José Souto Moura. “É um erro pensar que tudo o que acontece de positivo é só por causa do PGR”

José Souto Moura. “É um erro pensar que tudo o que acontece de positivo é só por causa do PGR”


Depois de anos no Supremo Tribunal de Justiça, José Souto Moura jubilou-se este verão, prestes a completar os 68 anos.


Uma lufada de ar fresco animou à época a justiça portuguesa. O seu mandato foi marcado por processos de corrupção e de crime económico. Com ele, casos como o de Isaltino de Morais, Fátima Felgueiras, Apito Dourado, Vale e Azevedo e o processo Freeport não ficaram na gaveta. Mas foi o escândalo Casa Pia que se colou à pele de José Souto Moura para o melhor e o pior levando a que o primeiro-ministro, à época José Sócrates, tivesse pedido a sua cabeça. As tentações repetem-se mas para ele o Ministério Publico está muito além da figura que o representa. Amado por uns e odiado por outros, acabou por sair pelo seu próprio pé, rejeitando o pedido de Cavaco Silva que pretendia renovar o seu mandato. Numa altura em que ainda não se conhece o destino de Joana Marques Vidal, o procurador maldito discorre sobre este e outros temas. 

Vive-se um clima de PGRfobia. Uns têm medo de que Joana Marques Vidal se vá embora, outros que fique. Também foi contaminado?

Se eu fui contaminado? Não! Tenho uma posição pessoal sobre isso mas não tenho nada que revelar. O que posso dizer é o que penso sobre o tema. O meu antecessor, o dr. Cunha Rodrigues, esteve 16 anos como procurador-geral porque na altura não havia limite para o mandato. Era uma situação considerada um pouco exótica por comparação a cargos do mesmo género, e mesmo para lugares políticos como a Presidência da República que tinham um limite temporal, mas em 1997 houve uma revisão constitucional que estabeleceu um mandato de seis anos. Curiosamente, esse mandato de seis anos é o mais longo – o do Presidente da República são cinco, legislatura quatro, presidente Tribunal de Contas quatro também. E a ideia que tenho é que essa duração foi escolhida para dar estabilidade ao cargo.

Não terá sido uma forma elegante de pôr fim ao mandado de Cunha Rodrigues?

Acho que Cunha Rodrigues saiu pelo pé dele. Aliás essa modificação constitucional, que depois passou para o estatuto do Ministério Público, nunca se aplicaria ao mandato que estava em curso. Eu fui nomeado a seguir.

Não considera perigoso que a nomeação do PGR tenha entrado na luta política?

Olhe?, a expressão da lei, quer da constituição quer do estatuto do MP é: um mandato de um PGR tem a duração de seis anos e a partir daqui pode-se pensar que são seis anos ou não. Admito perfeitamente que cabendo a proposta do nome para o cargo ao governo e a nomeação ao Presidente da República que o governo diga: ‘A minha proposta para o mandato seguinte é a mesma pessoa’.

Mas a nomeação está ou não a ser politizada? 

Não podemos ignorar que a nomeação de um Procurador-Geral é um ato político. Isto é, é uma escolha do governo e do governo que está. Não é de um governo sombra ou de um governo alternativo ou do governo que a oposição faria. É evidente que a nomeação do PGR não pode ser objeto de um referendo, longe disso, as pessoas têm a liberdade de se exprimir, mas com uma contenção que não está a haver neste momento. Acho que podia haver um sistema diferente. Por exemplo, na Hungria o procurador-Geral é escolhido pelo parlamento. Cá não é o caso, cá é uma prerrogativa do governo que se tem de pôr de acordo com o Presidente da República. Claro que se está a dar um relevo talvez exagerado ao assunto.

Acha que no modelo atual pode, em determinados momentos, haver a tentação de condicionar a autonomia do MP?

Há muitas democracias, muitos estados de direito que têm sistemas de nomeação e de funcionamento do MP que não têm nada a ver connosco. Desde a Itália, que são magistrados como os juízes que podem exercer funções na judicatura ou no MP. Tudo isto tem muito a ver com o passado histórico dos países depois da guerra. No caso de Itália tem a ver com o pós Mussolini. Em Portugal acho que se criou um equilíbrio de forças em que o MP foi dotado de autonomia. E essa autonomia não se perde pelo facto de o procurador-Geral resultar de uma opção política, porque me parece que o exercício do cargo não pode ser visto como um cargo político. E porquê? Porque os magistrados do MP estão obrigados a observarem estritamente a objetividade, ou seha: a verdade dos factos e a legalidade. E estas são as marcas do MP português. E, portanto, não faz sentido que os magistrados estejam obrigados a isto e quem está no topo não esteja. Porque se isso é uma garantia para os cidadãos, esta objetividade e legalidade são determinantes. 

Esta espécie de ultimato ao governo da parte daqueles que querem que Joana Marques Vidal seja reconduzida poderá vir do receio que venha para o seu lugar alguém que evoque um passado recente que deixou más memórias?

