Democracia em perigo


Trump e Bolsonaro são produtos dum sistema pilotado por uma camada social dominante e ultraminoritária cuja motivação é o lucro, cujo ideal é o conservadorismo e cujo sonho é o controlo por via da tecnologia


Superficialidade, incoerência, esterilidade das ideias, versatilidade das atitudes são, com toda a evidência, traços característicos das direcções políticas ocidentais, tal como os sintetizou, pouco antes de morrer, o pensador heterodoxo que sempre foi Cornelius Castoriadis (1922-1997), no seu derradeiro livro, com o significativo título “A Ascensão da Insignificância” (1996). A generalização dessas características, que hoje descrevem larga percentagem da classe política, não é um exagero, e os exemplos extremos mais inquietantes – como Trump e Bolsonaro – começam a florescer. Tanto Trump como Bolsonaro são exemplos chocantes daquilo que o historiador Fritz Stern escreveu em 1963, no seu excelente livro “Política e Desespero”, quando afirma, a propósito da ascensão do nazismo na Alemanha, que “havia um desejo de fascismo antes mesmo de o termo e o conceito terem sido inventados”. Ambos são igualmente, nos dias de hoje, produtos dum sistema pilotado por uma camada social dominante e ultraminoritária cuja motivação é o lucro, cujo ideal é o conservadorismo e cujo sonho é o controlo por via da tecnologia. Esta oligarquia predatória é o principal agente da crise global.

O jornalista e ensaísta norte-americano Chris Hedges – que acusa os representantes da elite dita “progressista” ou “de esquerda” (professores, ensaístas, jornalistas, políticos, etc.) de se terem submetido docilmente à hipnose do poder, colaborando com este na “marginalização e silenciamento dos rebeldes, dos iconoclastas, dos socialistas, dos comunistas, dos anarquistas, dos dirigentes sindicais e dos pacifistas” – não hesita em apontar o dedo aos média de direita, como a Fox News, que têm difundido sem parar, ao longo dos anos, discursos delirantes, insensatos e perigosos, num trabalho persistente de desinformação que criou as ondas em que Donald Trump surfou e continua a surfar quotidianamente na Casa Branca. Chris Hedges vai mesmo ao ponto de acrescentar que Trump “é uma resposta política a esse delírio” comparável ao que ele viu quando era correspondente de guerra nos Balcãs: “líderes nacionalistas como Slobodan Milosevic ou Alija Izetbegovic (presidente da Bósnia-Herzegovina de 1990 a 1996) a responderem aos medos das suas populações” – ao tal “desejo de fascismo” avant la lettre.

A insignificância e a menoridade intelectual de políticos como Trump e Bolsonaro, que são, todavia, ameaças reais à democracia, não nos dispensam de constatar que também existem, a coberto de gabinetes de consultores e peritos, vários consórcios secretos de falsificação do real cujo trabalho consiste em reescrever e/ou inventar episódios inteiros da História e da política, à medida das necessidades da oligarquia dominante. O que nos conduz à figura bem real do general britânico Frank Kitson (n. 1926 e já na reserva), um dos militares mais experientes e condecorados por “feitos de armas” (no Quénia, na Malásia, na Irlanda do Norte e nas Malvinas), tendo chegado a ser general ajudante-
-de-campo da rainha Isabel ii. Kitson é autor dum manual quase confidencial que sintetiza os métodos a que deverá recorrer um corpo de exército que procure impor-se a uma população que lhe resiste. Adepto da “guerra psicológica estratégica” para “conquistar os corações e os espíritos”, o general Frank Kitson propõe, nomeadamente:

– Formar todos os quadros importantes dos ministérios (Defesa, Negócios Estrangeiros e outros) nas técnicas de “psy ops” (manipulações psicológicas da opinião pública);

– Organizar pseudogangues que recolherão um máximo de informações mas irão, sobretudo, vibrar “golpes” atribuíveis ao adversário com o objectivo de o desacreditar;

– Empregar as “forças especiais” (SAS) na realização de atentados que serão atribuídos ao adversário, a fim de aumentar a tensão e justificar a repressão;

– Criar manobras de diversão, provocando, por exemplo, uma “guerra de religiões”;

