Fátima transformou-se numa espécie de Meca dos apaixonados. Até domingo, mais de quatro mil casais católicos estão reunidos no santuário português, vindos dos quatro cantos do mundo para participar no encontro mundial das Equipas de Nossa Senhora, um dos movimentos de leigos mais conservadores da Igreja Católica. O “congresso” acontece de seis em seis anos, cada casal paga mil euros pela inscrição (fora as viagens) e do programa – boa parte das atividades acontecem na basílica nova do santuário, fechada ao público e alugada por valores que permanecem em segredo – fazem parte palestras com bispos e cardeais influentes que aceitaram vir a Portugal de propósito.
O Papa Francisco enviou uma mensagem aos equipistas, lida na segunda-feira, no arranque do encontro, e entre os oradores contam-se nomes como o do cardeal Peter Turkson, responsável pelo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral (um novo “ministério” do Vaticano criado pelo Papa).
Nas Equipas de Nossa Senhora, fundadas há 70 anos em Paris, só é permitida a entrada a casais. São antidivórcio e pela família tradicional, rezam a dois todos os dias, obedecem a uma “regra de vida”, todos os anos entregam ao movimento o equivalente ao salário de um dia de trabalho e encontram-se mensalmente com outros quatro casais e um padre, chamado conselheiro espiritual. As reuniões mensais, conhecidas por “o dever de sentar”, servem para conversar, em grupo, sobre as dificuldades da intimidade e da vida a dois. E, em tempos em que o amor vive em guerra, a receita aparenta ter sucesso. Não é que não haja divórcios no movimento, mas o padre Nuno Rocha, escolhido recentemente para conselheiro espiritual da Supra Região de Portugal (espécie de representante dos quase 700 padres que acompanham os casais portugueses do movimento, entre eles Tolentino Mendonça), garante que as ruturas são casos raros. “Até porque o que se tenta, nas equipas, é fomentar a união e a fidelidade dos casais, para que não se caia nessa facilidade”, explica.
O movimento, que promove a recitação do terço, faz adorações ao Santíssimo Sacramento e segue uma linha ligada à Teologia do Corpo com que João Paulo ii simpatizava, foi criado em Paris há 70 anos. Um jovem padre francês, Henri Cafarell, pároco na paróquia de Notre-Dame (é daí que vem o nome “Equipas de Nossa Senhora”), cansou-se de ouvir, nas confissões, os desabafos irritados dos maridos e das respetivas mulheres sobre as discussões conjugais que mantinham em casa. E teve a ideia de os pôr a conversar frente a frente, servindo de mediador dos conflitos, e de os apresentar a outros casais com os mesmos problemas. Começou com quatro pares, em 1939, e hoje o movimento tem cerca de 150 mil seguidores em todo o mundo. A Portugal, as equipas só chegaram em 1955, congregando essencialmente famílias abastadas que sabiam falar e ler francês. Apesar da crise no casamento, o movimento tem vindo a crescer – nos últimos cinco anos aumentou cerca de 5% em território nacional – e há mais de 4400 casais portugueses que pertencem ao movimento, que assenta na ideia de viver de “forma santa” e em diálogo.
famílias imperfeitas “O diálogo é um pilar fundamental da vida em casal, o saber escutar o outro, ouvi-lo verdadeiramente e descobri-lo”, explica Margarida Mendes, médica da zona de Coimbra que integra o movimento há mais de 20 anos. Desde essa altura, e todos os meses, pega no marido, João Paulo, e encontram-se com o resto da equipa – cinco outros casais. As reuniões acontecem nas casas de cada família, à vez, e começam com uma refeição. Só a seguir se faz a “partilha de experiências, de problemas e de formas de os ultrapassar”.
O conceito de equipa foi pensado para evitar que os casais se isolem. É que um dos grandes problemas dos casamentos de hoje, defendem os espanhóis Amaya e José Marcén, é o isolamento e a solidão a dois. “Porque o tempo não chega, não só não se conversa em casal como também não se socializa com outras pessoas. E é na relação com os outros e através dos problemas dos outros que, muitas vezes, encontramos as nossas próprias soluções e estratégias”, acreditam.
