Um crime sem castigo. Quem matou a lince Kayak?

Um crime sem castigo. Quem matou a lince Kayak?


Uma fêmea com dois anos foi libertada, em Mértola, pelo ICNF. Mas Kayak durou pouco mais de duas semanas na natureza e provou-se que foi envenenada. O i foi ao Tribunal de Beja consultar o inquérito à morte do lince, para saber por que razão não houve culpados   


Na madrugada de 13 de março de 2015, uma lince-fêmea com cerca de dois anos, que os biólogos do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) tinham batizado de “Kayakweru”, foi encontrada morta, 19 dias depois de ter sido posta em liberdade. O caso chegou a tribunal, mas foi arquivado duas vezes sem nunca ter ido a julgamento – apesar de ter havido denúncias anónimas, suspeitos e dois caçadores constituídos arguidos. Pelo meio, houve exames que ficaram por fazer e contradições por explicar. Há meia centena de linces em Portugal, espalhados pelas zonas do Caldeirão, Mértola, Moura, Barrancos e na Malcata. Só últimos dez anos, foram investidos mais de sete milhões de euros na reintrodução da espécie no território nacional. O lince-ibérico é o carnívoro mais ameaçado na Europa e o felino mais ameaçado do mundo. Esta é a história de Kayak, uma fêmea criada em Silves, em cativeiro, e libertada há mais de três anos nos arredores de Mértola por biólogos do ICNF. Foi envenenada com estricnina e o crime não teve castigo. 

Os primeiros dias em liberdade 

Nos meses que antecederam o envenenamento, tinham sido introduzidos seis linces-ibéricos no Vale do Guadiana: três machos e três fêmeas. O primeiro casal, Katmandú e Jacarandá, foram libertados a 1 de fevereiro de 2015; o segundo casal, Kempo e Kayakweru, a 24 de fevereiro. E o último casal, Liberdade e Loro, chegaram à natureza a 16 de abril.

Quando as portas do cativeiro se abriram para Kayak e Kempo, às 8h35 da manhã, os dois linces hesitaram em sair e só ganharam coragem para partir por volta das 16h. Ele fez-se aos montes a correr, rumo à liberdade, e não voltou. Ela, mais desconfiada, preferiu regressar ao cercado duas horas e meia mais tarde. E só decidiu ir-se embora de vez já depois de a noite cair, pelas 21h.

Até morrer, Kayak foi detetada em mais de 800 localizações diferentes através da coleira azul e preta com GPS que trazia ao pescoço. Mas só foi “apanhada” uma vez pelas câmaras fotográficas que o ICNF espalhara pelo mato. Aconteceu às 23h23 de 12 de março e, na imagem, Kayak surge sozinha no meio da noite do Alentejo, tranquilamente sentada sob as patas traseiras, de olhos muito abertos e brilhantes e orelhas atentas. Nem cinco horas depois, estaria morta. 

Nos primeiros dois dias em liberdade, na zona de Mértola, a lince fêmea começou por viajar para Oeste. Manteve-se sempre no centro da propriedade onde tinha sido colocada em liberdade – a Cerca das Romeiras – e, depois, acabou por regressar à zona Este. Este comportamento foi mais tarde explicado no tribunal por um dos biólogos do ICNF que estavam encarregues de a monitorizar. Carlos Carrapato contou que os linces – apesar de serem animais “com personalidade e, por isso, imprevisíveis” – explorar territórios novos intercalando avanços prospetivos com recuos para zonas de conforto. “Deslocam-se fazendo movimentos em estrela”, descreveu à juíza. 

A 3 de março, Kayak foi observada in loco pelos “padrinhos” do instituto. Estava bem e, segundo os relatórios dos biólogos, “apresentava uma condição física excelente”. Nos dias seguintes, saiu da área cercada das Romeiras e arriscou fazer caminho até à zona Oeste da Serra de Penilhos, passeando-se por manchas de mato e de estepe e percorrendo pinhais. Uma semana depois, viria a ser detetada a Este da serra, dentro da Zona de Caça Turística de Olva, uma área coberta por matagal e com “alta densidade” de coelho bravo (o alimentos favorito dos linces e de muitos caçadores). Aí, foi filmada pelo ICNF durante um minuto. “Foi possível observar uma condição física adequada e comportamentos de corrida, fuga e observação típicos”, escreveram, à época, os biólogos. No dia seguinte, a 11 de março, Kayak seria novamente avistada na clareira de um pinhal, pelas 19 horas, “em comportamento de caça e não revelando quaisquer indícios de situações anómalas”. 

