José Manuel Gonçalves vive em Paio Pires e vai frequentemente ao cemitério limpar as campas de três pessoas, a pedido de uma família amiga que não reside na aldeia. O cenário que encontra é uma e outra vez o mesmo: sobre a pedra branca das campas há sempre uma camada de pó negro. “É pior quando o vento vem do lado da fábrica porque traz sempre mais pó”, conta ao i o residente de Paio Pires, que por aqui vive desde que nasceu, há 74 anos. Está com outros dois amigos junto às obras que decorrem na Estrada Nacional 10, a acompanhar como se processam. “Nós somos esquecidos, esta rotunda está para ser feita já desde o tempo de Salazar e do Marcelo Caetano e só há pouco tempo é que arrancou”, assinala por sua vez José Dias, de 82 anos, com um tom de voz mais elevado para se sobrepor ao ruído de fundo das retroescavadoras. “Nem me fale do pó, que eu todos os dias tenho de limpar a minha varanda e bem sei a quantidade que apanho, e é difícil de tirar. E às vezes cheira mesmo a ferro quente”, lamenta ao i o mesmo morador.
E não estão preocupados com o que o ar pode fazer à saúde? “Claro, mas sabe o que faço? Fecho as janelas e as persianas da parte de trás da casa e assim não entra pó nenhum”, responde José Manuel Gonçalves.
A preocupação não é nova e todos apontam a atividade da fábrica SN – Seixal como a responsável pelo problema, mas o assunto voltou à atualidade porque, só este ano, a GNR já recebeu 26 queixas relacionadas com o problema do pó, que se tem depositado sobre os carros da região e que só sai com esfregões palha-de-aço. As queixas referem um pó branco, mas é o pó preto que é mais visível e frequente. Nas ruas, os carros estacionados denunciam a propagação de ambos: o preto, mais visível nos carros de cor clara e o branco nos carros de cor escura, mas também nos vidros.
O número das queixas, de resto, foi avançado ao i pelo gabinete de comunicação daquela força de segurança, que precisou ainda que “no dia 19 de janeiro, a Guarda Nacional Republicana, através do Grupo de Intervenção de Proteção e Socorro, recolheu uma amostra dos resíduos na Aldeia de Paio Pires, tendo encaminhado a mesma para a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), no sentido de serem efetuadas as respetivas análises”. Ao i, a GNR garantiu também que, “através do Núcleo de Proteção Ambiental de Almada, está a acompanhar esta situação, estando ainda a decorrer diligências”. E não é a única: também a Procuradoria-Geral da República confirmou ao i “a existência de investigações dirigidas pelo Ministério Público relacionadas com a matéria. Essas investigações tiveram origem em queixas apresentadas à GNR por moradores de Paio Pires”.
Investigações oficiais à parte, o assunto é comummente abordado entre os habitantes da terra, onde vivem cerca de 13 mil pessoas, e não se encontra quem diga que nunca ouviu falar do problema. “É tema de conversa frequente” diz ao i a funcionária da caixa de um minimercado da aldeia que preferiu não ser identificada. Não é da terra e não vive aqui, mas também ela se preocupa com os potenciais perigos que o pó pode representar.
Mais acima, perto da entrada de Paio Pires, o proprietário de um café que também opta pelo anonimato aponta para as mesas empilhadas na esplanada. Os tampos brancos estão cobertos de pó negro. “Isto não é terra, é pó que vem da fábrica. E desta vez a causa das queixas foi o pó branco, mas a verdade é que o problema é constante e há sempre pó, especialmente preto, por causa dos metais”, assegura o homem, ali residente há mais de 20 anos.
“O prejuízo para a saúde é maior do que o benefício económico. É que antes quando abriu empregava cerca de seis mil pessoas, mas hoje emprega apenas cerca de 700”, diz o proprietário do café, que nota que “na região morrem muitas pessoas de cancro”, ainda que admita não saber se as mortes estão relacionadas com a poluição da fábrica – “especializada no fabrico de fio-máquina” e onde também se faz reciclagem para produção de “sucata de aço fragmentada”, informa o site do grupo espanhol Megasa, que a detém. O i tentou obter informação relativa à incidência de cancro do pulmão na região junto da Direção-Geral da Saúde (DGS), mas não recebeu resposta até ao fecho da edição. Independentemente dos números, o proprietário do café lamenta que o problema se arraste há tanto tempo. “Decidi que vou sair daqui. Isto não pode fazer bem ao nosso corpo, se é tão difícil de tirar dos carros, com esfregões de aço, o que fará aos nossos pulmões? Já pus a minha casa à venda e a minha filha também”, conclui. E não é o único, ainda que não seja certo se a motivação é a mesma: pela aldeia, não são poucas as placas a dizer “vende-se” penduradas em janelas e varandas.
