Elogio da preguiça a várias vozes


Henry de Montherlant defendeu que a preguiça deve ser considerada uma das manifestações mais seguras da inteligência. Rousseau acrescentava que é para chegar ao repouso que cada um de nós trabalha…


Chegado aos 73 anos sem nunca ter tido fama de preguiçoso – quer como aluno do liceu e da faculdade, quer como regente de estudos, quer como militante das associações de estudantes, quer como jornalista profissional, quer como aspirante a oficial miliciano (a cumprir o SMO), quer como político, quer como administrador da extinta Fundação do Teatro Nacional de São Carlos –, dei por mim a reflectir sobre a preguiça com a ajuda de vários filósofos.

Antes, porém, convém salientar que tudo o que diz o dicionário sobre a preguiça é redutor, embora se consigam lobrigar algumas virtudes que convido os meus leitores a descobrir. Vejam lá o que um dicionário é capaz de dizer sobre a preguiça: lentidão, languidez, moleza, ripanço, indolência, mandriice, inacção, negligência, desmazelo, levantar da cama tarde e a custo, falta de energia, pouca disposição para o trabalho, morosidade na execução de tarefas… e eu sei lá que mais, só para banir a preguiça da busca do sucesso a qualquer preço, ou da competitividade em que vale tudo menos tirar olhos.

La Rochefoucauld dizia que até parece ter sido o diabo que colocou expressamente a preguiça na fronteira de várias virtudes. E Henry de Montherlant anotou, nos seus “Carnets”, que a preguiça é a recusa de fazer, não só o que nos aborrece, mas também uma enorme porção de coisas de que a vida se tece e que, sem serem propriamente aborrecidas, são completamente inúteis. Por isso – acrescentou ele – a preguiça deve ser considerada como uma das manifestações mais seguras da inteligência. Et pour cause…

Mais conciso, Jules Renard debitou no seu “Journal” que a preguiça é o hábito de repousar antes da fadiga. E Jean-Jacques Rousseau, no seu “Ensaio sobre a Origem das Línguas”, acrescentava que é para chegar ao repouso que cada um trabalha, e é também a preguiça que nos torna laboriosos. Já Charles Baudelaire, mais pessimista, argumentou, no seu livro sobre a Bélgica, que há preguiçosos que descobrem na cor dos cortinados do seu quarto uma razão para nunca trabalhar. Cínico e algo sarcástico, no seu admirável romance “Barry Lyndon”, Thackeray asseverava que o preguiçoso sem ambição recusa-se totalmente a lutar e atribui a si próprio o título de filósofo. 

Enfim, por que razão deverá uma pessoa trabalhar podendo evitá-lo? Eis a questão central que nos coloca a preguiça, ou melhor, que os preguiçosos colocam a si próprios. Ou seja, a preguiça considerada como uma transgressão. E, nem por acaso, Goethe salientava, nas suas “Máximas e Reflexões”, que, se fosse preciso estudar todas as leis, não sobraria tempo para as transgredir. Já Montesquieu – que achava que a metafísica se conjuga perfeitamente com a preguiça, por ser possível estudá-la em toda a parte, na cama, a passear e por aí fora – pôs na boca do senhor Locke esta reflexão: “Um indivíduo precisa de perder metade do seu próprio tempo para poder ocupar a outra metade.” E dizia a Madame du Châtelet: “A senhora deixa de dormir para aprender a filosofar; pelo contrário, é preciso estudar filosofia para aprender a dormir.”

Sempre fui um adepto da preguiça, gosto muito de estar no ripanço, sem fazer nada que se veja. Mas nada tenho contra o trabalho, desde que ele seja voluntário e, se possível, agradável, interessante e bem pago (claro!). Aliás, tenho 73 anos e trabalho (a sério) desde os 17. Porque cheguei à conclusão de que quem não tem rendimentos de bens próprios nem recebe heranças vultuosas só pode atingir o seu ideal de preguiça e andar no ripanço se trabalhar. É por isso que não tenho outro remédio senão continuar a trabalhar!

Mas, atenção, aqui há uma importante distinção a fazer: há os que descansam para poderem trabalhar cada vez mais e melhor; e há os que trabalham para poderem descansar cada vez mais e melhor. Eu pertenço a esta segunda categoria. Trabalho sempre a pensar em longos períodos de preguiça durante os quais possa contemplar a paisagem, sobretudo o mar, mas também ouvir boa música, ler bons livros, ver grandes filmes e boas séries policiais, além de outras coisas que dão muito prazer sem grande esforço como, por exemplo, dormir. Aos 73 anos, eis o meu ideal de vida: a preguiça como contemplação e desprendimento. Mas não sou um cenobita. Irritam-me solenemente os que, como escreveu Helvétius, sacrificam muitas vezes os maiores prazeres da vida ao orgulho de os sacrificar.

Pois é, meus amigos, antes de criticarem a preguiça e os preguiçosos, lembrem-se que o sucesso, nos tempos que correm, desgasta o corpo e a mente, e já não é o triunfo da qualidade. É, regra geral, o triunfo da ganância e do lucro de bem poucos, graças à escravização de muitos, postos ao serviço da competitividade e da produtividade…

Escreve sem adopção das regras 
do acordo ortográfico de 1990


Elogio da preguiça a várias vozes


Henry de Montherlant defendeu que a preguiça deve ser considerada uma das manifestações mais seguras da inteligência. Rousseau acrescentava que é para chegar ao repouso que cada um de nós trabalha...


