O piquete

O piquete


Temos de repensar o modelo de gestão e vou até mais longe: refundar a RTP, à luz do serviço público, mas não como uma vaca sagrada ideológica que alguns querem definir


Na madrugada do último domingo tinha acabado de ver o excelente “Olhar o Mundo”, apresentado pelo jornalista António Mateus, e eis que, a seguir ao genérico de fecho do programa, se cola um direto com uma repórter no incêndio de Sintra-Cascais.

Nesse momento, a repórter já estava num relato contínuo, aos nossos olhos, não tinha iniciado a notícia propriamente dita. Porquê? Porque a emissão especial não foi aberta por alguém no estúdio, pelo chamado pivô. Os telespetadores devem ter ficado baralhados, como eu. E isto em televisão parece-me surreal… ainda pensei que fosse algum constrangimento técnico ou algo parecido. Mas não. Decorreram longos minutos, cerca de uma hora de reportagem contínua, diga-se, num exercício muito profissional, mas penoso. Tiro o meu chapéu às técnicas de respiração da minha camarada de profissão! Nem um jornalista no estúdio que com ela conversasse, com perguntas próprias de um direto, que a ajudassem no seu trabalho e também à compreensão dos acontecimentos por parte de quem estava a ver. Nada!

Mais tarde surge outra repórter, noutro local, junto à aldeia de Charneca, Cascais. E continuavam as duas, sem apoio no estúdio de emissão. Emissão? Não houve emissão tal como a concebemos. Nem sequer um pivô-âncora destacado para o local que fizesse uma ponte com os/as colegas.

O incêndio em Sintra começou às 22h50, já tínhamos notícia nos espaços seguintes, chegou-me minutos depois com campainhas no telemóvel e tablet, de todo o lado. A RTP3 tem noticiários a essas horas. O que se passou então? Não chegou à redação um take da agência Lusa? Ninguém na redação se deu ao trabalho de olhar para a página da Proteção Civil que, em minha opinião, até funciona muito bem? Será que os editores de serviço terminaram o horário e não sabiam, ou então sabiam e as “regras” são estas, o que ainda é mais grave: não haver jornalistas- -apresentadores durante a madrugada?

Não acredito na segunda hipótese porque os profissionais da RTP são sérios e dedicados…

Não é um caso isolado, infelizmente, quando a RTP é posta à prova em situações que exigem o “normal”. O “normal” é ter agilidade e prontidão e equipas mínimas para porem a mochila às costas e zarparem para o terreno! O “normal” é fazer obrigatoriamente o que se exige num canal, seja público ou privado, que tem um compromisso com os seus telespetadores e, no caso da informação, uma grande responsabilidade social.

E estávamos perante um grande incêndio com ameaça de se tornar urbano.

E a RTP tem, mais que qualquer outra concorrente, um orçamento e meios materiais e humanos para não permitir situações destas e outras que seria exaustivo enumerar. Como pode investir tanto no entretenimento como os Eurofestivais, talk-shows, o futebol (muitíssimo mais que SIC e TVI) e, aparentemente, descurar o setor da informação, operando apenas alterações de grelha, “danças de cadeiras” e pouco mais, isto pelo que é percetível?

E depois manter, ao que parece até ao final de 2019, 170 trabalhadores precários. Porque não aplicou o PREVPAP?

É isto que queremos do serviço público, de uma televisão pública da União Europeia, que está constantemente a mudar as suas equipas diretivas, havendo quem fale mesmo numa “estrutura obesa de diretores plenos e adjuntos”?

Os partidos políticos, o governo que tutela e certas corporações raramente se pronunciam sobre o estado a que chegou o serviço público de rádio e televisão no que diz respeito ao seu funcionamento quotidiano, às respostas necessárias aos problemas de estrutura e organização.

Fala-se muito de horizontes e de necessidade de mudar, mas isso é consensual para o padeiro, o professor catedrático e qualquer político sério.

O clamor do Provedor do Ouvinte da Rádio, João Paulo Guerra, que ouviu corajosos funcionários da estação numa emissão sobre “Os Santos da Casa”(que fazem milagres), incluindo membros da estrutura técnica diretiva, caiu um saco roto. E este é apenas um exemplo do “estado a que isto chegou”.

A empresa, nos últimos anos, empreendeu uma crescente externalização dos seus serviços e outsourcing para poupar dinheiro e reduzir o enorme passivo crónico de décadas. Contudo, revela esta falta de capacidade para atuar nas diferentes dimensões em que tem de atuar. Quando é preciso. Claro que existiram muitos bons exemplos, como a cobertura dos fogos que devastaram o país em 2017.

Temos de repensar o modelo de gestão e vou até mais longe: refundar a RTP, à luz do serviço público, mas não como uma vaca sagrada ideológica que alguns querem definir. Serviço público é serviço público. E o jornalismo é serviço público, por definição. E um canal pago pelos contribuintes na fatura da luz ou por subvenções do Estado tem obrigações muito maiores que os demais.

Desde logo, podia começar-se por se pedir à administração um quadro atualizado da situação da empresa em todos os domínios, na Assembleia da República. E que o seu presidente fosse eleito pela mesma, por maioria qualificada.

 

Jornalista aposentado