Há uma coisa que eu não posso fazer, que é apreciar o trabalho da atual PGR. Não posso fazer em relação a ela como a um futuro sucessor, nem aos meus antecessores. Porque eu trabalhei com vários procuradores gerais ainda antes de eles ocuparem o lugar e não seria correto falar de um colega. Agora o que eu acho é que as pessoas têm de aceitar e reconhecer o regime que temos, o que passa por aceitar a opção do governo em funções e do Presidente da República que está. De outra maneira pode ser entendido como uma forma de pressão. E isso acho mal.

Mas foi o próprio governo, através da ministra da Justiça que, quase um ano antes do fim do mandato da atual PGR, revelou numa entrevista a sua posição afirmando que no seu entender o mandato era de seis anos e único. Estando a decorrer uma investigação a um ex-governante socialista, isto pode ter sido interpretado como uma retaliação a Marques Vidal?

Sabe que em relação a essa intervenção da ministra da Justiça, pode ser ingenuidade minha, mas não me parece que a sua intenção fosse a de avisar as hostes: ‘Meus amigos ponham-se a pau porque acabou este mandato’. Parece-me que foi apenas a expressão de uma opinião pessoal porque há pessoas que entendem que quando a Constituição diz que o mandato é de seis anos – e isso foi introduzido na sequência de se ter achado incorreto que um mandato não tivesse limite – entendem que são seis anos não renováveis. Não é a minha posição como já disse. Porque não há nada que o impeça. Aliás há uma prática que vem ao encontro desta minha posição. O presidente do Tribunal de Contas, por exemplo, que é nomeado exatamente da mesma maneira já tem sido ‘renovado’. Aliás posso dizer, e não é inconfidência nenhuma, vem no livro dele, eu cheguei a ser contactado por Cavaco Silva a pôr-me a questão se eu queria continuar ou não.

No entanto houve muitas pressões para que saísse?

Independentemente das pressões. Porque as pressões podem-me afetar mais ou menos. Mas antes de terminar o mandato eu já tinha dado a entender que não estaria disponível. E a questão terá ficado encerrada por aí. Talvez por isso não tenha havido esta tensão, todo este movimento.

O problema em relação a Joana Marques Vidal fixa-se muito na Operação Marquês, um processo que abala o regime.

Isso não sabemos. Ainda é prematuro dizer que o sistema abalou. Só se poderá dizer isso depois do julgamento e do processo ter transitado em julgado.

Mas além desse processo houve outros, alguns deles foram julgados, temos casos relacionados com o BPN, um deles, o Homeland, que envolve um político, Duarte Lima. 

O problema que se põe aí é se o regime está podre agora ou se sempre foi assim. E a minha intuição, ou visão empírica das coisas, é que há uma realidade que é hoje percetível para a maior parte das pessoas, há uma transparência na Justiça que não havia. Não é só a transparência que não havia é também uma cultura e uma mentalidade em que o prestígio das instituições era protegido de boa-fé por pessoas que achavam que isso era mais importante do que perseguir criminalmente este ou aquele. Ou seja, o prestígio das instituições estava acima do crime. Era essa a mentalidade.

A questão da recondução de Marques Vidal é então pacífica para si…

Sim, eu entendo que o governo pode propor de novo a mesma pessoa. Pode dizer: ‘Eu entendo que esta pessoa fez um bom papel, tenho confiança política nesse pessoa, porque a opção é política, e proponho a mesmo. Tem de se aceitar’.

Acha que se gosta de pessoalizar as coisas?

Sim, o pessoal gosta de pessoalizar, quer uma cara.

Quem é o pessoal?

É o povo. Precisam de uma cara, de um bode expiatório.

Mas precisam de uma cara ou atribuem-lhe os feitos por comparação a outros tempos onde a Justiça parecia não tocar em alguns?

O que estou a dizer é que muitas vezes dá-se a entender que o PGR é o responsável por tudo quanto se passa no MP e aquela ideia de autonomia técnica, de objetividade e legalidade de guiar toda a atividade do MP. É um erro pensar-se que tudo o que se consegue de positivo é só por causa do PGR, eu falo por mim.

Não é possível que haja procuradores que façam um melhor trabalho e com isso consigam resultados melhores?

Claro, evidentemente. Há procuradores que conseguem criar um ambiente, uma cultura e sobretudo estabelecer diretivas que façam com que a atuação no MP no Minho seja igual à do Algarve. Essa é que é a grande vantagem do sistema hierárquico que nós temos. Por exemplo, em Itália cada Procuratura tem o seu chefe que faz o que entende, estão todas separadas umas das outras. Há um procurador geral junto do Tribunal da Cassação de Roma, que é um lugar praticamente protocolar representativo… A grande vantagem do sistema português é este, não é o procurador-Geral dizer o que acha neste ou naquele processo, é fazer com que os magistrados ajam em todos os processos de forma semelhante. Quando comecei havia uma grande discrepância acerca do que devia considerar-se armas proibidas. Armas proibidas em parte do país eram armas que não estavam no comércio, que não se podiam adquirir, de guerra. Mas noutra parte do país as armas eram proibidas relativamente ao portador ou ao detentor. Ou seja, uma arma detida por alguém que não tinha licença nem uso e porte de arma. E o país vivia assim. Até que houve uma fixação de jurisprudência que modificou isto tudo. É um exemplo da grande vantagem de um sistema do MP como temos, com hierarquia. A hierarquia não é para intervir nos casos concretos, mas para que os casos concretos sejam abordados nos mesmo termos.

