade da vida das pessoas e a realidade do país.
A questão é que, por ausência ou deficiência das respostas no presente, os decisores procuram projetar o país e os portugueses para um patamar de referência meramente hipotético, embora dado como garantido.
O aeroporto do Montijo foi apresentado em cerimónia pública como garantido, sem estudo de impacto ambiental, e ainda esta semana uma aeronave terá chocado com uma ave com impactos no curso do voo.
O Programa Nacional de Investimentos 2030, o tal que teria de ser aprovado por dois terços do parlamento, além do apoio da atual solução governativa, depois de audições no país aos poderes locais e regionais, foi apresentado de supetão, revelando uma descobertura de partes relevantes do país e de setores importantes para a enunciada valorização do interior.
O processo de descentralização de competências do poder central para o poder local, apresentado como “a grande reforma do Estado”, está a ser concretizado a retalho, por blocos de áreas, por vezes sem o adequado esclarecimento sobre os recursos financeiros alocados à operação de proximidade e com uma elevada divisão entre os municípios. O espetro dos resultados revela que o trabalho realizado pode ter muito boa vontade, mas foi “poucochinho”.
E, por via das Jornadas Mundiais da Juventude, em Lisboa/Loures, em 2022, já demos um salto temporal de três anos.
Portugal precisa de renovados equilíbrios entre as respostas para o presente e a construção dos futuros que queremos, com noção do caminho que é preciso percorrer, do atual estado da vida das pessoas e das dinâmicas do território. A não ser assim, vamos continuar a sobressaltar-nos com as realidades dos bairros das Jamaicas, das situações de pobreza e de exclusão social, das insuficiências dos serviços públicos básicos ou das excecionalidades dos fenómenos meteorológicos extremos. É o que acontece quando se quer estar no oitenta quando não se tem o oito.
NOTAS FINAIS
Cabeça A Lei de Bases da Saúde é demasiado importante para ser apenas uma circunstância da circunstância. No passado recente, o governo PSD/CDS não percebeu que a saúde é mais do que apenas um serviço público, é o mais sensível serviço público. Há uma incompatibilidade evidente entre a vontade do primeiro-ministro de querer aprovar uma nova lei apenas com o atual arco da governação (PS, PCP, BE e PEV) e os recados do Presidente da República de que, sem a envolvência do anterior arco da governação, a proposta será chumbada. Pede–se cabeça.
Tronco O país do Simplex, do e-fatura e de tantos outros alegados avanços dos serviços públicos continua a impor aos cidadãos, para além de uma enorme carga fiscal, que se substituam ao Estado na realização de tarefas de cruzamento de dados que este deveria realizar. A nova declaração trimestral obrigatória dos trabalhadores independentes é mais um desses supremos exercícios. Se o fisco tem os dados dos recibos verdes da prestação de serviços, porque não informa a Segurança Social?
Membros Os proclamadores de valores e princípios por tudo e por nada têm dado um espetáculo deplorável e deprimente na abordagem da situação na Venezuela. Uma participação na Festa do Avante! vale mais do que a incontornável imposição de dar a voz ao povo em eleições livres, democráticas e escrutinadas pela comunidade internacional.
Escreve à quinta-feira