Tartufos ou o triunfo da hipocrisia


Para os hipócritas da direita, não basta o Presidente ir distribuir afectos pelos sobreviventes e pelos familiares das vítimas. É preciso que o Governo tenha sempre de reserva autocarros da Carris, para que o primeiro-ministro vá atrás do Chefe de Estado até aos locais das desgraças


1. A mesmíssima direita politicamente obscena e irresponsável que nunca se comoveu nem mostrou a menor compaixão pelos portugueses deliberadamente empobrecidos pelo Governo Passos-Portas-Albuquerque-Cristas, durante quase cinco anos no poder, atreve-se agora, como quem parte da estaca zero espetada não sei bem onde, a acusar de irresponsabilidade e falta de compaixão o primeiro-ministro de um Governo que tem resposto rendimentos que foram roubados aos portugueses, e que conseguiu levantar o moral de um país deprimido e de rastos, que essa mesma direita legou à sua imediata posteridade.

António Costa atreveu-se a não chorar em público perante a derrocada de uma estrada municipal entre Borba e Vila Viçosa, como não choraram os donos das pedreiras que esburacaram as suas margens, mas ele, primeiro-ministro, é que tinha obrigação de verter, pelo menos, uma furtiva lágrima, apesar de não ter a menor responsabilidade política e institucional pela derrocada. Mas é a ele, e à heteróclita maioria de esquerda, que a direita e os seus comentadores querem atingir, dada a escandalosa e triste falta de argumentos políticos sérios para se apresentar como verdadeira alternativa ao actual Governo.

Já não estará longe o tempo em que António Costa será severamente acusado por não se comover nem guardar um minuto de silêncio por cada vítima dum acidente que ocorra em qualquer estrada deste país. Falta de compaixão, pois claro! Leia-se, por exemplo, o que escreveu Paulo Rangel, qual “anjo exterminador” – furioso contra o “podre reino da Noruega” e contra a “esquerda radical lusa” – acerca de António Costa, no “Público”: “Diante de tragédias como as de Borba, o primeiro-ministro e o Governo lavam as mãos e cultivam a indiferença. Incêndios, Tancos, Borba: a mesma cultura de irresponsabilidade”. Lê-se e pasma-se. Este Rangel ensandeceu? Ou não passa, afinal, de um Tartufo a cirandar na política?! Há mais hipócritas assim, só que este vive lá bem no alto do seu PPD-PSD!

 

2. Mas recuemos até 12 de Maio de 1664, data em que foi representada pela primeira vez, em Versalhes, perante Luís XIV, a célebre comédia de Moliére, “Le Tartuffe ou l’Hypocrite”, que também chegou a chamar-se “L’ Imposteur” ou ainda “Panulphe ou l’Imposteur” (em 1667). Quem não gostou nada desta comédia foi uma poderosa sociedade de acção católica, secreta, denominada Companhia do Santo-Sacramento-do-Altar, que reuniu em 17 de Abril, um mês antes da estreia e, “nesse dia, falou-se em trabalhar com afinco no sentido de obter a supressão da malvada comédia do Tartufo, ficando cada membro incumbido de falar a amigos com algum crédito na Corte para impedir a representação”. Assim uma espécie de “censura prévia” do texto que lhes chegara por portas e travessas.

O problema para a Igreja era o Tartufo aparecer de sotaina e a peça terminar com o triunfo do hipócrita. Ora, os devotos já andavam de olho em Molière, pelo menos desde a comédia “L’École des femmes”. E “Le Tartuffe ou l’Hypocrite” já era demais. Percebia-se perfeitamente que o personagem era apresentado como um devoto pretensamente austero que renunciara aos hábitos vestimentários do homem na moda, usando uma espécie de uniforme que condizia com uma categoria social bem viva e muito activa. A Igreja possuía nessa altura imensos bens patrimoniais atribuídos às paróquias, aos priorados, às abadias e aos episcopados, o que só podia despertar cobiça e suscitar vocações não propriamente desinteressadas. O postulante ou candidato aos «benefícios» eclesiásticos – do mesmo modo que o actual postulante ou candidato aos “benefícios” políticos – lá conseguia que lhe conferissem a tonsura, ou as ordens menores, que não o impediam de regressar, se quisesse, ao estado laico. Mas a “tonsura” e as “ordens menores” tornavam-no apto a receber um “benefício”, e obtê-lo era, para um jovem ambicioso, a quem chamavam “abade” por antecipação, uma questão de habilidade e de abertura a relacionamentos importantes para singrar na carreira da Igreja – como agora são tantos os hipócritas que querem singrar na carreira da política.

