Globalização, democracia e populismo


Sejam de esquerda ou de direita, os populismos conduzem a uma governação musculada e autocrática. Só com o reforço da democracia representativa se consegue evitar as consequências nefastas que lhes estão associadas


Múltiplos e variados factos recentes parecem apontar para o emergir de uma nova ordem (político-económica) internacional. A que vigorou até agora, alicerçada nas consequências desastrosas de duas grandes guerras à escala global, assentava na cooperação e integração entre nações como via para o desenvolvimento sustentável e a prosperidade e como forma de evitar a autossuficiência e os nacionalismos extremos, de que o nazismo foi paradigmático. É neste contexto que surge a moderna globalização, resultante da eliminação de barreiras à livre circulação de bens, serviços e fatores de produção (capital e trabalho) entre nações, facilitada pela inovação e pelos grandes avanços tecnológicos (transportes e comunicações) registados nos últimos 50 anos.

Não obstante a teoria demonstrar e a experiência confirmar as vantagens da globalização, resultantes do comércio livre, via economias de escala e vantagens competitivas, é igualmente sabido que os ganhos assim realizados não se distribuem equitativamente entre todos os participantes no processo. Com efeito, os custos e benefícios associados ao mesmo repartem-se de forma assaz assimétrica entre nações e classes sociais. Daí a necessidade de monitorização criteriosa de todo o processo, com vista à implementação de políticas suscetíveis de promover a harmonia entre todos os participantes e de assegurar o bem-estar coletivo. Caso contrário, em vez destes, teremos desavenças, conflitos e a desintegração do processo, com todos os custos inerentes. É este o momento que, tudo indica, estamos a viver. E é neste cenário que se agiganta a importância da democracia e das suas elites políticas. Com efeito, torna-se agora ainda mais premente garantir a vitalidade da democracia, se necessário revitalizando-a, zelando pelo seu correto funcionamento e pondo fim à abordagem laissez-faire (i.e. desregulada) da globalização pelos mercados. Assim se contrariará de forma eficaz o populismo. Contudo, é aqui que reside a dificuldade e o aparente paradoxo.

O populismo apela à vontade da maioria, mas rejeita os controlos e contrapesos (checks & balances) fornecidos pelas instituições da democracia representativa do Estado de direito. No fundo, o populismo resulta de um antagonismo entre as elites e/ou os culturalmente diferentes e o povo, traduzindo-se em larga medida num apelo a formas de democracia direta. Contrapõe-se, assim, à democracia representativa, já que a identificação que faz com a “vontade do povo” implica a marginalização e desconsideração das “vontades minoritárias”. É aqui que reside a essência do populismo e é por isso que é possível considerar existirem populismos de esquerda e de direita: os primeiros identificáveis com regimes defensores da democracia direta e os segundos resultantes de visões nacionalistas extremas. No fundo, ambos conduzem a uma governação musculada, de tipo autocrático, por líderes ditos “fortes”. A conclusão básica e essencial que daqui se extrai é a de que só com o reforço da democracia (representativa) se consegue evitar o populismo, com todas as nefastas consequências que lhe vêm associadas.

Ora, como todos sabemos e é patente no caso português, é o fraco/mau desempenho dos ditos representantes eleitos que gera descontentamento popular, desinteresse pela causa pública e pela participação política e a elevada abstenção eleitoral a que estamos assistindo. Que via de solução adotar? Estamos convictos de que ela passa necessariamente por melhorar de modo significativo a qualidade dos agentes políticos, por forma que também a governação possa melhorar de modo significativo, incluindo nela não só o governo propriamente dito como o funcionamento das suas instituições e órgãos de Estado – em particular, da Assembleia da República, enquanto órgão de representação dos cidadãos e seus anseios. No contexto presente do país, tal exige, como vem sendo referido por muitos, uma reforma do sistema eleitoral para a AR, tendo em vista, nomeadamente: (1) retirar a exclusividade aos partidos políticos na escolha dos candidatos a eventuais representantes eleitos, i.e. permitir que os cidadãos eleitores que assim o desejem possam igualmente propor-se como candidatos a deputados; (2) que a votação nas listas apresentadas pelos partidos possa passar a ser objeto de votação nominal; (3) que os eleitos passem a ser o conjunto dos nomes mais votados pelos eleitores, sejam eles candidatos a título individual ou inseridos em listas partidárias; eventualmente (4) que os votos considerados nulos ou em branco passem a corresponder a lugares de “não eleitos”, assim traduzindo (percentualmente) o descontentamento dos eleitores com os programas eleitorais apresentados pelos partidos e pelos candidatos, os quais não possibilitaram a adesão e não mereceram a necessária confiança duma parte do eleitorado.

Os princípios enumerados são, obviamente, suscetíveis de serem inseridos e traduzidos numa lei eleitoral para a Assembleia da República que garanta a justeza da representatividade e proporcionalidade dos escolhidos face aos resultados expressos. Sendo possíveis várias formulações para a lei, deixamos esse trabalho para consideração dos especialistas e dos partidos atuais. Na ausência de outras, existe para já a proposta “Reforma eleitoral em Portugal”, apresentada conjuntamente pela SEDES e pela Associação Por Uma Democracia de Qualidade (APDQ), que pode ser consultada em http://sedes.pt/multimedia/File/ 180404_APDQSEDES_ReformaEleitoral.pdf.

Resta formular o voto de que o poder partidário em Portugal se dinamize por forma a que o atual sistema eleitoral possa ser revisto antes de se completar meio século sobre o pós-25 de Abril e, obviamente, antes de o populismo poder ganhar foros de representatividade em Portugal.

 

Professor e cofundador da FE/UNL

Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”