Não penses duas vezes nas raparigas a cavalo…


MOSCOVO – Cantava o músico do Nobel na sua voz enrouquecida a whiskies “Goodbye’s too good a word, babe/ So I’ll just say fare thee well”. Há sempre, no momento das despedidas, uma pequenina dor por dentro, mansa, quase vegetal, aquela dor à portuguesa de que falava Alexandre O’Neill e que todos nós trazemos mansamente…


MOSCOVO – Cantava o músico do Nobel na sua voz enrouquecida a whiskies “Goodbye’s too good a word, babe/ So I’ll just say fare thee well”.

Há sempre, no momento das despedidas, uma pequenina dor por dentro, mansa, quase vegetal, aquela dor à portuguesa de que falava Alexandre O’Neill e que todos nós trazemos mansamente pela mão.

Já é muito tarde na noite. Caminho ao longo da ulitsa Prokovka e observo as rapariguinhas que percorrem as esplanadas a cavalo com aquele orgulho equino de guarda republicano. Fachadas iluminadas a néon, flertes de ocasião, promessas por cumprir e ressacas que talvez nem esperem por amanhã. “You’re the reason I’m a-traveling on/ But don’t think twice, it’s all right”. Isso! O importante é não pensar duas vezes, nunca pensar duas vezes, seguir a vida para toda a parte, vivê-la até ao sangue, seja onde for, seja quando for.

Vinicius também: “Amigos meus está chegando a hora/ Em que a tristeza aproveita para entrar”. Bebo mais uma cerveja, adio o regresso ao quarto, adio o adeus a Moscovo e à Rússia. Há Rússias inteiras dentro de mim, do alto da escadaria potenkinizada de Odessa à estação de comboio de Naushki, onde um gigante obtuso me deu álcool puro a beber, dos bares ebulientes de Minsk à gelatina grossa do Intourist, em Tashkent, na hora do terramoto; dos gritos de Zica Polaroid no Registan de Samarcanda aos pequenos-almoços de carne de cavalo regados a champanhe de Almaty; das profundezas mafiosas de Tallin ao céu que estalava de sol sobre o kremlin de Kazan.

“La festa appena cominciata/ È già finita/ Il cielo non è più con noi”. Passou mais de um mês, entretanto? Não dei por isso, entretido a escrever, a analisar, a comentar, a criticar tudo o que vou vendo e ouvindo, na intenção de esclarecer e de ser útil para quem me lê, de ir, enfim, ao encontro do acontecimento onde ele aconteça, como é a obrigação do jornalista, procurar os homens no meio dos homens, saber a razão dos seus êxitos e dos seus fracassos. Por mim, continuarei sempre a escrever até ao infinito. Não sei fazer outra coisa, é a profissão que escolhi, é aquilo que sou, ritmos, imagens, ilusões, coisas de contar e de exprimir. E não, não precisei de pensar duas vezes.

“And it ain’t no use in turning on your light, babe/ I’m on the dark side of the road…” Não sei se estou do lado mais escuro, sei que vou pelo lado esquerdo. O lado do contra. Escrever é, até certo ponto, estar do contra. Contra o situacionismo, contra a preguiça.

Os cavalos vão e voltam com elegância, transportando as suas cavaleiras sorridentes; gargalhadas, conversas soltas como pássaros sem bandos; a malemolência, velha amante de tantas madrugadas.

“Adeus, meu amigo, sem aperto de mão nem palavras” – começou assim Iassenine o seu último poema, escrito com sangue por falta de tinta. “Não lamentes e não haja dor nem pena/ Nesta vida morrer não é nada de novo”. Adeus não é uma palavra autêntica. Por isso digo até breve. Vou e volto. Ao sabor das marés que me amarram em correntes a um cais de cada vez até que largue novamente a âncora da errância. Ninguém me espera. Deixo-me estar ao sabor da rua dos sonhadores e dos poetas, as fachadas dos anos 50, a casa de Tolstoi, o palácio de Apraksin, onde Pushkin teve aulas de dança e se apaixonou pela princesa Golytsina, a Rainha de Espadas. Deixo-me ficar embalado pelo movimento quase juvenil, embalado pela humidade que me cola a camisa ao corpo, embalado pelo sabor azedo de uma cerveja escura, embalado pelo abrir e fechar de um par de olhos demasiadamente azuis. Parece que criei raízes no granito onde fixo os pés.

Não há pressa, não há pressa nenhuma. Regressar é uma inevitabilidade, embora nunca saiba ao certo os motivos dos meus regressos. Faço como o Mário-Henrique Leiria e limito-me a perguntar: ”Encontraram alguém que fosse eu? Se encontraram, tragam-no para casa que já são horas.”

E eu vou.