Um Papa Francisco à portuguesa


João xxi recebia em audiência tanto os ricos como os pobres. Será curioso imaginar um eventual encontro entre João xxi e o Papa Francisco, pelas afinidades que parecem ter em termos do que deve ser o representante de Cristo


Estando o Vaticano debaixo de escrutínio cerrado e a Igreja Católica sob fogo pelos múltiplos “esqueletos no armário”, como os casos de pedofilia, abusos sexuais e encobrimentos de crimes, e ainda pelas mudanças que o Papa Francisco introduziu no pensamento da Igreja, abrindo, felizmente, portas a um arejamento de ideias que era mais do que necessário, é bom nunca esquecer que a Europa (e não só) foi e é profundamente influenciada – para o bem ou para o mal – pela chamada moral judaico-cristã, e a influência da Igreja Católica por todo o mundo é incontornável, desde, aliás, há muitos séculos. Vale a pena de um ponto de vista filosófico e sociológico, mesmo para os não crentes como eu, que sou declaradamente agnóstico, ler a Bíblia, sobretudo na extraordinária tradução de Frederico Lourenço, e analisar desapaixonadamente o percurso da Igreja que, insisto, é uma instituição que nos vem moldando.

Hoje queria relembrar o único papa português: Pedro Hispano, ou Pedro Julião, nascido em Lisboa, provavelmente na freguesia de São Julião, algures entre 1213 e 1218, e que ficou para a História com o nome de João xxi. Seria filho de um médico e frequentou a escola da Catedral de Lisboa, tendo-se desde novo interessado por diversas ciências, como matemática, filosofia e medicina.

Viajou para Paris, onde estudou Medicina e Teologia, sendo colega de São Tomás de Aquino e de São Boaventura. Lecionou na Faculdade de Artes de Paris e, entre 1246 e 1252, foi professor de Medicina nas universidades de Montpellier, em França, e de Siena, em Itália, dedicando-se à dialética, lógica, física e metafísica. Foi apontado como um dos autores do tratado Summulæ Logicales, um manual sobre a lógica de Aristóteles que foi usado durante mais de três séculos em diversas universidades da Europa, tendo tido o número espantoso de 260 edições. Também colaborou em vários livros sobre doenças infecciosas, particularmente a lepra.

Apesar de poder ter havido vários Pedros Hispanos, este cultivou as ciências da época – houve quem lhe chamasse “o indivíduo mais douto do seu tempo” – e consagrou uma nova forma de pensar, definida como “um prazer sem esforço”, fazendo ver que a crítica e a análise são atitudes essenciais no mundo da ciência e do homem, empenhando-se em atividades que pretendiam, segundo escreveu, “descobrir as mil falácias que se escondem na lógica” e “conduzir os seus pensamentos e a mente das futuras gerações à linha retilínea do pensamento justo e claro”.

Há um episódio que vale a pena recordar: quando Miguel Ângelo adoeceu gravemente com uma lesão ocular, devido ao esforço de visão decorrente da pintura do teto da Capela Sistina, terá recorrido ao Manual de Oftalmologia de Pedro Julião, intitulado De Oculo, e assim “salvo” a visão com, segundo se crê, um produto à base de sangue de pombo e crista de galo, dissolvidos em vinho branco. Quando os ouvintes se deleitarem com os frescos da Capela Sistina, pensem em Pedro Julião, que antes de ser papa tinha curado o seu criador, mesmo post mortem…

Apesar de ter sido um dos médicos portugueses mais conhecidos na Europa de então e, podemos dizê-lo, ainda na atualidade, Pedro Hispano deu prioridade à filosofia nas ciências a que se dedicou. Os trabalhos de Pedro Julião sobre medicina representam, no essencial, compilações de textos árabes e dos seus comentadores, e refletem os conceitos médicos aceites na época, sobretudo em Paris, onde aprendeu e estudou.

É-lhe atribuída a autoria de uma obra importantíssima, na época, o Thesaurus Pauperum (ou Tesouro dos Pobres), na qual descreve o tratamento de várias doenças e que circulou por toda a Europa, tendo sido traduzida em 12 línguas.

O Papa Gregório x, tendo conhecimento da relevância deste português, convocou-o a Roma, onde passou a desempenhar funções de médico da cidade papal.

Em 1276, Pedro Hispano foi eleito papa e escolheu o nome de João xxi. A sua eleição teve lugar em Viterbo, num período de grandes tensões políticas e religiosas. Alguns dos cardeais que integravam o conclave chegaram a ser agredidos, mas João xxi iria marcar o seu breve pontificado pela fidelidade ao xiv Concílio Ecuménico de Lião e uma das suas primeiras medidas foi mandar castigar, num tribunal criado para o efeito, os que haviam molestado os cardeais presentes no conclave que o elegera.

Embora sem grande sucesso, levou por diante a missão encetada por Gregório x de reunir a Igreja Ortodoxa Grega à Igreja Católica Romana, tentando também libertar a Terra Santa do poder dos turcos otomanos, ao mesmo tempo que se empenhava em reconciliar as grandes nações europeias, como França, Alemanha e Castela, dentro do espírito da unidade cristã.

De igual modo, teve iniciativas com vista ao ecumenismo, tendo aprovado, em 1276, a fundação do Colégio Miramar, destinado ao estudo da língua árabe, e um seminário na ilha de Maiorca, no vale de Mossa (para onde, curiosamente, se retirou Chopin com a sua mulher, a escritora George Sand, alguns séculos mais tarde), destinado ao ensino da língua árabe.

Pontífice dotado de rara simplicidade, João xxi recebia em audiência tanto os ricos como os pobres. Será curioso imaginar um eventual encontro entre João xxi e o Papa Francisco, pelas afinidades que parecem ter em termos do que deve ser o representante de Cristo. Dante Alighieri, na sua famosa Divina Comédia, colocou a sua alma no Paraíso, entre as almas que rodeiam a de São Boaventura, apelidando-o de “aquele que brilha em doze livros”, menção clara aos 12 tratados escritos pelo erudito pontífice português. O rei Afonso x de Leão e Castela, o Sábio, avô de D. Dinis de Portugal, elogiou-o em forma de canção-poema no canto xii da obra “O Paraíso”.

Em Thesaurus Pauperum, o “Tesouro dos Pobres”, o médico e papa português ensinava os mais indigentes, pobres e sem recursos, e sem dinheiro para consultarem um médico, a tratarem, eles próprios, as suas doenças – muitos séculos antes de a OMS, na Conferência de Alma-Ata, em 1974, ter declarado o mesmo.

A sua maior preocupação foi que todos pudessem ter acesso aos tratamentos e, por isso, tentava descobrir unguentos e pomadas passíveis de serem feitas com ervas e plantas existentes na natureza.

Ao sentir-se doente, retirou-se para a cidade de Viterbo, onde os papas tinham uma residência “de descanso”, e aí veio a morrer, em 1277, vitimado pelo desmoronamento das paredes do seu aposento quando de umas obras no palácio apostólico. Crime? Acidente? Uma das suas experiências de alquimista que correu mal?… Nunca se saberá a verdade.

Foi sepultado junto do altar-mor da Catedral de São Lourenço, naquela cidade. Através do contributo da Câmara Municipal de Lisboa e graças à iniciativa pessoal do dr. João Soares, então seu presidente, o mausoléu de Pedro Hispano foi colocado, a título definitivo, ao lado do Evangelho da Catedral de Viterbo, a 28 de março de 2000.

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