O MP não deveria estar preparado até para um PGR que lhe seja adverso?

A nota fundamental, volto a dizer, é o estatuto do MP português. Isto é, a maneira como o MP se tem de comportar. Independentemente de quem estiver no topo. Porque no fundo a hierarquia do MP não tem nada a ver com a hierarquia da administração, muito menos com a militar. Há aqui, para além dessa observância estrita da legalidade e da objetividade, um complemento de autonomia técnica que eu acho que tem de ser respeitado. Se não for assim não são magistrados. O facto de serem magistrados pressupõe o respeito por essa autonomia técnica. Só se houver uma apreciação dos factos completamente asnática ou uma aplicação da lei que para toda a gente é um erro completo aí é que se tem de meter o magistrado na ordem. É preciso respeitar essa autonomia técnica. Eu tive essa experiencia em vários processos. E procurei fazer isso. E porquê? Porque também tive um processo em que fui alvo de algumas abordagens. Por exemplo, num caso de Setúbal. Foi um processo que me marcou muito, porque parece que pela primeira vez num único processo foram acusados praticamente elementos de todas as forças de segurança deste país: PSP, da GNR, da Guarda Fiscal, empresas de segurança. E, infelizmente, também um colega meu, que foi das coisas que mais me custou pela reação até da hierarquia que isso era perfeitamente inédito. 

Mas sentiu alguma pressão?

Não, honra lhe seja feita ao dr. Cunha Rodrigues, não me levantou qualquer problema.

E recentemente viu-se envolvido também noutro caso que visava um colega, o juiz Rui Rangel…

Isso foi outro assunto que encarei com naturalidade. Um dia estou a trabalhar [no Supremo do Tribunal de Justiça] e pediram-me para ir ao gabinete do presidente, que me diz que eu acabara de ser sorteado para presidir à busca a fulano tal. Eu disse: ‘Bom, tem de ser’. E no dia seguinte levantei-me de madrugada, fui buscar os mandados, fui saber o que era aquilo, que não sabia e lá fui. Isso curiosamente levantou mais uma polémica, porque se entendeu que houve mais uma vez uma violação do segredo de Justiça. Aliás, houve um jornalista que escreveu um artigo de opinião a dizer que eu era conivente com a situação. Alguém foi, mas eu não fui de certeza – até posso dizer que quando cheguei estava a comunicação social dentro do condomínio do senhor e a PJ e eu disse à PJ para lhes pedir que saíssem e eles saíram. Mas tinham umas telas de tal maneira que não adiantou nada. Até acharam muito estranho que eu tivesse entrado no jipe da pessoa em causa quando a minha função ali era zelar para que tudo corresse da melhor maneira. Se fazem uma busca a uma viatura para ver o que lá está não é de estranhar que eu lá estivesse.

Falou ainda há pouco que hoje existe uma transparência que antes não existia. Essa transparência é já posterior a ter deixado a PGR?

Acho que as coisas começaram ainda no tempo do doutor Cunha Rodrigues. Da minha parte tentei que isso fosse assim. Levei a sério aquilo que está no Código de Processo Penal: a notícia de um crime leva obrigatoriamente à abertura de um inquérito. Se não for assim – e há países onde não é assim e são países democráticos e cheios de Estado de Direito – acabaremos por cair numa investigação que é estritamente policial, que é pré-processo judicial e de alguma maneira menos controlada. No caso do Madoff, por exemplo, ele andava a ser investigado há anos e ninguém sabia. Até por uma questão de direitos de defesa, se uma pessoa está a ser investigada deve saber que está sob investigação. Isto só para dizer que essa transparência começa na necessidade de abrir um inquérito por qualquer notícia de crime, claro, com credibilidade.

Existe agora por parte da opinião pública o sentimento de que a Justiça, mesmo em relação aos poderosos, funciona. Ou seja já não há uma justiça para cidadãos de primeira e de segunda…

Entrei para a magistratura antes do 25 de Abril. A partir de certo nível, a partir de determinada importância do cargo que uma pessoa ocupava era muito difícil tocar-lhe. Exatamente pelo que disse há bocado: o prestígio da instituição, e não era por compadrio ou amiguismo, levava a que se ficasse inerte.

Uma questão patriótica ou porque o respeitinho ainda era muito bonito?

Não, não! Não era tanto a pessoa, era a instituição. Hoje, a sensação que tenho é que não há privilégio nenhum pelo facto de se ser magistrado, político ou banqueiro.

E então casos como a Operação Lex ou a Fiz, que tocam procuradores e juízes e em políticos, credibilizam ou desprestigiam a magistratura?

Credibiliza, evidentemente! Agora, não é fácil. Porque a partir de certa altura, é o poder da Justiça, com os meios que tem – e muitas vezes estão aquém do que se pensa, eu cheguei a ter problemas gravíssimos na procuradoria por exemplo -, de não ter dinheiro para traduções quando ouvia um arguido estrangeiro. Há aqui um confronto de poderes. E, de um lado, temos os poderes da Justiça com as limitações que tem, do outro lado temos outros poderes: financeiros, políticos, empresariais.