– Fabricar documentos falsos (“black propaganda”) que serão atribuídos ao adversário, com o propósito de o desacreditar;

– Infiltrar agentes ou recrutar traidores (por via da chantagem ou da corrupção) no seio das organizações do adversário, sempre com a finalidade de o desacreditar e mesmo de provocar cisões;

– Militarizar a informação da BBC e censurá-la totalmente no que respeita ao ponto de vista do adversário; filtrar a informação destinada à imprensa internacional e procurar promover nela cumplicidades; fornecer documentos fotográficos para influenciar as opiniões públicas; usar jornalistas como espiões no terreno;

– Utilizar a música para atrair jovens com uma mensagem aparentemente despolitizada;

– Pôr em prática e popularizar falsos movimentos “espontâneos”, apresentados como neutros ou independentes, na realidade financiados e teleguiados com o propósito de dividir e enfraquecer o apoio ao campo adversário.

Trata-se dum sinistro manual a que políticos civis também podem recorrer, ensinando e propondo a criação de falsos inimigos, de falsos amigos, de falsos problemas e de falsas soluções, através de falsas percepções induzidas quer por falsos atentados terroristas (“false flags” ou “sob falsas bandeiras” no jargão militar) quer por falsas informações (“propaganda negra”, completamente falsa, ou “propaganda cinzenta”, que consiste em misturar o verdadeiro e o falso para melhor fazer passar o que é falso), tudo encenado sob a designação de “operações psicológicas” ou, abreviando, psy ops (“a psic” no Exército português, como aprendi quando fiz a tropa, entre 1972 e 1974).

Baseei-me na síntese, feita pelo jornalista de investigação Michel Collon, de uma obra com tiragens quase confidenciais, descrevendo algumas “armas” a que pode recorrer a política enquanto guerra mental de imagens, de palavras e de representações capazes de controlar os espíritos, a saber: a mentira, a manipulação, o logro e a astúcia. Armas que bem podem servir para degradar e destruir a democracia. A ascensão da insignificância fragiliza os regimes democráticos e torna-os mais vulneráveis às psy ops…

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990


Democracia em perigo


Trump e Bolsonaro são produtos dum sistema pilotado por uma camada social dominante e ultraminoritária cuja motivação é o lucro, cujo ideal é o conservadorismo e cujo sonho é o controlo por via da tecnologia


Superficialidade, incoerência, esterilidade das ideias, versatilidade das atitudes são, com toda a evidência, traços característicos das direcções políticas ocidentais, tal como os sintetizou, pouco antes de morrer, o pensador heterodoxo que sempre foi Cornelius Castoriadis (1922-1997), no seu derradeiro livro, com o significativo título “A Ascensão da Insignificância” (1996). A generalização dessas características, que hoje descrevem larga percentagem da classe política, não é um exagero, e os exemplos extremos mais inquietantes – como Trump e Bolsonaro – começam a florescer. Tanto Trump como Bolsonaro são exemplos chocantes daquilo que o historiador Fritz Stern escreveu em 1963, no seu excelente livro “Política e Desespero”, quando afirma, a propósito da ascensão do nazismo na Alemanha, que “havia um desejo de fascismo antes mesmo de o termo e o conceito terem sido inventados”. Ambos são igualmente, nos dias de hoje, produtos dum sistema pilotado por uma camada social dominante e ultraminoritária cuja motivação é o lucro, cujo ideal é o conservadorismo e cujo sonho é o controlo por via da tecnologia. Esta oligarquia predatória é o principal agente da crise global.

O jornalista e ensaísta norte-americano Chris Hedges – que acusa os representantes da elite dita “progressista” ou “de esquerda” (professores, ensaístas, jornalistas, políticos, etc.) de se terem submetido docilmente à hipnose do poder, colaborando com este na “marginalização e silenciamento dos rebeldes, dos iconoclastas, dos socialistas, dos comunistas, dos anarquistas, dos dirigentes sindicais e dos pacifistas” – não hesita em apontar o dedo aos média de direita, como a Fox News, que têm difundido sem parar, ao longo dos anos, discursos delirantes, insensatos e perigosos, num trabalho persistente de desinformação que criou as ondas em que Donald Trump surfou e continua a surfar quotidianamente na Casa Branca. Chris Hedges vai mesmo ao ponto de acrescentar que Trump “é uma resposta política a esse delírio” comparável ao que ele viu quando era correspondente de guerra nos Balcãs: “líderes nacionalistas como Slobodan Milosevic ou Alija Izetbegovic (presidente da Bósnia-Herzegovina de 1990 a 1996) a responderem aos medos das suas populações” – ao tal “desejo de fascismo” avant la lettre.

