Uma orelha na relva (Da Vida e da Advocacia)


É curioso como o que nos marca mais aos 16 anos pode não ser o mesmo que nos desperta e interpela com maior intensidade aos 25, aos 30 ou, agora, aos 47


Não sei ao certo se tinha 15, 16 ou 17 anos, mas foi por essa altura que vi pela primeira vez “Veludo Azul”, de David Lynch. Considerando que o filme é de 1986, creio, e descontando o tempo que os filmes então levavam a chegar a Portugal e, ainda mais, ao Teatro Rosa Damasceno da minha Santarém dos anos 80 (outro tempo, outro mundo), talvez tivesse 16 anos. Foi um dos filmes que me marcaram para a vida – mas, também, que coisas aos 16 anos não nos marcam para a vida, não é? Revi-o depois disso várias vezes, e recentemente calhou encontrá-lo algures num canal, numa das poucas vezes em que ligo o televisor. É curioso como o que nos marca mais aos 16 anos pode não ser o mesmo que nos desperta e interpela com maior intensidade aos 25, aos 30 ou, agora, aos 47. Não que o filme, hoje, me marque menos, antes, aliás, pelo contrário, mas de cada vez que o vejo (como de cada vez que releio ou revejo, ou ouço outra vez) há sempre algo de novo, ou melhor, algo visto de uma outra forma, algo que sugere coisas não antes pensadas ou sentidas. Como se cada vez que a madalena é embebida no chá, o que se procura e, porventura, (re)encontra tenha diferentes tonalidades.

Desta vez fiquei preso sobretudo àquela imagem inicial e idílica da relva que acaba com a descoberta, à medida que a câmara desce ao pormenor, de uma orelha cortada. Primeiro vê-se um panorama geral, um relvado bonito, pacífico e reconfortante, algures numa cidade americana. A câmara vai descendo e acabamos a ver uma orelha cortada, já a caminho da putrefação e certamente decepada por meios pouco ortodoxos (como se houvesse, aliás, meios ortodoxos para retalhar partes do corpo). E ocorreu-me que esse pedaço de cinema pode ser uma boa metáfora da vida e também do que tem ocupado principalmente, vai quase para 25 anos, a minha atividade profissional: a advocacia. Poderia dar oito ou 12 ou 16 razões. Dou quatro: primeira, o que parece nem sempre é, ou então não é exatamente o que ou como parece, pelo que é bom que saibamos não nos deixarmos seduzir pelos panoramas gerais, pelas primeiras impressões, pelas aparências. É preciso fazer com que a câmara desça, circule, viaje e foque para vermos mais e melhor, e, se for preciso, ela que suba novamente, voltemos a ver a relva toda, e depois escrutinemos o que nela há ou pode haver. Segunda, tudo tem ou pode ter mais do que uma camada, e as coisas humanas tendem para a complexidade e não para a simplicidade, podendo haver sempre alguma coisa ou várias coisas abaixo da superfície ou da primeira (ou mesmo da segunda) impressão. Terceira, o belo tem sempre um grão de feio, o cheiroso tem sempre um toque de fedor, e vice-versa talvez sempre ou algumas vezes, e nada é exatamente só preto ou só branco, nada é só a idílica relva, mas também é verdade que é na relva que a orelha encontra o seu leito final. Quarta, e última, o diabo está nos detalhes, e os detalhes são o diabo, essa é que é essa. Pode sempre haver uma orelha cortada num bonito campo de relva, não há volta a dar.

 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira