Pelo Interior arrasado pelo fogo


Marcelo apelou a férias nos locais fustigados pelos incêndios de 2017. Percorrer essas paisagens arrepia e não transmite segurança


Nodeirinho, agosto de 2018. O lugar é pequeno e não se avista praticamente ninguém. Não restam muitas marcas visíveis do fogo – alguns danos em casas, um depósito de água queimado pela metade. As placas são finalmente novas e as antigas têm desenhos. Estaciona-se o carro junto ao tanque que salvou seis pessoas das chamas em junho do ano passado. Tem roupa estendida, retomou o seu uso. Em frente, do outro lado da estrada, há um memorial com os nomes das vítimas da aldeia, duas pedras de xisto com uma asa de um anjo. Sendo um local de evocação, a sensação é estranha. Há uma dúvida se se deve sair ou não do carro, se não estamos a intrometer-nos demasiado na dor da comunidade e das famílias, se é suposto ir ali.

Marcelo apelou para que este ano se fizessem férias no Interior e em particular nas zonas afetadas pelo fogo, uma manifestação de solidariedade simbólica que também pode ajudar a dinamizar a economia local. Tal como tinha prometido, e na semana em que o fogo se tornou a descontrolar em Monchique, o Presidente da República fez-se a essas estradas e praias fluviais país fora. Não sei o que terá visto nos lugares por onde andou, se terá sentido a mesma ambiguidade do gesto, uma forma de homenagem mas inevitavelmente também uma intrusão. 

O que não tem como passar despercebido é que esse ‘barril de pólvora’ que ardeu no ano passado, não tarda, estará na mesma, ou pelo menos assim parece.

À entrada de Nodeirinho, na saída da fatídica N-236-1, há troços onde os ‘rebentos’ de eucalipto na base das árvores queimadas do ano passado têm à vontade mais de três metros. Há estradas onde as árvores se encavalitam umas por cima das outras sem qualquer faixa de segurança nas bermas. Por todo o lado parece rebentar a natureza como calha, a mesma monocultura perigosa, que podendo não ser o único rastilho do fogo, é um dos fatores de risco. E há sítios onde, mesmo tendo ardido no ano passado, a sensação que dá é que já poderia arder de novo este ano, bastava algum descuido ou má intenção.

Nesta paisagem onde eucaliptos e fetos vão tornando depressa a dominar as cinzas, há sítios onde se tenta fazer diferente e que parecem ser a exceção. Em Ferraria de São João, os trabalhos de reflorestação – anunciados logo depois de a aldeia ter resistido ao fogo devido a uma barreira de proteção de um sobreiral centenário – prosseguiram. Cortaram-se os eucaliptos na encosta e plantaram-se novas árvores folhosas, numa iniciativa dos moradores para criar uma zona de proteção da aldeia. No último ano mudou efetivamente alguma coisa. Funcionará no futuro? Assim se espera – pelo menos foi uma forma de “mudar de vida”, expressão tão em voga, e não confiar apenas na sorte e no Estado central. 

Monchique trouxe novas dúvidas e novas formas de agir das autoridades, novas camadas de discussão ao problema dos fogos. Diga-se o que se disser à posteriori, sabia-se que a serra algarvia era um dos locais de risco mais do que identificados para este verão – que verdadeiramente só começou no fim de semana do fogo – e nem assim foi possível evitar que um incêndio assumisse grandes proporções e durasse uns duros oito dias em plena onda de calor. 

Não sei como é a sensação a Sul, onde agora se espera que os turistas também regressem – as termas de Monchique reabriram e o vale não foi afetado, apenas a envolvente. No Centro, percorrer essas grandes manchas de área ardida arrepia, mesmo que o tempo as vá esbatendo. Mas persiste também a sensação de vulnerabilidade em plena floresta – pensa-se duas vezes no alojamento que se quer marcar, na estrada por onde seguir. Resolver o problema do Interior terá de passar por combater os medos com as mudanças de fundo que tantos disseram ser necessárias e um novo ordenamento e não mais e mais eucaliptos, mais do mesmo.