A insignificância e a menoridade intelectual de políticos como Trump e Bolsonaro, que são, todavia, ameaças reais à democracia, não nos dispensam de constatar que também existem, a coberto de gabinetes de consultores e peritos, vários consórcios secretos de falsificação do real cujo trabalho consiste em reescrever e/ou inventar episódios inteiros da História e da política, à medida das necessidades da oligarquia dominante. O que nos conduz à figura bem real do general britânico Frank Kitson (n. 1926 e já na reserva), um dos militares mais experientes e condecorados por “feitos de armas” (no Quénia, na Malásia, na Irlanda do Norte e nas Malvinas), tendo chegado a ser general ajudante-
-de-campo da rainha Isabel ii. Kitson é autor dum manual quase confidencial que sintetiza os métodos a que deverá recorrer um corpo de exército que procure impor-se a uma população que lhe resiste. Adepto da “guerra psicológica estratégica” para “conquistar os corações e os espíritos”, o general Frank Kitson propõe, nomeadamente:

– Formar todos os quadros importantes dos ministérios (Defesa, Negócios Estrangeiros e outros) nas técnicas de “psy ops” (manipulações psicológicas da opinião pública);

– Organizar pseudogangues que recolherão um máximo de informações mas irão, sobretudo, vibrar “golpes” atribuíveis ao adversário com o objectivo de o desacreditar;

– Empregar as “forças especiais” (SAS) na realização de atentados que serão atribuídos ao adversário, a fim de aumentar a tensão e justificar a repressão;

– Criar manobras de diversão, provocando, por exemplo, uma “guerra de religiões”;

– Fabricar documentos falsos (“black propaganda”) que serão atribuídos ao adversário, com o propósito de o desacreditar;

– Infiltrar agentes ou recrutar traidores (por via da chantagem ou da corrupção) no seio das organizações do adversário, sempre com a finalidade de o desacreditar e mesmo de provocar cisões;

– Militarizar a informação da BBC e censurá-la totalmente no que respeita ao ponto de vista do adversário; filtrar a informação destinada à imprensa internacional e procurar promover nela cumplicidades; fornecer documentos fotográficos para influenciar as opiniões públicas; usar jornalistas como espiões no terreno;

– Utilizar a música para atrair jovens com uma mensagem aparentemente despolitizada;

– Pôr em prática e popularizar falsos movimentos “espontâneos”, apresentados como neutros ou independentes, na realidade financiados e teleguiados com o propósito de dividir e enfraquecer o apoio ao campo adversário.

Trata-se dum sinistro manual a que políticos civis também podem recorrer, ensinando e propondo a criação de falsos inimigos, de falsos amigos, de falsos problemas e de falsas soluções, através de falsas percepções induzidas quer por falsos atentados terroristas (“false flags” ou “sob falsas bandeiras” no jargão militar) quer por falsas informações (“propaganda negra”, completamente falsa, ou “propaganda cinzenta”, que consiste em misturar o verdadeiro e o falso para melhor fazer passar o que é falso), tudo encenado sob a designação de “operações psicológicas” ou, abreviando, psy ops (“a psic” no Exército português, como aprendi quando fiz a tropa, entre 1972 e 1974).

Baseei-me na síntese, feita pelo jornalista de investigação Michel Collon, de uma obra com tiragens quase confidenciais, descrevendo algumas “armas” a que pode recorrer a política enquanto guerra mental de imagens, de palavras e de representações capazes de controlar os espíritos, a saber: a mentira, a manipulação, o logro e a astúcia. Armas que bem podem servir para degradar e destruir a democracia. A ascensão da insignificância fragiliza os regimes democráticos e torna-os mais vulneráveis às psy ops…

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990