Portugal negligencia o risco, mas sobressalta-se quando a desgraça acontece. Portugal refugia-se na sacrossanta ligeireza do improviso, do desenrasca e da proliferação de quintas e quintinhas próprias de um país com amplos recursos financeiros, o que não é o caso. É claro que não é todo o Portugal, mas uma parte.
É por tudo isto normal que se tenha instalado um clima de guerrilha na proteção civil e na emergência, cada vez mais militarizada. É o que acontece quando há falta de senso, quando se persiste em registos verbais e de ação anacrónicos e na obsessão com agendas desfocadas da realidade.
Tocado pela tragédia dos incêndios florestais, o governo resgatou a estratégia de António Costa como ministro da Administração Interna de reforço da dimensão militarizada da proteção civil, através da GNR e da colocação de militares na chefia do dispositivo. Fê-lo depois de experiências no modelo e na liderança da Autoridade Nacional de Proteção Civil, em vésperas da época especial de incêndios de 2017, sem ter aprendido nada com processos anteriores. E, mais remotamente, depois de ter criado o Grupo de Intervenção, Proteção e Socorro (GIPS) da GNR, em 2006, com todos os recursos possíveis, quando os bombeiros voluntários já começavam a minguar.
Esta deriva militarista, que faria o Bloco de Esquerda trepar paredes noutros tempos, é tão anacrónica como a prestação do líder da Liga dos Bombeiros Portugueses. Incapaz de gerar compromissos com os governos perante as sucessivas perdas de receitas das corporações, de erradicar as situações menos corretas que persistem na gestão de algumas corporações e de modernizar as soluções, Jaime Marta Soares joga tudo numa escalada de conflito que mais não é do que um take ii da passagem por Alvalade. Onde consta, aliás, que as duas dimensões se entrecruzaram, com convites a comandantes de corporações para assistirem a jogos em véspera das eleições para a Liga.
O problema é que esta questão do papel dos bombeiros no dispositivo de proteção e socorro é demasiado séria para tanto disparate e falta de senso de ambas as partes.
Há uma deriva de perda, uma enorme perceção de desvalorização e de injustiça que se adensou nos últimos anos, sem que se acautelassem mínimos de reconhecimento às mulheres e aos homens que estão ao serviço das corporações, sem que se combatessem as invejas locais em relação aos bombeiros e, sobretudo, sem que se encontrassem modelos de organização e de financiamento sustentáveis, escrutinados e eficazes, assentes na partilha, nas dinâmicas dos territórios e na finitude dos recursos financeiros.
O território acolhe um conjunto de dinâmicas, mas a organização continua a ser estática, assente na lógica das quintinhas, compartimentada em fronteiras sem nexo. A narrativa da escalada vertente, como a de todas as tentações independentistas, radica na falta de atenção aos sinais de perceção de abandono e de injustiça dos poderes. Os bombeiros voluntários têm problemas estruturais diferenciados, em função do território de inserção, que vão desde as dificuldades do voluntariado à exiguidade de meios operacionais de combate, passando pela sustentabilidade do financiamento. É que o transporte de doentes, no passado, como o combate aos incêndios florestais, na atualidade, são fundamentais para a sustentação da operacionalidade nos 365 dias do ano. Daí o fundado desespero de alguns, bem diverso do oportunismo de outros, que também os há no setor como em muitos nichos da sociedade.
O Portugal que não negligencie o risco precisa de convergências, de partilha de recursos e de trabalho sustentado e integrado, coisa bem diversa da fragmentação e das divisões pretendidas. É assim quando existe a perceção de que os recursos são limitados, mas não devem servir para alimentar agendas requentadas ou perpetuar situações insustentáveis.
É insustentável uma estrutura profissional permanente de proteção civil e socorro como não é adequada uma estrutura paramilitarizada, formada à pressa na emergência, que acaba por replicar quintinhas quando a realidade impõe as partilhas.
É irresponsável alimentar as divisões, as desconfianças e as ausências de respostas para as questões estruturais do socorro e da emergência quando a realidade vai ser cada vez mais exigente, com mais fenómenos meteorológicos extremos e os riscos de sempre.
A grande questão é que o problema dos bombeiros é também o nosso problema, como cidadãos e como comunidades. Não bastava não haver uma valorização suficiente do que fazem por nós, ainda se desdenha esse exercício cívico. É poucochinho.
NOTAS FINAIS
VIATURA DE DESENCARCERAMENTO
O Tribunal Constitucional confirmou o que soara como razão encapotada da última remodelação do governo. Um membro do governo precisava de mudar de pasta para erradicar uma situação de incompatibilidade. O primeiro-ministro resolveu com a remodelação, o caso foi arquivado. Está assim a República. Amiga. Impávida perante os meios e os fins.
ESCADA GIRATÓRIA
A escalada de fundamentalismo do alegado politicamente correto, de acordo com padrões de nichos da sociedade, terá aportado esta semana aos provérbios tradicionais. A vozearia pré-eleitoral, nacional ou importada, não vai abrandar. Valha-nos o filtro do senso, a resiliência perante os abasbacados dos poderes e a liberdade conquistada há quase 45 anos.
AMBULÂNCIA DE CUIDADOS INTENSIVOS
A greve é um direito. Quem está na oposição, por regra, exulta com a sua realização e com as dificuldades políticas por ela geradas. Quem está no governo gere os danos e responde com narrativas atenuantes e impulsos divisionistas. Depois de terem viabilizado o Orçamento do Estado para 2019, instrumento de definição das disponibilidades financeiras do país, é comatoso o estado em que estão a colocar muitos dos serviços públicos, alguns com greves cirúrgicas. É o que dá empurrar os problemas com a barriga e gerar a ideia de que os recursos chegam para tudo e para todos.
Escreve à quinta-feira