Era uma ajudinha para comprar o traje


Sobre a falta de sensibilidade na rentrée académica


Chega esta altura do ano e as ruas enchem-se de caloiros e veteranos a gritar os hinos dos cursos e a fazer macacadas nos relvados da cidade. O meu espírito académico na faculdade andou sempre muito perto do zero, embora tenha uma memória simpática do dia em que, caloiros, fomos de olhos vendados até uma qualquer creche nas imediações onde miúdos nos pintaram a cara. Ficou por ali a experiência de integração e não veio mal nenhum ao mundo: deu para conhecer os colegas, topar os populares do curso, quebrar o gelo. Depois desliguei do programa das festas, ao ponto de só me ter apercebido de que tinha negligenciado a minha afilhada de curso quando nos tornámos amigas na redação anos mais tarde.

Dito isto, nada contra a tradição, desde que não ponha em causa a vontade, segurança e dignidade de ninguém. Infelizmente acontece tornou a acontecer este ano mas não me parece que se possa generalizar que todas as praxes são violentas ou abusivas.

Muitas revelam falta de sensibilidade, mas este ano, o que é um pouco mais triste, esse lapso não se ficou pelos alunos. Numa entrevista, o reitor da Universidade de Lisboa, crítico da opção do governo de cortar vagas no litoral por antever que o resultado seja beneficiar as escolas privadas, defendeu que o desenvolvimento do interior não se faz assim, à custa dos alunos e do dinheiro das famílias – o que é um princípio justo mas que, na prática, é posto em causa todos os dias em muitas outras áreas onde o investimento fica aquém da expectativa e necessidades dos contribuintes, dos tempos de espera na saúde à instabilidade na escola pública. 

Para dar força ao seu ponto de vista, António Cruz Serra acrescentou que não era o corte das vagas que ia fazer o filho de um CEO das empresas do PSI20 ir estudar para as universidades do interior. “Pedantismo bacoco”, adjetivou, em resposta, o vice-reitor da Universidade da Beira Interior, sublinhando que, pela UBI, já passaram filhos de ministros, de deputados, de CEOs, etc. Há dias, no Facebook, João Canavilhas lançava mesmo o seguinte desafio: “Acham que a procura de uma Instituição de Ensino Superior é diretamente proporcional à qualidade do ensino aí ministrado, por que razão Engenharia Informática e de Computadores no IST-Lisboa teve um último colocado com 171,5 (170 vagas), e esse mesmo curso da mesma escola, mas lecionado no Tagus Park, tem 162,5 (90 vagas)? Proponho uma experiência: a abertura deste curso do IST na bonita aldeia de Monsanto só para vermos o que acontece à procura e à nota do último colocado.” 

Não sei se é a descentralizar cursos (por que não?) ou a limitar vagas que se resolve o abandono do interior – é um sinal, pelo menos, e uma forma de financiar estudos em locais onde ter mais alunos pode contribuir para maior dinamização académica e da economia local. Mas invocar os filhos de um grupo restrito de gestores, em teoria mais favorecidos, num problema nacional que tanta desigualdade de oportunidades e investimento continua a gerar parece só alheamento. As faculdades mais procuradas de Lisboa podem ter toda a qualidade do mundo – a polémica nada diz sobre isto – mas está visto que não escapam ao disparate.

Voltando às praxes, e só para equilibrar as coisas, caso esteja algum CEO de uma empresa do PSI20 a ler, há alguma probabilidade de os filhos caloiros terem andado a pedir uma ajudinha para comprar o traje numa destas tardes na Baixa de Lisboa. Fui abordada com um penico – parecia um penico – para receber as esmolas para esta tão distinta causa. Os colegas já trajados iam um pouco afastados, possivelmente a vigiar se a figura era pateta o suficiente. Ou de terem andado a despir-se em frente aos novos colegas no Parque das Nações para levarem com a água dos repuxos. No litoral ou no interior, sem valores, respeito pelo outro e vontade de trabalhar, uma coisa é certa: não é uma ou outra escola que os fará melhores pessoas.