Acha, portanto, que a tendência de o poder político de tentar controlar a Justiça se mantém? Será isso que as pessoas receiam quando se fala da nomeação de um novo PGR, porque, de facto, Joana Marques Vidal deixa uma marca de independência?

Não é bem interferir, é uma luta que se faz sem interferências usando meios laterais. Por exemplo, na comunicação social, pressionando. Não podemos ser ingénuos ao ponto de pensar que uma pessoa que está a ser investigada, que está a ser acusada e que tem um cargo importante não se mexe por todos os lados para ver se consegue safar-se.

Como no caso Casa Pia.

Sim, aconteceu e de que maneira.

E tal como está a acontecer com Joana Marques Vidal, em relação ao senhor conselheiro fizeram de tudo para o pressionar. Quando, por exemplo, estava na calha o pedido de levantamento de imunidade parlamentar de Paulo Pedroso tentaram-no pressionar no sentido de evitar a prisão preventiva. E há mesmo escutas entre o atual primeiro-ministro e Ferro Rodrigues para tentarem condicionar a sua ação – com telefonemas diretos de António Costa para o senhor conselheiro e para o Presidente da República.

Eu não me estava a referir a nada disso.

Mas estávamos nós quando lhe colocámos a pergunta.

Essa pergunta tem a seguinte resposta: é impensável que o procurador-Geral controle todos os passos de uma investigação. Portanto, nesse caso que falou, das duas, uma: ou eu tinha um absoluto controlo da vida íntima das pessoas, o que era impensável, ou estudava o processo como o magistrado titular do processo. E aquilo que eu procurei sempre foi acompanhar a evolução dos casos quando achasse que as coisas não estavam a correr muito bem. Não me lembro dessas manigâncias, mas também não estranho que tenha havido. Isso não me afeta nada, nem nunca me condicionou. Mas eu não me estava a referir a isso, mas sim a fait-divers durante o processo e que eu interpretei como tentativas de fazer uma defesa dos envolvidos fora do processo. Ou seja, descredibilizando o processo e, em última instância, a minha pessoa.

Qual foi o seu principal inimigo durante o prcesso da Casa Pia, foi a comunicação social?

(Risos) Não, a comunicação social não é inimiga e tem um papel fundamental na vida democrática. Mas todos esses casos não teriam acontecido se não houvesse violação de segredo de Justiça. Começou tudo com uma carta anónima em que se falava no Presidente Sampaio, de uma forma a tentarem virá-lo contra mim, mas não conseguiram. Depois foi com o álbum das fotografias que tinha meio mundo. Chamei o procurador e perguntei-lhe: ‘que pouca vergonha é esta senhor doutor?’ Mas o doutor João Guerra deu-me uma explicação que eu aceitei: ‘Há aqui pessoas que são suspeitas, há aqui pessoas que não sabemos se são ou não e pessoas que estão acima de qualquer suspeita’ – se é que isto se pode dizer. E isto é importante porque quando os miúdos identificam as pessoas no álbum, se identificassem uma dessas acima de qualquer suspeita, no mínimo, ficava estabelecida uma dúvida sobre o depoimento deles. Não quer dizer que não tivesse havido referências a um desses nomes, o que foi altamente desagradável, mas aí eu não podia falsificar os autos e depois a comunicação social pegou nisso e fez aí um festival com esses nomes, tratando-se até de pessoas que nunca foram investigadas. Mas que de qualquer maneira ficaram agastadas, eu também teria ficado.

Houve ainda a história do Envelope 9.

Tratou-se, se bem me lembro, de um erro técnico de uma empresa a quem tinha sido pedido um relatório dos telefonemas feitos por certas pessoas e que enviaram um ficheiro todo com contactos de pessoas que não tinham nada a ver com aquilo. Inclusivamente os telefonemas que a minha mulher fez para o cabeleireiro e para a pizaria. Claro que quem estava com uma má vontade muito grande em relação ao processo extrapolou logo no sentido: ‘Estão a ver a pouca vergonha, este tipo (que sou eu) está a escutar esta gente toda. Na altura, até o presidente do Tribunal de Contas, que é meu amigo, veio ter comigo”. E disse-me: ‘Oiça lá, então agora anda-me a escutar?’ E eu deitei as mãos à cabeça e pensei: ‘Realmente isto é o fim do mundo’. Enfim, não era já um problema originado pelo MP, mas de imprevisibilidade. Era impensável que uma coisa dessas pudesse acontecer.

Mas isto terá sido a gota de água para que o primeiro-ministro, à época já José Sócrates, o tentasse afastar. Há, aliás, no processo Portucale, escutas (divulgadas pelo “SOL” em 2007) entre o ex-governante e o Presidente Jorge Sampaio que comprovam que Sócrates andava a pressionar o Presidente para colocar Rui Pereira no seu lugar.

Desculpe interromper, mas tenho de tirar o chapéu a Jorge Sampaio, porque ele viu-se numa situação muito mais difícil do que a minha. Porque tinha o partido todo em pânico com o que estava acontecer. Portanto, o Presidente poderia ter-me exonerado, porque o governo o aceitaria perfeitamente e não o fez.