Jornalista

Escreve à sexta-feira

 


Pelo Interior arrasado pelo fogo


Marcelo apelou a férias nos locais fustigados pelos incêndios de 2017. Percorrer essas paisagens arrepia e não transmite segurança


Nodeirinho, agosto de 2018. O lugar é pequeno e não se avista praticamente ninguém. Não restam muitas marcas visíveis do fogo – alguns danos em casas, um depósito de água queimado pela metade. As placas são finalmente novas e as antigas têm desenhos. Estaciona-se o carro junto ao tanque que salvou seis pessoas das chamas em junho do ano passado. Tem roupa estendida, retomou o seu uso. Em frente, do outro lado da estrada, há um memorial com os nomes das vítimas da aldeia, duas pedras de xisto com uma asa de um anjo. Sendo um local de evocação, a sensação é estranha. Há uma dúvida se se deve sair ou não do carro, se não estamos a intrometer-nos demasiado na dor da comunidade e das famílias, se é suposto ir ali.

Marcelo apelou para que este ano se fizessem férias no Interior e em particular nas zonas afetadas pelo fogo, uma manifestação de solidariedade simbólica que também pode ajudar a dinamizar a economia local. Tal como tinha prometido, e na semana em que o fogo se tornou a descontrolar em Monchique, o Presidente da República fez-se a essas estradas e praias fluviais país fora. Não sei o que terá visto nos lugares por onde andou, se terá sentido a mesma ambiguidade do gesto, uma forma de homenagem mas inevitavelmente também uma intrusão. 

O que não tem como passar despercebido é que esse ‘barril de pólvora’ que ardeu no ano passado, não tarda, estará na mesma, ou pelo menos assim parece.

À entrada de Nodeirinho, na saída da fatídica N-236-1, há troços onde os ‘rebentos’ de eucalipto na base das árvores queimadas do ano passado têm à vontade mais de três metros. Há estradas onde as árvores se encavalitam umas por cima das outras sem qualquer faixa de segurança nas bermas. Por todo o lado parece rebentar a natureza como calha, a mesma monocultura perigosa, que podendo não ser o único rastilho do fogo, é um dos fatores de risco. E há sítios onde, mesmo tendo ardido no ano passado, a sensação que dá é que já poderia arder de novo este ano, bastava algum descuido ou má intenção.

Nesta paisagem onde eucaliptos e fetos vão tornando depressa a dominar as cinzas, há sítios onde se tenta fazer diferente e que parecem ser a exceção. Em Ferraria de São João, os trabalhos de reflorestação – anunciados logo depois de a aldeia ter resistido ao fogo devido a uma barreira de proteção de um sobreiral centenário – prosseguiram. Cortaram-se os eucaliptos na encosta e plantaram-se novas árvores folhosas, numa iniciativa dos moradores para criar uma zona de proteção da aldeia. No último ano mudou efetivamente alguma coisa. Funcionará no futuro? Assim se espera – pelo menos foi uma forma de “mudar de vida”, expressão tão em voga, e não confiar apenas na sorte e no Estado central. 

Monchique trouxe novas dúvidas e novas formas de agir das autoridades, novas camadas de discussão ao problema dos fogos. Diga-se o que se disser à posteriori, sabia-se que a serra algarvia era um dos locais de risco mais do que identificados para este verão – que verdadeiramente só começou no fim de semana do fogo – e nem assim foi possível evitar que um incêndio assumisse grandes proporções e durasse uns duros oito dias em plena onda de calor. 

Não sei como é a sensação a Sul, onde agora se espera que os turistas também regressem – as termas de Monchique reabriram e o vale não foi afetado, apenas a envolvente. No Centro, percorrer essas grandes manchas de área ardida arrepia, mesmo que o tempo as vá esbatendo. Mas persiste também a sensação de vulnerabilidade em plena floresta – pensa-se duas vezes no alojamento que se quer marcar, na estrada por onde seguir. Resolver o problema do Interior terá de passar por combater os medos com as mudanças de fundo que tantos disseram ser necessárias e um novo ordenamento e não mais e mais eucaliptos, mais do mesmo.

Jornalista

Escreve à sexta-feira