Em 2009, a cidade norueguesa de Hamaroey, 300 quilómetros a norte do círculo polar ártico, dedicou todo um programa de conferências, seminários e exposições a assinalar os 150 anos do nascimento do filho mais ilustre da terra: Knut Hamsun. Nada mais normal, sendo o Nobel da Literatura (1920) e o maior escritor norueguês do séc. xx. Hamsun foi um entusiasta do regime nazi, autor de loas a Hitler (no obituário que escreveu sobre ele em 1945 chamou-lhe “guerreiro pela humanidade”) e ao iii Reich, e após a guerra só não foi executado por traição como outros colaboracionistas por ser quem era e pela idade avançada – acabaria por morrer ostracizado, em 1952, aos 92 anos.
Mas será esta normalização de Hamsun – onde se inclui o primeiro museu dedicado ao autor de “Fome” – resultado do esforço de separar o homem da sua obra para sanitizar esta dos pensamentos vergonhosos daquele? Ou estamos antes perante o regresso de uma ideologia que o peso do Holocausto empurrou para as profundezas durante mais de meio século?
Dois anos depois desse assinalar normalizador da figura de Knut Hamsun, Anders Breivik saía dos mais obscuros pensamentos noruegueses para matar 77 pessoas, 69 delas caçadas sem dó nem piedade numa pequena ilha. O massacre de Utoya, que deixou marcas nas centenas que sobreviveram e devia ter sido o grito de alerta para todo um país, afinal, não. Sete anos passados, quem sofreu foram os trabalhistas, penalizados nas urnas por impreparação para ataques terroristas. Em seu lugar assumiu um governo conservador de direita coligado desde 2013 com a extrema-direita do Partido do Progresso.
“Utoya: 22 de Julho”, o filme de Erik Poppe que na quinta-feira se estreia em Portugal, não irá conter o avanço da extrema-direita nem o seu cada vez mais confortável assento na sala de estar da normalidade – apesar de estar a ser estudada a possibilidade de passar em todas as escolas do país. Mas quer, pelo menos, roubar o protagonismo da narrativa das mãos de Breivik, onde nós, jornalistas, académicos, realizadores a deixámos cair, para gáudio desse obscuro personagem.
O filme de Poppe é um documento intenso, poderoso, claustrofóbico, uma experiência que procura aproximar-se o mais possível daquilo que sentiram as cerca de seis centenas de jovens que estavam no acampamento de verão da juventude trabalhista. Subjetivando a câmara, tornando-a mais um acossado fugindo a um mal desconhecido, tão letal quanto incompreensível, Poppe respeita as vítimas, humanizando-as no seu medo, na sua incredulidade, na paralisação perante o terror ou na fuga descontrolada face a um inimigo que não identificam e parece estar por todo o lado.
Ao contrário do filme de Paul Greengrass (“22 de Julho”), produzido pela Netflix e que se estreou o mês passado em Portugal, a película de Poppe não se dispersa em pontos de vista, concentra-se no que pretende – mostrar o ser humano perante a sombra do mal – e humaniza essas vítimas.
Enquanto Greengrass se multiplica nas perspetivas, dando peso idêntico a todas as partes – deixando-se cair até na tentação muito hollywoodiana do fascínio pelo criminoso –, o de Poppe escolhe o lado onde quer estar e daí não sai; mistura-se com os jovens de Utoya e, com um rigor parcimonioso, conta uma história de morte, de culpa, de instintos de sobrevivência, de medo (o argumento foi construído com base nos testemunhos dos sobreviventes, muitos deles assistiram às filmagens e puderam dar a sua opinião no momento sobre a credibilidade das imagens).
O filme dura os 72 minutos que durou o ataque de Breivik, todo filmado num plano-sequência para que o tempo se acrescente como elemento perturbador, numa narrativa dominada pela extraordinária montagem sonora, que acrescenta outra camada de desassossego. “Utoya: 22 de Julho” é um filme de terror de realismo quase documental, uma ficção desbastada até ao osso emocional: para dar ao espetador a sensação que deverá estar próxima dessas dores fantasma que dão aos amputados nos membros que já não têm.
E doem-nos mais aquelas mortes porque o filme não as teoriza, não busca explicações. Em última instância, se um espetador nada souber sobre o que aconteceu naquela pequena ilha a 40 km de Oslo, no dia 22 de julho de 2011, sairá dele carregado de perguntas e sem respostas: quem está a matar? Porque o faz? Como se pode matar assim?
Hannah Arendt, a propósito do julgamento de Eichmann, lembrou-nos que o mal vive entre nós, na normalidade dos nossos dias. Os homens por trás do Holocausto, do genocídio do Ruanda, do massacre de Srebrenica somos nós envolvidos em circunstâncias. E se durante mais de meio século esse mal se manteve nos cantos mais obscuros da Europa, sem sol para poder vicejar, ele está a começar a sentir-se cada vez mais à vontade para se mostrar de cara destapada à luz do dia pelo discurso político normalizado.
A Noruega, sociedade próspera e progressista pós-Utoya, dorme descansada com um partido de extrema-direita no poder. Pode argumentar-se que o Partido do Progresso (a usurpação da palavra é em si mesma um programa de apropriação cultural, tendo em conta a retrogradação ideológica dos princípios que defende) está integrado na democracia e não cauciona a ação violenta de Breivik. Balelas! Os lobos solitários ou as milícias armadas de extrema-direita são apenas a continuação da política por outros meios. Por mais demãos aplicadas a partidos como o denominado do Progresso, o verniz estala como programa político. Poppe sabe disso e “Utoya: 22 de Julho” é a sua (nossa) trincheira de resistência.