A classe política defende-se ou não?

Acho que sim e acho natural. Pois se estão a ser atacados, no sentido em que estão a ser processados e mencionados por possíveis crimes…

Mas o cidadão normal não tem acesso a este tipo de defesa.

Isso é mercearia. Quem tem dinheiro vai ao gourmet do Corte Inglês, quem não tem vai ao senhor José da esquina

E é justa essa diferença?

Não é justo em caso nenhum: no Ensino, na Saúde, na Justiça. Não é justo, mas vivemos numa sociedade em que há desigualdade. Isto tem é que mudar. Por isso é que eu digo que as coisas estão diferentes.

Há um Souto Moura antes e depois da Casa Pia?

Eu sou o mesmo, não mudei convicções, nem maneiras de atuar. Mas não sou cego para não ver que houve setores no mundo social e político que me passou a olhar de uma maneira completamente diferente. E a interpretação que eu faço, e posso estar a ser faccioso, é que essas pessoas, que são pessoas de bem, mas não gostam de mim, não conhecem a verdade toda, porque se conhecessem se calhar veriam que não têm razão. Basta pensar na golpada, entre aspas, da divulgação das fotografias. Estava lá meio mundo: desde o cardeal patriarca ao presidente da Assembleia da República, a Mário Soares, etc. Eu procurei escrever a essas pessoas para explicar, não só que não tinha conhecimento do álbum, como o caso não justificava que eu demitisse a equipa, longe disso. Lembro-me de, logo a seguir, nas comemorações do 10 de junho, eu já ir preparado para que, se me cruzasse com pessoas que também estavam no álbum, poder dar uma explicação. E não era exigível que um PGR se tivesse que meter nisso. Isto era matéria do domínio absoluto da investigação.

Se não há dois Souto Moura, um antes e outro depois da Casa Pia, haverá um país diferente mais sensível ao problema dos abusos dos menores?

Não quero medalhas mas tenho a perceção da mudança, curiosamente percebi melhor durante os 11 anos que estive como juiz no Supremo. Porque a frequência com que apareceram os processos de abuso sexual de menores… é mato. Lá está, a questão da transparência, a questão de confiar na Justiça, etc. Estou convencido que as crianças deste país ficaram em melhor situação, porque sabem, ou alguém por elas, que uma denúncia nesse campo já não cai em saco roto.

Como viu a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que mandou o Estado indemnizar Paulo Pedroso, sustentando que o ex-deputado não tinha sido confrontado com provas suficientes para se defender?

Em primeiro lugar, Paulo Pedroso nunca foi pronunciado, não foi julgado, não foi condenado. Isso tem de ser respeitado. Em segundo lugar, os critérios do Conselho da Europa e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem não coincidem com a nossa lei. 

Lei que sofreu alterações com o caso Casa Pia…

Independentemente disso…Estive dez anos no Conselho da Europa, chefiava a delegação portuguesa, o comité de diretores dos assuntos penais, fiz parte de inúmeros comités da área processual penal e há uma perceção que tive. É que na altura em que houve inúmeros países do antigo bloco soviético a entrar para o Conselho da Europa, porque tinham passado a ser democracias, o Conselho da Europa foi magnânime e pode ainda continuar a ser. Tem uma jurisprudência por exemplo em relação aos jornalistas, protegendo-os de tudo e mais alguma coisa. O que é diferente da nossa lei.

O que quer dizer é que o que agora foi decidido em relação à prisão preventiva de Paulo Pedroso, de que não foi confrontado com factos suficientes, não está de acordo com o que a nossa lei à data previa… 

Não ponho a questão em termos tão simplistas. Em primeiro lugar, não fui responsável pela prisão de Paulo Pedroso, foram os magistrados que estavam no processo. Em segundo lugar, terão entendido que à luz da lei portuguesa havia indícios suficientes para que essa prisão efetiva fosse executada e assim foi. O que não quer dizer que aquilo que rodeou a prisão preventiva de Paulo Pedroso tivesse corrido a meus olhos da melhor maneira…

Porquê?

Porque a maneira como foi detido na Assembleia da República, mais uma vez, não precisava de ter transmissão em direto.

E a culpa foi de quem?

Não sei… Em segundo lugar, a libertação do próprio Paulo Pedroso, também não precisava de ser transmitida com o cortejo que houve para a Assembleia da República. Não se julgue que eu gosto disso.

Mas isso está fora do âmbito da Justiça…

Não está fora do âmbito da Justiça. Não há interesse nenhum nisso, acho popularucho. 

Mas está a referir-se ao papel da comunicação social e à violação do segredo de Justiça?

Eventualmente será, mas não sei concretamente quem, como, nem porquê. Não faço ideia…

Mas acha que não se deveria ter detido Pedroso na Assembleia ou apenas que não deveriam estar lá jornalistas?

Ambos, não teria sido difícil procurar a pessoa em casa e acabou.

Mas um cidadão comum se tiver de ser detido no trabalho é-o.

Pronto, mas de qualquer maneira acho que essa repercussão mediática que foi dada era evitável. Mas não estou a apontar o dedo a quem foi. O acontecimento em si não era necessário, mas isto é um pormenor que se passou há muitos anos.