Claro que a comédia de Molière, alvo da cruzada dos devotos, foi proibida por Luís XIV (que já a vira pelo menos duas vezes) atenta a sensibilidade desses devotos e almas piedosas respeitadoras dos costumes e conveniências. Foi em 17 de Maio de 1664. Mas, três anos depois, no dia 5 de Agosto de 1667, a comédia voltou a ser permitida, desta vez intitulada “Panulphe ou l’Imposteur”, só que o personagem principal já não era o falso devoto de sotaina, mas sim um impostor de espada à cinta e na moda, convenientemente transfigurado por Molière.

 

3. E o que dizer do Tartufo de hoje senão o que foi dito do Tartufo de há quase quatro séculos? Que era (e é) pérfido, infame, aldrabão, impostor e hipócrita, para só reproduzir alguns dos epítetos com que o mimoseou Molière na sua comédia. Mas, sem perder de vista o “modelo”, concentremo-nos na política de hoje, aqui e agora, no Portugal contemporâneo. O que o actual Tartufo reclama, na oposição aos que exercem o poder – e que, por coincidência, se situam à esquerda no leque político – é que exibam em público comiseração, piedade, dó, compaixão (e muito afecto, claro!) por todos quantos são vítimas de desgraças (incêndios; enxurradas; desabamentos e derrocadas; quedas de árvores; roubos nos quartéis, na rua e em casa, inclusive os de esticão; violências domésticas; afogamentos e naufrágios; quedas de aviões; desastres de automóveis; acidentes no trabalho, etc., etc.,etc.) e assumam em público – e de joelhos – inteira responsabilidade por essas desgraças. É que não basta o Presidente da República ir distribuir afectos pelos sobreviventes e pelos familiares das vítimas. É preciso que o Governo tenha sempre de reserva autocarros da Carris, para que o primeiro-ministro e os membros do Executivo se desloquem constantemente atrás do Chefe de Estado até aos locais dos dramas, tragédias e desgraças, prontos a fazer a contrição de todos os seus pecados, que certamente os atormentam mas não têm coragem para confessar…

Agora, há Tartufos à direita que querem derrubar este Governo com as mortíferas armas da compaixão, piedade, dó e comiseração, que, segundo eles, escasseiam à esquerda e abundam à direita. Que Deus lhes valha, já que serão todos pios! Os evangelistas Mateus, Marcos e Lucas escreveram que Jesus terá dito: “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus”. Mas eu adapto e invento: “É mais fácil um Tartufo, hipócrita e reaccionário, passar pelo fundo de uma agulha e chegar ao poder, do que um camelo conseguir entrar no reino dos céus”. E o sacrílego não sou eu, são os Tartufos!

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990


Tartufos ou o triunfo da hipocrisia


Para os hipócritas da direita, não basta o Presidente ir distribuir afectos pelos sobreviventes e pelos familiares das vítimas. É preciso que o Governo tenha sempre de reserva autocarros da Carris, para que o primeiro-ministro vá atrás do Chefe de Estado até aos locais das desgraças


1. A mesmíssima direita politicamente obscena e irresponsável que nunca se comoveu nem mostrou a menor compaixão pelos portugueses deliberadamente empobrecidos pelo Governo Passos-Portas-Albuquerque-Cristas, durante quase cinco anos no poder, atreve-se agora, como quem parte da estaca zero espetada não sei bem onde, a acusar de irresponsabilidade e falta de compaixão o primeiro-ministro de um Governo que tem resposto rendimentos que foram roubados aos portugueses, e que conseguiu levantar o moral de um país deprimido e de rastos, que essa mesma direita legou à sua imediata posteridade.

António Costa atreveu-se a não chorar em público perante a derrocada de uma estrada municipal entre Borba e Vila Viçosa, como não choraram os donos das pedreiras que esburacaram as suas margens, mas ele, primeiro-ministro, é que tinha obrigação de verter, pelo menos, uma furtiva lágrima, apesar de não ter a menor responsabilidade política e institucional pela derrocada. Mas é a ele, e à heteróclita maioria de esquerda, que a direita e os seus comentadores querem atingir, dada a escandalosa e triste falta de argumentos políticos sérios para se apresentar como verdadeira alternativa ao actual Governo.

Já não estará longe o tempo em que António Costa será severamente acusado por não se comover nem guardar um minuto de silêncio por cada vítima dum acidente que ocorra em qualquer estrada deste país. Falta de compaixão, pois claro! Leia-se, por exemplo, o que escreveu Paulo Rangel, qual “anjo exterminador” – furioso contra o “podre reino da Noruega” e contra a “esquerda radical lusa” – acerca de António Costa, no “Público”: “Diante de tragédias como as de Borba, o primeiro-ministro e o Governo lavam as mãos e cultivam a indiferença. Incêndios, Tancos, Borba: a mesma cultura de irresponsabilidade”. Lê-se e pasma-se. Este Rangel ensandeceu? Ou não passa, afinal, de um Tartufo a cirandar na política?! Há mais hipócritas assim, só que este vive lá bem no alto do seu PPD-PSD!

 

2. Mas recuemos até 12 de Maio de 1664, data em que foi representada pela primeira vez, em Versalhes, perante Luís XIV, a célebre comédia de Moliére, “Le Tartuffe ou l’Hypocrite”, que também chegou a chamar-se “L’ Imposteur” ou ainda “Panulphe ou l’Imposteur” (em 1667). Quem não gostou nada desta comédia foi uma poderosa sociedade de acção católica, secreta, denominada Companhia do Santo-Sacramento-do-Altar, que reuniu em 17 de Abril, um mês antes da estreia e, “nesse dia, falou-se em trabalhar com afinco no sentido de obter a supressão da malvada comédia do Tartufo, ficando cada membro incumbido de falar a amigos com algum crédito na Corte para impedir a representação”. Assim uma espécie de “censura prévia” do texto que lhes chegara por portas e travessas.

O problema para a Igreja era o Tartufo aparecer de sotaina e a peça terminar com o triunfo do hipócrita. Ora, os devotos já andavam de olho em Molière, pelo menos desde a comédia “L’École des femmes”. E “Le Tartuffe ou l’Hypocrite” já era demais. Percebia-se perfeitamente que o personagem era apresentado como um devoto pretensamente austero que renunciara aos hábitos vestimentários do homem na moda, usando uma espécie de uniforme que condizia com uma categoria social bem viva e muito activa. A Igreja possuía nessa altura imensos bens patrimoniais atribuídos às paróquias, aos priorados, às abadias e aos episcopados, o que só podia despertar cobiça e suscitar vocações não propriamente desinteressadas. O postulante ou candidato aos «benefícios» eclesiásticos – do mesmo modo que o actual postulante ou candidato aos “benefícios” políticos – lá conseguia que lhe conferissem a tonsura, ou as ordens menores, que não o impediam de regressar, se quisesse, ao estado laico. Mas a “tonsura” e as “ordens menores” tornavam-no apto a receber um “benefício”, e obtê-lo era, para um jovem ambicioso, a quem chamavam “abade” por antecipação, uma questão de habilidade e de abertura a relacionamentos importantes para singrar na carreira da Igreja – como agora são tantos os hipócritas que querem singrar na carreira da política.

Claro que a comédia de Molière, alvo da cruzada dos devotos, foi proibida por Luís XIV (que já a vira pelo menos duas vezes) atenta a sensibilidade desses devotos e almas piedosas respeitadoras dos costumes e conveniências. Foi em 17 de Maio de 1664. Mas, três anos depois, no dia 5 de Agosto de 1667, a comédia voltou a ser permitida, desta vez intitulada “Panulphe ou l’Imposteur”, só que o personagem principal já não era o falso devoto de sotaina, mas sim um impostor de espada à cinta e na moda, convenientemente transfigurado por Molière.

 

3. E o que dizer do Tartufo de hoje senão o que foi dito do Tartufo de há quase quatro séculos? Que era (e é) pérfido, infame, aldrabão, impostor e hipócrita, para só reproduzir alguns dos epítetos com que o mimoseou Molière na sua comédia. Mas, sem perder de vista o “modelo”, concentremo-nos na política de hoje, aqui e agora, no Portugal contemporâneo. O que o actual Tartufo reclama, na oposição aos que exercem o poder – e que, por coincidência, se situam à esquerda no leque político – é que exibam em público comiseração, piedade, dó, compaixão (e muito afecto, claro!) por todos quantos são vítimas de desgraças (incêndios; enxurradas; desabamentos e derrocadas; quedas de árvores; roubos nos quartéis, na rua e em casa, inclusive os de esticão; violências domésticas; afogamentos e naufrágios; quedas de aviões; desastres de automóveis; acidentes no trabalho, etc., etc.,etc.) e assumam em público – e de joelhos – inteira responsabilidade por essas desgraças. É que não basta o Presidente da República ir distribuir afectos pelos sobreviventes e pelos familiares das vítimas. É preciso que o Governo tenha sempre de reserva autocarros da Carris, para que o primeiro-ministro e os membros do Executivo se desloquem constantemente atrás do Chefe de Estado até aos locais dos dramas, tragédias e desgraças, prontos a fazer a contrição de todos os seus pecados, que certamente os atormentam mas não têm coragem para confessar…

Agora, há Tartufos à direita que querem derrubar este Governo com as mortíferas armas da compaixão, piedade, dó e comiseração, que, segundo eles, escasseiam à esquerda e abundam à direita. Que Deus lhes valha, já que serão todos pios! Os evangelistas Mateus, Marcos e Lucas escreveram que Jesus terá dito: “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus”. Mas eu adapto e invento: “É mais fácil um Tartufo, hipócrita e reaccionário, passar pelo fundo de uma agulha e chegar ao poder, do que um camelo conseguir entrar no reino dos céus”. E o sacrílego não sou eu, são os Tartufos!

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990