Lei de Bases da Saúde. O que pode mudar com a revisão da lei

Lei de Bases da Saúde. O que pode mudar com a revisão da lei


Proposta de lei do Governo deu entrada ontem na AR. Contratos com privados devem ser supletivos e temporários, mas PPPs podem continuar, se forem vantajosas


A proposta do governo para rever a Lei de Bases da Saúde chegou esta quinta-feira ao final do dia ao parlamento. Depois de meses de trabalho e de um adiamento da votação em conselho de ministros na semana passada, o diploma final do executivo sofreu algumas alterações face ao que tinha resultado do grupo de trabalho liderado por Maria de Belém Roseira, que ontem não esteve presente na apresentação pública do articulado. Já uma das presenças mais notadas foi a do filho do histórico socialista António Arnaut – que em 1978 lançou as bases do Serviço Nacional de Saúde – desaparecido este ano e co-autor da proposta de uma revisão da lei de bases que o Bloco de Esquerda submeteu à AR em junho, puxando para si a defesa do SNS.

Indo às novidades, o diploma defende que o Estado deve apostar na exclusividade dos profissionais de saúde e que a gestão dos serviços de saúde deve ser prioritariamente pública, entendendo que as concessões com privados devem ser supletivas e temporárias, se houver vantagem para o Estado. Isto não significa que acabem as atuais PPPs ou acordos de cooperação com misericórdias, explicou aos jornalistas a ministra da Saúde, mas põe o SNS na rota da autossuficiência.

A atual Lei de Bases da Saúde tem 28 anos e só tinha sido revista uma vez em 2002. Contém ideias como a de que o Estado apoia o desenvolvimento do setor privado e facilita a mobilidade de trabalhadores entre os dois setores, algo que o governo elimina. A mudança de tom é grande. Na exposição de motivos, o governo diz que o forte crescimento do setor privado na saúde nos últimos anos foi “quase sempre acompanhado por efeitos negativos no SNS, sobretudo ao nível da competição por profissionais da saúde e da desnatação da procura.”

Questionada sobre a leitura em algumas alas do setor de que teria havido uma viragem à esquerda, a ministra da Saúde foi direta: “Assumo que este é um governo de esquerda. Alguém pensava que não?”.

Uma das plataformas a suscitar publicamente dúvidas em torno do diploma, pedindo uma audição aos partidos que agora deverão pronunciar-se sobre a iniciativa do executivo, foi o grupo que reuniu 44 personalidades portuguesas, nomes como Augusto Mateus, Guilherme d’Oliveira Martins, Bagão Félix e Clara Carneiro. Na proposta de lei de bases que apresentaram em maio defendiam complementaridade, com um SNS que incluísse prestadores privados e setor social, alargando-se e diversificando-se a forma de prestação de cuidados à população. Temido reconheceu todos os contributos ao longo dos últimos meses, mas sublinhou que um “grupo de trabalho é isso mesmo”. E sobre o grupo dos 44 em particular, falou de uma diferença de visão. “Compreendo que representa uma forma de ver o SNS e o sistema de saúde que, por muito que estimemos as pessoas, não tem de ser exatamente aquela que é incorporada na visão do governo. Não vem mal nenhum ao mundo por isso, não temos de estar de acordo e pode haver divergências em relação àquilo que nos serve melhor. O que achamos é que o reforço dos serviços públicos é o melhor caminho e que o setor privado e o setor social existem, têm uma função importante mas isso de forma alguma deve ser o aspeto central.”

Se estes são os princípios, a proposta de Lei de Bases da Saúde do governo não fecha à partida os cenários que poderão resultar do novo articulado, o que pode facilitar pontes à esquerda. Além dos fins das PPPs, os partidos que apoiam o governo têm defendido o fim das taxas moderadoras em atos que sejam prescritos pelos médicos. No encontro com os jornalistas, Temido disse não fazer sentido que a Lei de Bases da Saúde tivesse essa especificidade ou eliminasse de vez as taxas moderadoras, por haver “um risco moral de consumo desenfreado e contrário aos interesses da população”. Mas a governante admitiu que, a partir do diploma, que admite isenções em situação de recursos, de doença ou de especial vulnerabilidade, há margem para uma construção legal na AR em que, por exemplo, uma consulta hospitalar que seja pedida por um médico de família não esteja sujeita ao pagamento de taxa.