Era uma ajudinha para comprar o traje


Sobre a falta de sensibilidade na rentrée académica


Chega esta altura do ano e as ruas enchem-se de caloiros e veteranos a gritar os hinos dos cursos e a fazer macacadas nos relvados da cidade. O meu espírito académico na faculdade andou sempre muito perto do zero, embora tenha uma memória simpática do dia em que, caloiros, fomos de olhos vendados até uma qualquer creche nas imediações onde miúdos nos pintaram a cara. Ficou por ali a experiência de integração e não veio mal nenhum ao mundo: deu para conhecer os colegas, topar os populares do curso, quebrar o gelo. Depois desliguei do programa das festas, ao ponto de só me ter apercebido de que tinha negligenciado a minha afilhada de curso quando nos tornámos amigas na redação anos mais tarde.

Dito isto, nada contra a tradição, desde que não ponha em causa a vontade, segurança e dignidade de ninguém. Infelizmente acontece tornou a acontecer este ano mas não me parece que se possa generalizar que todas as praxes são violentas ou abusivas.

Muitas revelam falta de sensibilidade, mas este ano, o que é um pouco mais triste, esse lapso não se ficou pelos alunos. Numa entrevista, o reitor da Universidade de Lisboa, crítico da opção do governo de cortar vagas no litoral por antever que o resultado seja beneficiar as escolas privadas, defendeu que o desenvolvimento do interior não se faz assim, à custa dos alunos e do dinheiro das famílias – o que é um princípio justo mas que, na prática, é posto em causa todos os dias em muitas outras áreas onde o investimento fica aquém da expectativa e necessidades dos contribuintes, dos tempos de espera na saúde à instabilidade na escola pública. 

Para dar força ao seu ponto de vista, António Cruz Serra acrescentou que não era o corte das vagas que ia fazer o filho de um CEO das empresas do PSI20 ir estudar para as universidades do interior. “Pedantismo bacoco”, adjetivou, em resposta, o vice-reitor da Universidade da Beira Interior, sublinhando que, pela UBI, já passaram filhos de ministros, de deputados, de CEOs, etc. Há dias, no Facebook, João Canavilhas lançava mesmo o seguinte desafio: “Acham que a procura de uma Instituição de Ensino Superior é diretamente proporcional à qualidade do ensino aí ministrado, por que razão Engenharia Informática e de Computadores no IST-Lisboa teve um último colocado com 171,5 (170 vagas), e esse mesmo curso da mesma escola, mas lecionado no Tagus Park, tem 162,5 (90 vagas)? Proponho uma experiência: a abertura deste curso do IST na bonita aldeia de Monsanto só para vermos o que acontece à procura e à nota do último colocado.” 

Não sei se é a descentralizar cursos (por que não?) ou a limitar vagas que se resolve o abandono do interior – é um sinal, pelo menos, e uma forma de financiar estudos em locais onde ter mais alunos pode contribuir para maior dinamização académica e da economia local. Mas invocar os filhos de um grupo restrito de gestores, em teoria mais favorecidos, num problema nacional que tanta desigualdade de oportunidades e investimento continua a gerar parece só alheamento. As faculdades mais procuradas de Lisboa podem ter toda a qualidade do mundo – a polémica nada diz sobre isto – mas está visto que não escapam ao disparate.

Voltando às praxes, e só para equilibrar as coisas, caso esteja algum CEO de uma empresa do PSI20 a ler, há alguma probabilidade de os filhos caloiros terem andado a pedir uma ajudinha para comprar o traje numa destas tardes na Baixa de Lisboa. Fui abordada com um penico – parecia um penico – para receber as esmolas para esta tão distinta causa. Os colegas já trajados iam um pouco afastados, possivelmente a vigiar se a figura era pateta o suficiente. Ou de terem andado a despir-se em frente aos novos colegas no Parque das Nações para levarem com a água dos repuxos. No litoral ou no interior, sem valores, respeito pelo outro e vontade de trabalhar, uma coisa é certa: não é uma ou outra escola que os fará melhores pessoas.