Outras vezes, “o dever de sentar” serve só para “confortar” os casais e os ajudar a perceber que algumas angústias são, afinal, “normais”. “A seguir ao casamento, é tudo difícil. Há uma mudança de vida e um processo de adaptação exigente que requer paciência e perdão. E há também as dificuldades financeiras de quem está a começar uma carreira e uma vida a dois”, descrevem Hermelinda e Arturo Zamperlini, do Brasil. Mais tarde chegam os filhos, outra prova de fogo. “Coloca-se outra vez o problema do não ter tempo, da readaptação, da logística que as crianças implicam”, acrescentam.
Anos depois, quando os filhos já acabaram de crescer e a vida parece mais organizada, chegam novos testes à paciência. Maria e Jorge Leonardo, casal de açorianos emigrados na Califórnia que pertencem ao movimento há quase 30 anos, viram a vida virada do avesso há pouco tempo por causa da filha mais velha. As famílias mais tradicionais e conservadoras não estão imunes aos descarrilamentos e o genro do casal decidiu sair de casa para “se juntar” com uma colega de trabalho, deixando a mulher sozinha com duas crianças pequenas.
É por isso que Maria Leonardo defende que um dos principais problemas dos casais “dos tempos modernos” são as infidelidades e o facto de as mulheres “passarem muito tempo fora de casa”, a trabalhar: “Ele, por exemplo, passava horas a fio no trabalho, de dia e de noite, com a colega. E pronto… acabou assim.” O marido concorda e acrescenta: “Há muitos apelos exteriores ao casal, demasiada liberdade e muita sexualidade desregrada.”
Os espanhóis Amaya e José Marcén também tiveram um revés com um dos filhos, que engravidou a namorada pouco depois de a ter conhecido. Casaram, mas os pais confessam que, no início, ficaram desgostosos. “A experiência de partilha com a equipa acabou por nos ajudar bastante a ultrapassar o que aconteceu e a saber como lidar com o assunto. Hoje achamos que Deus tem muitas formas, por vezes misteriosas, de unir um casal”, dizem.
problemas e soluções O padre Nuno Rocha, que já leva nove anos a acompanhar os desabafos de maridos e mulheres, está convencido de que os principais obstáculos ao casamento são o individualismo e o egoísmo. “Evoluímos para uma sociedade individualista em que é exigido muito a todos, no emprego, na formação pessoal, em projetos de independência. As pessoas dividem–se e isolam-se”, vai contando. Habituados ao “seu canto”, os casais rejeitam “qualquer imposição do outro”. “E veem–se as diferenças do outro como uma grande parede. Para quê esforçar-me e lutar se posso ter o meu canto?”, acrescenta.
Na quarta-feira, o padre Tolentino Mendonça – prestes a ser promovido a arcebispo e que tem estado todas as manhãs, desde segunda-feira, na basílica do santuário a deixar mensagens para reflexão aos casais do encontro – recordou que “não existem famílias perfeitas ou famílias que não estejam feridas”. Também alertou para o perigo de não saber amar. “Amar o outro é abraçar o seu grito, é esperar pela sua ferida” , disse aos equipistas, alertando para o perigo de se viver depressa demais, “em piloto sonolento e automático”, sem tempo para a família. O padre Nuno Rocha concorda que é preciso parar e escutar e recomenda aos casais, católicos e não católicos, que exercitem o perdão. “Se não se perceber e aceitar que o outro é diferente e que pode levar tempo a escutar-me, a encontrar-me e que às vezes nem sempre me escuta da forma como eu gostaria, o mais fácil é desistir”, aconselha.
No Brasil como em Portugal, recordam Hermelinda e Arturo, há cada vez mais casais que preferem viver juntos a casar. E a “falta de conhecimento mútuo” antes da partilha de espaço pode ser fatal, acreditam. “O namoro é um tempo de descoberta em que é preciso que realmente se converse e se perceba se há os mesmos objetivos de vida, os mesmos projetos.” Margarida Mendes também é pelo conhecimento mútuo e, por isso, recomenda aos namorados que sejam genuínos, de maneira a que se possam deixar “conhecer de verdade”. No fim de tudo, e para evitar que o casamento se transforme numa cruz, o padre Nuno Rocha aconselha a “humildade na aceitação”: conhecer o outro e “aceitá-lo exatamente como ele é”.