O cadáver e uma denúncia Na manhã de 13 de março, dois biólogos do ICNF, Pedro Sarmento e Pedro Gomes, partiram em busca de Kayak, para a observarem novamente. Antes de se fazerem ao terreno, pelas 6h58, verificaram o sinal da coleira GPS, que lhes indicou a localização: um pinhal junto à povoação de Alvares, inserido numa propriedade chamada “Cerro das Camarinhas” e situada na reserva de caça de Olva, a apenas 160 metros do sítio onde tinha sido fotografada horas antes. 

Demoraram 17 minutos a chegar, mas encontraram Kayak deitada no chão, sobre o lado esquerdo, morta e “num estado de salivação evidente”. O “Protocolo de atuação de emergência para situações de morbilidade” do ICNF foi imediatamente ativado: informou-se o coordenador da reintrodução dos linces, Pedro Rocha; chamou-se a equipa do SEPNA da GNR de Almodôvar e telefonou-se à veterinária municipal de Mértola.

No “Relatório técnico de inspeção ocular” da GNR, anexado à investigação, ficou escrito que Kayak “não apresentava sinais de perfurações nem feridas” ou “sinais de magreza ou debilitação física”. O corpo ainda não estava com rigidez cadavérica, apesar de já estar frio, e a lince tinha“expressão de riso e espuma e pelo em redor da boca”. Sinais que indiciavam “morte por envenenamento”. Até porque, escreveram os militares da GNR, “nada fazia acreditar que um animal de dois anos, bastante monitorizado, com bastante saúde e robustez, aparecesse morto sem causa aparente”. Pouco depois de chegar ao local, a veterinária municipal, Maria Eugénia Alho, confirmava o óbito, informando que deveria ter ocorrido por volta das cinco da manhã.    

O cadáver de Kayak ficou sob custódia da GNR de Beja e foi levado para a Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa, para ser autopsiado. A investigação foi entretanto entregue à GNR de Almodôvar, liderada pelo cabo José Lopes, do SEPNA local. Em causa poderia estar um crime de dano contra a natureza, punível com pena de prisão até cinco anos.

Dez dias depois do misterioso envenenamento, o responsável pela Quercus do Alentejo recebia uma denúncia anónima e perturbadora. Um desconhecido foi ao encontro de José Paulo Martins e pôs-lhe uma carta nas mãos, enquanto lhe pedia sigilo e lhe perguntava se queria “informações sobre o caso da morte do lince”. Ouvido durante a investigação, o ambientalista contou que o homem parecia assustado: talvez tivesse alguma relação com as pessoas que acabara de denunciar. Ou talvez vivesse na mesma zona do que elas. Fosse como fosse, passou a informação ao diretor do ICNF do Alentejo, responsável pela reintrodução dos linces. Seria Pedro Rocha a comunicar a denúncia anónima ao Ministério Público de Beja, por email e indicando o nome dos suspeitos visados na carta manuscrita: M. P., morador na aldeia de Alcaria Ruiva, e Carlos M., ligado à associação de caça “Lapa dos Morcegos”. O anónimo garantia que os tinha ouvido conversar sobre um alegado plano para eliminar os linces libertados pelo ICNF.

A autópsia e o arquivamento Não muito tempo depois, a necropsia a Kayak foi feita na Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa. E os resultados foram taxativos: a médica responsável, Maria Peleiro, não teve dificuldade em descobrir que havia veneno no corpo da lince. Além de estricnina – substância altamente tóxica, usada para matar ratos e cuja venda é proibida em Portugal -, Kayak tinha no estômago restos de fígado de um animal “indeterminado”. Agora era oficial: a fêmea morrera por ingestão de alimentos envenenados.

Passaram-se meses sem que o caso tivesse tido qualquer desenvolvimento. De tal forma, que o ICNF escreveu ao Ministério Público a pedir o “ponto de situação” da investigação. “O lince-ibérico é o felino mais ameaçado do mundo, tendo sido classificado, recentemente, pela União Internacional para a Conservação da Natureza com o estatuto de “em perigo” em Portugal e Espanha, países onde é endémico”, começou por recordar o instituto, num ofício em que também se mostrava preocupado com a ausência de diligências e conclusões: “Os dois países vão iniciar, em dezembro próximo [de 2015], mais uma época de soltas, prevendo-se que em Mértola sejam libertados nove animais, pelo que seria de todo conveniente ter acesso ao ponto [de situação]”. 

Aparentemente, a investigação não deu em nada e o processo acabou arquivado a 2 de novembro de 2016, com o Ministério Público a admitir, no despacho de arquivamento, que a morte do lince foi crime e intencional. Só que provas sobre quem matou, não foram encontradas nenhumas. “Não obstante as diligências efetuadas para identificar os agentes que praticaram os factos, não foi possível apurar quaisquer indícios sobre a identidade dos seus autores. Acresce que não existem quaisquer testemunhas presenciais dos factos”, justificou a Procuradora-adjunta Mónica Candeias, de Beja.  