Da responsabilidade à “inércia” Questionada pelo i, a Câmara Municipal do Seixal admite que se registaram “diversas reclamações sobre a qualidade do ar no Município do Seixal e, em particular, na zona de Aldeia de Paio Pires, relacionadas, alegadamente, com a atividade da empresa SN Seixal – Siderurgia Nacional, SA.”, notando que no caso concreto “a responsabilidade, quer no âmbito do licenciamento da atividade, quer no âmbito da fiscalização das condições da respetiva exploração e seus impactos na saúde pública e no ambiente, cabe integral e exclusivamente ao poder central”. A autarquia, conclui-se, reconhece que a poluição é causada pela empresa e acusa o poder central de “inércia”: “A poluição causada pela Siderurgia Nacional e os impactos da sua poluição ambiental histórica, tem justificado a reiterada reclamação dos órgãos municipais, especialmente da Câmara Municipal do Seixal, face à inércia da Administração Central, nomeadamente dos Ministérios da Economia e do Ambiente”.
Apesar disso, o município assegura que “está, esteve, e estará sempre, na linha da frente da reivindicação pelas necessidades das populações, e logo, também, pela adequação da atividade da SN Seixal ao cumprimento das normas ambientais a que está sujeita”, classificando ainda a atuação dos vários governos ao longo do tempo como “manifestamente insuficiente para a resolução destes problemas ambientais”.
Perante a atuação do Estado e das reiteradas solicitações à empresa para que realizasse estudos de análise ao ar e ao ruído, a autarquia informa ainda que em junho de 2017, em reunião de câmara, aprovou a “elaboração de estudo epidemiológico e ambiental”, a “elaboração de medição do nível de ruído decorrente da atividade daquela unidade industrial, nos períodos de normal funcionamento” e ainda a “elaboração de análise das partículas que se depositam em edifícios e viaturas, para determinação da sua origem e natureza”. Apesar dos esforços desenvolvidos pela Câmara, com o aparecimento do pó branco que motivou as queixas à GNR, o problema voltou a ser reportado este mês à tutela. “Em reunião com o Ministro do Ambiente e da Transição Energética, o Presidente da Câmara Municipal do Seixal reiterou a necessidade urgente da resolução dos impactos ambientais da Siderurgia em Aldeia de Paio Pires e a intervenção do Ministro do Ambiente junto dos organismos que tutela”, assegura fonte oficial da Câmara Municipal do Seixal.
Movimentação social A perpetuação do problema, sem se avistarem soluções concretas, ditou em 2015 a criação de um grupo no Facebook designado “Os Contaminados”, que conta com mais de dois mil membros. O objetivo, segundo se lê na descrição do grupo, é exporem-se “situações, eventuais propostas de soluções, queixas e demais desabafos, de quem convive diariamente, lado a lado, com a poluente Siderurgia Nacional”.
Ao i, um dos promotores do movimento e antigo presidente da Junta de Freguesia de Paio Pires, João Carlos Pereira, recorda que nos anos 90 “os esforços promovidos pela Siderurgia Nacional foram grandes. Trabalhei de perto com a administração e vi os esforços que faziam. E tanto assim era que em várias intervenções de um especialista no boletim municipal se dizia que com os esforços da empresa, estavam a voltar várias espécies de aves”. Contudo, “a partir da venda a um consórcio hispano-italiano, em 1995, as preocupações ambientais desapareceram”, recorda o morador.
No grupo veem-se várias fotografias de carros com pó branco e preto e há até quem atribua ao pó indisposições. “A semana passada estive uma semana na casa da minha mãe na quinta do Mirante (férias), pois vivo no estrangeiro… Todos os dias de manhã acordava mal disposto e com vómitos… e já me acontecia por vezes quando aí morava junto ao São Vicente. O que é certo é que só aí me deu isso, nunca mais tive… Coincidência ou não, penso que seja mesmo aí do ar…”, lê-se numa das publicações.
Ao i, à semelhança da autarquia, João Carlos Pereira reitera a inércia dos governos sucessivos, questionando contudo se “a câmara estará realmente a fazer algum estudo”, como anunciou. O residente nota que a iniciativa social não quer o encerramento da siderurgia, defendendo, sim, que a empresa “faça aquilo que não faz, que é utilizar todas as técnicas disponíveis e mais modernas” para evitar a poluição. “Eles não cumprem a lei nas coisas mais visíveis, como as montanhas de escórias, que são movimentadas indevidamente e não podem estar a céu aberto. Quando movimentam as escórias de pó branco, é aí que vão para o ar moléculas que condensam no ar e caem em cima das viaturas”, remata.