Disse que não investigou, apenas criou as condições.

E não fui, procurei acompanhar. Um dia uma jornalista convidou-me para um telejornal e pôs a passar um filme com o Carlos Cruz a lamentar-se com aquilo que lhe estava a acontecer e eu tive uma reação imediata que foi dizer que com os dados que tinha não havia motivos para dizer isto ou aquilo do senhor. Na altura não havia processo.

Não?

Não, mas como ele foi preso pouco tempo depois, dois meses depois, as pessoas começaram a questionar: ‘então o PGR tinha dito que não havia nada contra Carlos Crus e agora ele é preso? Ou o PGR é um marciano e não sabe de nada ou então foi feita uma investigação rapidíssima’. A minha preocupação foi entregar o caso à equipa que tratava de casos de abuso no DIAP de Lisboa e foi para os procuradores João Guerra, Paula Soares e a Cristina Faleiro. Mas antes procurei a opinião da então diretora do DIAP, a dra Francisca Van Dunem, a atual ministra da Justiça. Consegui encontrá-la e perguntei-lhe o que achava e foi nessa sequência que se instalou o processo que veio a ficar conhecido como Casa Pia. Portanto, quando me criticaram por ter comentado a inocência de Carlos Cruz e ele depois ter sido preso, é preciso que se saiba que ainda não havia processo quando eu disse o que disse.

Mas há uma falta de jeito em si para lidar com a comunicação social…

Dizem. A política faz-se em democracia através de eleições e as eleições são ganhas na comunicação social. Os políticos precisam da comunicação social como eu preciso do ar para respirar. Um magistrado é nomeado, é promovido, atinge o topo da carreira é celebrado e é presidente de tudo e mais alguma coisa na magistratura sem nunca ter falado com a comunicação social. Ou seja, além de não precisar, não há uma cumplicidade que existe em outros setores, como no desporto, nas artes, na cultura. Ninguém vai a lado nenhum sem a comunicação social, é fundamental. É preciso perceber que na Justiça as coisas são diferentes e que não há uma cultura de proporcionar à comunicação social o que ela merece e que deve ser proporcionado. A informação que é passada para a comunicação social, no fundo é como a fotografia, é tirada. E uma coisa é tirar um retrato outra é pintar um retrato. É tirada porque a instituição judiciária não fornece os elementos que pode e deve.

Esse é um ponto fundamental, a comunicação do MP em Portugal é reativa, não é proativa como em outros países, em que o MP assim que uma investigação ou parte dela deixa de estar em segredo de Justiça a torna pública, o que tira até a sede da violação do segredo de Justiça…

Há razões para isso, para que haja essa clivagem, o que a comunicação social quer saber nem sempre pode ser divulgado…

Bom, em outros países, como no Brasil, as fugas em casos como a Lava Jato não se justificam porque se adotou uma política de transparência em relação a tudo o que deixa de estar em segredo de Justiça. O MP esclarece a investigação e o ponto em que esta está.

Sim, eu acho que em Portugal a Justiça toda devia investir na comunicação, não apenas o Ministério Público. A nível dos juízes é o mesmo. Devia investir-se mais no fornecimento de informações, até por uma questão de defesa própria, para evitar que o que sai seja deturpado, ou que não seja correto.

Ainda não falámos no Furacão, que também começa no seu mandato. Deu-se a possibilidade aos arguidos de, pagando o que era devido, não haver responsabilização penal, pareceu-lhe justo?

Não fui eu que inventei, havia uma portaria ou uma lei que o permitia…

A suspensão provisória do processo…

Isso, no meu tempo houve muita gente que pagou, chegámos até a alugar um prédio para guardar o material apreendido. Fomos a bancos, empresas, veio uma coisa enorme da Madeira também…

E onde era o prédio?

Era pegado ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal, o prédio da Federação Portuguesa de Futebol, se não estou em erro. Foi preciso arranjar instalações para meter lá tudo.

Foi acautelada a segurança desse novo edifício?

Sim, se bem me lembro foi assegurada a segurança. Não sei qual a empresa.

Mas para que fique claro, qual a sua posição quanto à suspensão provisória do processo?

Não acho nada mal, aliás eu intervim nisso. Acho que é uma forma de obter rendimentos, achei um expediente interessante.

No contexto da criminalidade económico financeira há cada vez mais contornos transnacionais. Aos seus olhos, como é que Portugal tem evoluído no que respeita à cooperação internacional?

Visitei o Eurojust, um organismo da União Europeia sediado em Haia e que tem a ver com a cooperação entre procuradores, e fiquei com a sensação que em Portugal funciona, o país não tem feito nada um mau papel, pelo contrário. E ao nível da cooperação, em casos concretos, posso dizer-lhe que no Supremo tive muitas extradições e Mandados de Detenção Europeus. E só tive problemas numa situação, que envolvia Vale e Azevedo. E tudo porque as autoridades inglesas não percebiam nada ou fingiam não perceber nada sobre como é que isto funcionava.