A galinha e a fuinha O arquivamento foi, no entanto, decidido sem que se tenha esperado por exames que, mais à frente, viriam a ser muito discutidos. É que, perto do cadáver de Kayak, foram descobertos os cadáveres de uma galinha e de uma fuinha, em avançado estado de decomposição. Um mês a seguir ao envenenamento, a GNR, o ICNF e uma equipa canina espanhola, especialista na deteção de venenos, regressaram ao local onde a lince tinha aparecido morta. E, segundo se lê no relatórios dos trabalhos dessa manhã, a “cadela Cyndy” encontrou os restos mortais da galinha e o “cão Kalanda” os da fuinha. Um e outro “deram sinal” aos treinadores de que os cadáveres estavam envenenados. A galinha e a fuinha foram recolhidas, mas tardaram a ser analisada, apesar da insistência do tribunal. 

 O Ministério Público começou por pedir ao ICNF, a 7 de abril de 2016, que autopsiasse os animais, exigindo que os resultados fossem enviados ao Tribunal de Beja num prazo máximo de 10 dias. Mas o pedido ficou sem resposta. Mais tarde, em outubro do mesmo ano, o Ministério Público voltou a insistir no envio, “tão urgente quanto possível”. Novamente sem obter resposta. Com o caso arquivado e com diligências por fazer, a morte de Kayak ameaçava ficar sem castigo.

O último esforço Um mês depois do arquivamento, a Liga da Proteção da Natureza (LPN) – que entretanto se tinha constituído assistente no processo – pediu ao tribunal para ter acesso à investigação. E pediu a reabertura da instrução. “Durante o inquérito, foram recolhidos indícios suficientes da prática de crime e dos seus agentes, pelo que se impunha a dedução de uma acusação”, defendeu a advogada da LPN, recordando que o cadáver de Kayak fora descoberto no interior da Zona de Caça de Olva, que fora concessionada pelo Estado à sociedade “Os Lavradores”, com sede em Portimão. 

Ora a LPN acreditava que, no âmbito desse acordo público, em vigor até 2020, a associação está “obrigada a gerir os recursos cinegéticos, compatibilizando-os com a conservação da natureza e a diversidade biológica”, tendo “o dever de vigilância e controlo” sobre o que acontece naquela área. 

No requerimento enviado ao tribunal, a ONG avançava, por outro lado, dados novos:  perto da lince morta teriam sido descobertos “seis a oito laços feitos em cabos de aço”, o que parecia indicar que na zona era feito “controlo ilegal de predadores”. A LPN também recordou que a galinha e a fuinha não tinham sido alvo de análises toxicológicas. E explicou ao tribunal que os coelhos são a presa preferida dos linces (que também se alimentam de perdizes, pegas, veados e gamos juvenis), o que os leva a não ser “populares” entre as comunidades de caçadores, que veem neles “uma concorrente forte às suas presas”. 

Na década de 1980 e das 1258 mortes de linces que foram registadas em Portugal, 49% tiveram o dedo humano: ficaram a dever-se ao uso de laços e de iscos, à caça furtiva e a acidentes rodoviários. E os caçadores não são os únicos inimigos: os agricultores também são contrários à reintrodução dos felinos. “Como outras espécies não cinegéticas, como as águias imperiais e a raposa, são hostilizados pelos agricultores, por serem considerados indesejáveis”, explicou a Liga no requerimento, apontando culpas à associação de caça “Os Lavradores”, por ter “violado os deveres de controlo e vigilância”. 

O pedido surtiu efeito e o Tribunal de Beja mandou reabrir a instrução do processo a 1 de fevereiro de 2017, quase dois anos depois da morte de Kayak. Os responsáveis pela zona de caça, José Maria Seromenho e Joaquim Beijinha, foram constituídos arguidos, indiciados de um crime de dano contra a natureza, e chamados a falar perante o tribunal – que também convocou testemunhas, entre elas Luís Alves e João Alves, os donos do pinhal onde a lince foi descoberta e que tinham “emprestado” o terreno à reserva de caça. Ao mesmo tempo, o tribunal voltou a ordenar ao ICNF que analisasse os restos mortais da galinha e da fuinha e a resposta finalmente chegou, no final de fevereiro de 2017: não havia, no instituto, “laboratório para a realização dos exames toxicológicos”. Ainda assim, o ICNF sugeria que os testes fossem encomendados uma entidade externa. 

