Não se mudam comportamentos com inação ou com a gestão das circunstâncias. A sinistralidade rodoviária reassumiu centralidade mediática ao registar-se, por dois anos seguidos, um acréscimo do número de mortos a 30 dias na sequência de acidentes nas estradas de Portugal e por haver mais do dobro de vítimas mortais no período de Natal, apenas com os dados da GNR. Aliás, não se percebe como não há divulgação dos dados conjuntos das duas forças de segurança com responsabilidades no trânsito.
Esta realidade, brutal, trágica, que delapida vidas humanas e famílias, era expetável.
Portugal reduziu a sinistralidade ao longo das últimas décadas fruto de uma mobilização das entidades e da comunidade para a prevenção e para a fiscalização nas suas diversas dimensões, em especial, na correção dos comportamentos dos cidadãos mais velhos e na formatação das novas gerações, confrontadas que são com os comportamentos de risco rodoviários em diversos suportes de entretenimento digital. As crises económicas, com a redução dos rendimentos das famílias, ajudaram a criar a falsa ilusão de resultados decorrentes da menor circulação de veículos e acabaram por ampliar os riscos, por supressão de operações de manutenção dos veículos e envelhecimento da frota. Com a Troika dentro de portas, o Governo PSD/CDS foi ao ponto de desviar as verbas do Fundo de Garantia Automóvel do financiamento de campanhas e iniciativas de prevenção rodoviária para a dimensão repressiva, através da aquisição de viaturas para a GNR e para a PSP. Não era para isso que nos cobravam um valor no seguro automóvel, era para prevenção. O atual governo surfou a onda dos resultados positivos da sinistralidade rodoviária e fez muito pouco em matéria de prevenção. Gerir as circunstâncias trouxe-nos à realidade de dois anos sucessivos de aumento das mortes por sinistralidade rodoviária (2017 e 2018). Bastava somar os fatores, desinvestimento em prevenção, degradação das infraestruturas rodoviárias e relaxamento nas operações de manutenção dos veículos, para perceber que um acréscimo de circulação e de consumo resultariam num aumento da sinistralidade e da mortalidade decorrente dos acidentes rodoviários.
As perguntas são simples:
– Foi feito algum investimento para reforçar a pedagogia da estrada junto dos mais novos que contrarie a adrenalina da realidade virtual dos jogos com veículos motorizados?
– Foi feito algum esforço significativo para modelar os comportamentos dos atuais peões e condutores?
– Foi desenvolvido algum impulso significativo de integração do esforço das forças de segurança para a pedagogia, a fiscalização e a obtenção de resultados, além dos estados de necessidade na obtenção de receitas para o funcionamento corrente das instituições por via das contraordenações?
– Foram criadas condições de sustentabilidade e eficácia para que a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária não estivesse sujeita a picos de fluidez dos recursos em função dos humores das cativações?
– Foram asseguradas as manutenções e as intervenções fundamentais para a segurança das infraestruturas rodoviárias que, no essencial, estiveram ao abandono entre 2011 e 2015?
– Foram repostas as condições de segurança suspensas em negociação com as concessionárias em várias infraestruturas rodoviárias, por exemplo, através da redução ou supressão da iluminação?
Invariavelmente a resposta é Não.
Na estrada como em tantas outras realidades do país, gere-se o imediato, ignora-se o risco, espera-se que a sorte ou o desenrasca nos proteja. Efabula-se a realidade para ignorar os sinais, as tendências e as dinâmicas, para, depois ensaiar um sobressalto de indignação ou de intervenção excecional perante os resultados das questões correntes e estruturais. É assim a marca da tradicional gestão tuga. Insensível aos ensinamentos do passado, aos sinais do presente e à conjugação de fatores que geram os resultados do futuro.
Os dados da sinistralidade rodoviária são o resultado expectável dos comportamentos individuais dos condutores e das circunstâncias das opções políticas à esquerda e à direita, por ação e por omissão, por incapacidade de processarem os sinais e por incompetência em vislumbrarem a realidade além do dia de amanhã. São o corolário natural da gestão das circunstâncias pelos decisores políticos. São uma tragédia com demasiadas assinaturas.
E de muito pouco valerão as comparações com as dinâmicas europeias, em que as médias da sinistralidade rodoviárias são bem mais baixas. Desculpar a nossa realidade com as realidades alheias sempre foi uma lamentável forma de desresponsabilização. É poucochinho e trágico.
NOTAS FINAIS
Velocidade de cruzeiro Bolsonaro já é presidente, prosseguem as indignações de última hora, como se a indiferença perante os diversos caldos de cultura que são gerados em território nacional não fossem suficientes para gerar indignação e ação. Mais cedo que tarde, as realidades de outros terão projeção no burgo. Sim, populismo, justicialismo e outros ismos.
Marcha lenta Há uma confrangedora cativação da vontade política. Uma dinâmica soporífera que modela a concretização de algumas decisões. Com o país em rutura ferroviária, uma deliberação do conselho de ministros para superar um desinvestimento de anos, demora quatro meses entre a decisão e a formalização do lançamento do concurso de aquisição de 22 unidades automotoras. Pouca terra.
Travagem brusca O inquérito à tragédia na pedreira de Borba concluiu que a Câmara Municipal tinha conhecimento dos riscos desde 2014 e nada fez. O espécime político que lidera o município comporta-se como se não fosse nada com ele. Mau demais, num líder de um movimento de independentes, que tantas vezes são enunciados como as alternativas aos partidos políticos. Como fica claro, mais uma vez, não é uma questão de rótulo, mas de carácter.
Escreve à quinta-feira