Mas houve outros problemas com extradições nos últimos tempos. Mais recentemente houve o caso de Raul Schmidt, um brasileiro suspeito no caso Lava Jato, e apesar de a decisão de extradição já ter transitado em julgado, não foi concluída porque à luz da nova lei da nacionalidade o suspeito conseguiu nacionalidade portuguesa de origem…

Acompanhei vagamente esse caso. Admito que tenha intervindo até num processo qualquer relacionado com isso, mas foi uma coisa que me passou assim ao lado.

Há pouco tempo, procuradores brasileiros da Lava Jato arrasaram, numa entrevista ao “SOL”, as autoridades nacionais, narrando as dificuldades que têm sentido, havendo inclusivamente a necessidade de enviar o processo em papel e não em formato digital por falta de meios para imprimir em Lisboa.

Meios técnicos é uma coisa, conteúdo de decisões é outra. Admito que ao nível dos meios técnicos haja problemas, em relação às decisões que são tomadas não me parece que Portugal ofereça qualquer resistência em cooperar quando deve cooperar nos termos das convenções e da lei.

O que acha sobre instrumentos como a delação premiada?

Preciso de saber qual a regulamentação que é proposta para isso, para saber se isso interfere de uma forma intolerável com direitos fundamentais. Preciso de saber como é que se faz para preservar direitos fundamentais das pessoas.

Conhece algum país onde seja usado de uma forma que acautele esses direitos?

Vou responder assim: no meu tempo isso não se usava…

É uma forma de fugir ao assunto…

Claro.

E o que pensa dos tribunais arbitrais?

A ideia que tenho é que são uma inovação que facilita a vida a quem tem problemas com a Justiça ou com a legalidade e que está à frente de empresas em que a questão do tempo, da morosidade da Justiça, é um problema gravíssimo, por isso não vejo problema nenhum. Agora é um setor que não me diz respeito, porque estive sempre no crime e como é evidente não há tribunais arbitrais penais. Sei que existem, não trazem grandes problemas, claro que é uma Justiça para pessoas que têm dinheiro e para quem a celeridade é ouro, mas não sei dizer mais nada.

Mas não se estará a estender a áreas delicadas?

Por exemplo, na área penal nem pensar… acho impensável.

Considera pacífico então…

Considero com a informação que tenho.

Como católico que é, como vê a forma como o Papa Francisco tem abordado a questão da pedofilia? Acredita que em Portugal a Igreja Católica está isenta ou também tem estes pecadilhos?

Claro que há de ter. Há uma coisa que as pessoas não têm bem a perceção, aqui ao lado em Espanha, considerada o máximo em termos de catolicismo, e já antes em França, a prática religiosa desceu a pique e Portugal está à frente. Admito perfeitamente que haja casos de pedofilia dentro da Igreja, admito que haja cá também.

Teve denúncias?

Nunca tive denúncias em relação a isso. Mas quanto ao que me estava a perguntar, esta problemática surge agora com este Papa por razões muito específicas. 

Quais?

Este Papa conseguiu uma coisa que eu acho espantosa que é a admiração e simpatia de não crentes e a sociedade em geral gosta deste Papa, acha-o um tipo simpatiquíssimo. Acho-o um líder não só em termos espirituais e religiosos, mas até em termos políticos, com preocupações com os desfavorecidos. É uma pessoa muito humilde, muito austera, ou seja precisa de pouco para viver, saiu até do Vaticano. E é uma pessoa tolerante naquilo em que pode ser tolerante, não se finca em posições tradicionais que têm de ser mantidas a todo o custo contra tudo e contra todos. E tem a ideia, que eu acho que é correta, de que o mundo muda e se a Igreja não mudar vai acabar por desaparecer, ou então fica num castelo no alto de um monte com as suas muralhas o que não tem nada a ver com uma missão religiosa católica que significa universal. Dentro da própria Igreja gosta-se de viver com mais conforto do que este Papa vive, pessoas menos humildes, que gostam que lhe façam vénias e que são mais intolerantes. Estas pessoas obviamente vão fazer uma campanha e mexer os cordelinhos para substituir o Papa. Recentemente houve um cardeal que veio dizer que o Papa se devia demitir, só por causa da questão da pedofilia dentro da Igreja. Não sei se este Papa fez tudo o que podia fazer, admito que tenha feito muita coisa que a gente não sabe nem tem de saber. Eu fiquei de boca aberta quando vi os EUA e Cuba quebrarem o gelo e mais tarde vim a saber que este Papa sem ninguém saber tinha estado por trás disso. Não sei o que tem feito para combater os problemas todos da Igreja.

Em Portugal, em casos como o padre Frederico, que conseguiu fugir, não se viu a Igreja levar isto a sério e ter um discurso sobre o caso…

Não tenho informação sobre isso.

Mas acha correto uma diocese manter um padre que foi condenado por homicídio e fugiu para o outro lado do mundo…

Não tenho informação sobre isso nem conheço o direito canónico.

Mas à primeira impressão…

Causa impressão, mas estou agora a saber isso. 

Ainda como católico, como vê as alterações ao nível legislativo do casamento entre homossexuais, coadoção por casais do mesmo sexo, e a proposta, que o Presidente da República vetou, da possibilidade de mudança de sexo a partir dos 16 anos?