No campo da dedicação plena dos profissionais de saúde, a ministra da Saúde adiantou que não se pretende que seja obrigatória nem universal, mas que sejam criadas condições para que mais profissionais estejam em exclusivo nos serviços públicos de saúde. Tal como alguns hospitais privados de Lisboa já exigem que os seus quadros médicos não trabalhem para a concorrência, ou seja outros hospitais privados. O como, quando, quem e quanto custará implementar estes mecanismos de dedicação plena foram questões remetidas pela ministra para depois da aprovação da Lei de Bases da Saúde no Parlamento. Ainda no campo das portas que ficam abertas, a ministra regressou por exemplo à ideia que já tinha sido revelada por Adalberto Campos Fernandes numa entrevista ao “SOL”: a hipótese de o Estado vir a impor um período de permanência no SNS após o internato médico, para combater a falta de especialistas em algumas zonas do país. Marta Temido sublinhou que atualmente o código de trabalho já prevê este mecanismo enquanto “pacto de permanência”: os trabalhadores podem sempre optar por sair mais cedo, mas têm de devolver ao empregador o montante gasto com a sua formação.

Se os partidos não quiseram reagir antes de analisar ao detalhe o diploma do governo, Marcelo Rebelo de Sousa pediu um consenso o mais alargado possível. “Uma lei dessas tem de ser transversal”, disse.

O que pode mudar com a revisão da lei proposta pelo governo

Menor recurso a privados

A proposta de diploma do governo aponta para um princípio de cooperação entre o setor público, social e privado. Determina que a contratação a entidades terceiras está condicionada à avaliação de necessidade, com primazia dos serviços do Estado. Pode haver contratos de gestão assumidos por privados, por exemplo as atuais PPP, mas de forma supletiva e temporária. Sobre este termo, Marta Temido explicou que podem caber aqui os atuais contratos de gestão dos hospitais PPP, que duram 15 anos, mas apenas se tal for mais vantajoso para o Estado do que o assumir da gestão pública.

Dedicação exclusiva no SNS

Marta Temido recusou a ideia de impor a exclusividade de forma obrigatória a todos os profissionais de saúde, apontando para um cenário de adesão voluntária.

Pacto de permanência

Embora a Lei de Bases da Saúde não entre neste detalhe, esta foi uma das hipóteses admitidas pela ministra num encontro com a imprensa, a equacionar para o futuro. O pacto de permanência está previsto no art. 137 do Código de Trabalho, que estabelece que  "as partes podem convencionar que o trabalhador se obriga a não denunciar o contrato de trabalho, por um período não superior a três anos, como compensação ao empregador por despesas avultadas feitas com a sua formação profissional". Caso pretenda sair antes, paga o corresponde às despesas com formação. A ideia seria criar um mecanismo semelhante no fim do internato médico.

Travão a cortes na Saúde

A proposta do governo determina que a lei deve definir “critérios objetivos e quantificáveis para o financiamento do SNS”. A ideia é criar uma espécie de travão legal a cortes de financiamento no setor.
A ministra deu como exemplo de teto a despesa pública em saúde passar a representar sempre uma fatia de 15% do orçamento anual, a média europeia. Nos últimos anos a alocação tem andado entre os 12% e os 13%, explicou a ministra da Saúde. O diploma teria de ser criado.

Saúde em todas as políticas

Em termos de princípios, são muitas as novidades. Fala-se pela primeira vez de cuidadores informais e cuidados paliativos. Fica consagrado que as preocupações de saúde devem estar patentes em todas as políticas e setores de atividade.