O “empurrar” de culpas Só que, no debate instrutório do processo, a 14 de março de 2017, a juíza achou que, afinal, podia não ser relevante mandar autopsiar os animais. “Embora tenha resultado dos depoimentos prestados que [a morte da fuinha e da galinha] terá sido por envenenamento, importa atender a que foram encontrados mais de um mês após a morte do lince e, nessa medida, não é possível estabelecer uma ligação entre a morte deles e a morte do lince”, considerou a magistrada, perante a insistência da advogada da LPN na realização dos exames. Já o advogado de “Os Lavradores” discordou que as autópsias fossem feitas. “Não acho assim tão relevante”, justificou. No mesmo debate instrutório, uma das testemunhas, Carlos Carrapato, biólogo do ICNF, revelou que as análises tinham esbarrado numa espécie de amuo entre a GNR e o instituto. “A fuinha e a galinha estão numa arca, congeladas, em Mértola. Há dois anos, informei a minha tutela que o material tinha sido recolhido, mas disseram-me que estavam a ver isso com a GNR… quem faria a análise… porque a GNR quis tutelar todo o processo, até porque era um processo mediático. Eu julgo que pode ter havido aqui algum empurrar de responsabilidades entre o ICNF e a GNR para se fazer as análises. Até porque não fazia sentido o ICNF mandar analisar a fuinha e a galinha num laboratório e a GNR ter mandado analisar o gato [lince] noutro laboratório. Neste jogo do empurra, os animais ainda estão dentro da arca”, confessou o biólogo. 

Também no debate instrutório, os responsáveis da associação “Os Lavradores” recusaram responsabilidades na morte de Kayak e acusaram o ICNF de não os ter avisado que o lince andava pela zona. Quanto aos donos do pinhal, também garantiram que não sabiam das reintroduções dos animais. Sobre o dever de vigiarem a área, Joaquim Beijinha e José Maria Seromenho explicaram que têm vigilantes contratados que fazem rondas, só que os donos do pinhal tinham-se comprometido a vigiar os próprios terrenos. Por sua vez, Luís e João Alves (pai e filho) contaram à juíza que, na semana em que o lince morreu, não puderam fazer as rondas porque estavam os dois doentes e tinham ido para Beja. 

A história seria, no entanto, desmentida pelo biólogo Carlos Carrapatoso, que contou ao tribunal que, a seguir à morte de Kayak, se deslocou a Alvares e perguntou pelos donos do pinhal, tendo conseguido falar com eles. O funcionário do ICNF garantiu ainda que os vizinhos de Luís Alves e João Alves lhe terão confidenciado que pai e filho “não eram favoráveis” à presença de linces e que estavam em Alvares nos dias que antecederam a morte. Também segundo a versão de Carlos Carrapatoso, “toda a gente sabia”, nas aldeias da região, que havia “gatos” soltos. A juíza marcou a leitura de decisão instrutória para o dia 3 de abril de 2017.

Ninguém foi a julgamento Uma semana depois do debate instrutório, em que o Ministério Público e o advogado de “Os Lavradores” defenderam que os dois arguidos não deveriam ser acusados nem ir a julgamento, o presidente do ICNF escreveu ao tribunal para informar que tinha, finalmente, “condições para contratualizar a realização dos exames” da galinha e da fuinha à Faculdade de Medicina de Lisboa – onde Kayak também tinha sido autopsiada. Rogério Rodrigues considerava, na carta, que os testes toxicológicos poderiam “fornecer informação pertinente à resolução do processo” e anunciava que os resultados seriam “oportunamente juntos ao processo”. 

Antes de chegarem, foi lida a decisão instrutória. A 3 de abril de 2017, o Tribunal de Beja decidiu não levar ninguém a julgamento pelo envenenamento de Kayak, voltando a arquivar o caso. A juíza justificou a decisão com o facto de reserva de caça ter um vigilante, que só não passava a pente fino a zona em que a lince apareceu morta porque os donos do terreno se tinham comprometido a ser eles a vigiar o terreno. 

Estes, no entanto, continuou a juíza, “não estavam diariamente na propriedade, por estarem doentes e viverem em Beja, facto que os sócios de ‘Os Lavradores’ desconheciam”. Para a magistrada não ficou sequer provado que Kayak tenha ingerido o veneno dentro da zona de caça, “apenas se podendo afirmar que aí veio a morrer”. E rematou: “Não se vislumbra que se encontre minimamente indiciado que os arguidos tenham omitido qualquer lei, regulamento ou obrigação”. Caso encerrado. 

Dez dias depois, a 13 de abril de 2017, chegavam ao Tribunal de Beja os resultados das autópsias à fuinha e à galinha, via ICNF. O resultado? “Não foi possível a realização das necropsias, face ao avançado estado de degradação dos espécimes e, consequentemente, à ausência de material para análise”.