Isso são as chamadas questões fraturantes, não é?! Quem vive num estado democrático tem de as respeitar. E se o parlamento, eleito pelo povo, envereda por aí, eu pessoalmente posso concordar ou não. E embora seja católico não me coloco numa posição confessional, no sentido de que a Igreja manda logo eu obedeço. Procuro nesses temas encontrar aquilo que é melhor para a natureza humana. Não sou homofóbico, nem sou homossexual.

Já voltou a pintar em pleno?

Não, nem nunca pintei. Pintei dois ou três quadro há muitos anos, acho uma maçada pintar. É porco. Precisava de um ateliê, de umas batas… E os óleos e os diluentes, tudo isso é uma maçada. Aquilo que de vez em quando fiz foi desenhar, a carvão, a lápis de cor, a pastel, etc… Também gosto muito de aguarela, admiro muito quem faz.

Disse um dia que não se podia dedicar à arte a part-time, agora pode fazê-lo a full-time… 

Provavelmente agora terei mais tempo para fazer algo nesse campo, mas eu acho que há uma ocasião para tudo e se calhar enveredei para isto, para o que tem sido a minha vida… 

Abandonou então o seu primeiro sonho…

Olhe o Francisco Salgado Zenha, que era muito próximo da minha família, e que eu tratava por tio, disse-me uma vez quando tinha 14 anos: ‘Não te preocupes porque são raras as pessoas que não têm vocação para mais do que uma coisa’. E eu tentei sempre conciliar isso. E, por isso, mantive sempre um exercício profissional que justificasse aquilo que ganhava e ao lado interesses culturais no âmbito das artes. Se vir aqui em casa há uma estante de direito e para aí seis de história de arte.

Já fez o seu autorretrato. Também tem feito caricaturas suas?

O autorretrato foi há muitos anos, quando estava em Ponte da Barca, nunca mais fiz. Quanto à caricatura devem ter-lhe dito isso porque de certeza alguém das secções onde tenho trabalhado tem uma caricatura minha, porque nos julgamentos ou conferências onde tenho estado rapo de um papel e faço. 

Mas se fizesse a sua caricatura agora que traços exagerava para mostrar o seu caráter e a sua personalidade?

Não exagerava nada. Se quiser faço-lhe aqui uma caricatura num instante… (risos)

É um apreciador de Caravaggio, aparentemente não tem muito a ver consigo. Tem um lado negro?

Tenho pintores que admiro, de que gosto muito e que não são sempre os mesmos. Quando tinha 13 ou 14 anos adorava Van Gogh, continuo a gostar, mas entretanto foram aparecendo outros. E houve uma fase em que descobri a pintura barroca, porque o barroco tinha conotações não muito abonatórias em geral, de complicação, de excesso, de adorno… Mas a pintura barroca é ótima. E depois foi Caravaggio, fiz até uma intervenção no Palácio Foz, em que não tinha altifalante.

Mas revê-se em alguma coisa em Caravaggio, um homem que matou e fugiu com uma vida de excessos?

Não tem nada a ver, a maior parte dos artistas cometem excessos. Mas a pintura dele poderia ter sido feita por outra pessoa, não me interessa nada a vida dele. Foi um assassino, fugiu para Nápoles, que era outro país na altura. E depois foi para Malta. Agora a pintura dele é excecional, espetacular. Abandonaram-se os cânones formais da pintura anterior. Passou, por exemplo, a fazer uma morte da virgem usando como modelo o cadáver de uma prostituta que apareceu no Tibre – isto foi um escândalo e o quadro foi recusado. O que é certo é que para apreciar a pintura em si eu não preciso de saber disto. Mas são mundos diferentes, porque as pessoas ou são mais espetadores ou mais atores, ou intervêm ou observam, todos temos um pouco disto, mas em doses diferentes e um artista é sobretudo alguém que olha para a realidade e transfere para uma obra de arte aquilo que essa realidade lhe suscitou do ponto de vista emocional, mas também com uma componente racional. 

Mas isso pode ter um caráter interventivo…

Claro, sobretudo se for uma encomenda (risos). Mas a profissão de um jurista e de um magistrado é intervir, é resolver casos, é estar em cima de uma certa realidade. Tem uma bagagem teórica que lhe permite não fazer tolices.

Do tempo em que foi PGR quais as recordações mais dolorosas que tem?

Doloroso foi uma chefe de secretaria que meteu o pé na argola. Foi uma operação policial bem sucedida, mas de filme, e coitada teve de cumprir pena. Mas foi horrível, era a chefe da minha secretaria. Quando tive conhecimento do que se estava a passar disse-lhe que não se podia distinguir as pessoas.

O que tinha feito?

Era um caso que metia 'massa', passava informações a troco de dinheiro, acho. Fiquei com muita pena, a imagem que temos de uma pessoa muda completamente.

Acabou o seu mandato com mais amigos ou inimigos?

Não acho que tenha criado inimigos. Se quer que lhe diga estou a borrifar-me para o que dizem.

Mas para as pressões não se estava a borrifar, pelo menos as que recebeu na altura.

Claro que não, porque tinha de ter consciência de que existiam, quando existiam, para tomar medidas e evitar que tivessem efeito.