Chegado aos 73 anos sem nunca ter tido fama de preguiçoso – quer como aluno do liceu e da faculdade, quer como regente de estudos, quer como militante das associações de estudantes, quer como jornalista profissional, quer como aspirante a oficial miliciano (a cumprir o SMO), quer como político, quer como administrador da extinta Fundação do Teatro Nacional de São Carlos –, dei por mim a reflectir sobre a preguiça com a ajuda de vários filósofos.

Antes, porém, convém salientar que tudo o que diz o dicionário sobre a preguiça é redutor, embora se consigam lobrigar algumas virtudes que convido os meus leitores a descobrir. Vejam lá o que um dicionário é capaz de dizer sobre a preguiça: lentidão, languidez, moleza, ripanço, indolência, mandriice, inacção, negligência, desmazelo, levantar da cama tarde e a custo, falta de energia, pouca disposição para o trabalho, morosidade na execução de tarefas… e eu sei lá que mais, só para banir a preguiça da busca do sucesso a qualquer preço, ou da competitividade em que vale tudo menos tirar olhos.

La Rochefoucauld dizia que até parece ter sido o diabo que colocou expressamente a preguiça na fronteira de várias virtudes. E Henry de Montherlant anotou, nos seus “Carnets”, que a preguiça é a recusa de fazer, não só o que nos aborrece, mas também uma enorme porção de coisas de que a vida se tece e que, sem serem propriamente aborrecidas, são completamente inúteis. Por isso – acrescentou ele – a preguiça deve ser considerada como uma das manifestações mais seguras da inteligência. Et pour cause…

Mais conciso, Jules Renard debitou no seu “Journal” que a preguiça é o hábito de repousar antes da fadiga. E Jean-Jacques Rousseau, no seu “Ensaio sobre a Origem das Línguas”, acrescentava que é para chegar ao repouso que cada um trabalha, e é também a preguiça que nos torna laboriosos. Já Charles Baudelaire, mais pessimista, argumentou, no seu livro sobre a Bélgica, que há preguiçosos que descobrem na cor dos cortinados do seu quarto uma razão para nunca trabalhar. Cínico e algo sarcástico, no seu admirável romance “Barry Lyndon”, Thackeray asseverava que o preguiçoso sem ambição recusa-se totalmente a lutar e atribui a si próprio o título de filósofo. 

Enfim, por que razão deverá uma pessoa trabalhar podendo evitá-lo? Eis a questão central que nos coloca a preguiça, ou melhor, que os preguiçosos colocam a si próprios. Ou seja, a preguiça considerada como uma transgressão. E, nem por acaso, Goethe salientava, nas suas “Máximas e Reflexões”, que, se fosse preciso estudar todas as leis, não sobraria tempo para as transgredir. Já Montesquieu – que achava que a metafísica se conjuga perfeitamente com a preguiça, por ser possível estudá-la em toda a parte, na cama, a passear e por aí fora – pôs na boca do senhor Locke esta reflexão: “Um indivíduo precisa de perder metade do seu próprio tempo para poder ocupar a outra metade.” E dizia a Madame du Châtelet: “A senhora deixa de dormir para aprender a filosofar; pelo contrário, é preciso estudar filosofia para aprender a dormir.”

Sempre fui um adepto da preguiça, gosto muito de estar no ripanço, sem fazer nada que se veja. Mas nada tenho contra o trabalho, desde que ele seja voluntário e, se possível, agradável, interessante e bem pago (claro!). Aliás, tenho 73 anos e trabalho (a sério) desde os 17. Porque cheguei à conclusão de que quem não tem rendimentos de bens próprios nem recebe heranças vultuosas só pode atingir o seu ideal de preguiça e andar no ripanço se trabalhar. É por isso que não tenho outro remédio senão continuar a trabalhar!

Mas, atenção, aqui há uma importante distinção a fazer: há os que descansam para poderem trabalhar cada vez mais e melhor; e há os que trabalham para poderem descansar cada vez mais e melhor. Eu pertenço a esta segunda categoria. Trabalho sempre a pensar em longos períodos de preguiça durante os quais possa contemplar a paisagem, sobretudo o mar, mas também ouvir boa música, ler bons livros, ver grandes filmes e boas séries policiais, além de outras coisas que dão muito prazer sem grande esforço como, por exemplo, dormir. Aos 73 anos, eis o meu ideal de vida: a preguiça como contemplação e desprendimento. Mas não sou um cenobita. Irritam-me solenemente os que, como escreveu Helvétius, sacrificam muitas vezes os maiores prazeres da vida ao orgulho de os sacrificar.

Pois é, meus amigos, antes de criticarem a preguiça e os preguiçosos, lembrem-se que o sucesso, nos tempos que correm, desgasta o corpo e a mente, e já não é o triunfo da qualidade. É, regra geral, o triunfo da ganância e do lucro de bem poucos, graças à escravização de muitos, postos ao serviço da competitividade e da produtividade…

Escreve sem adopção das regras 
do acordo ortográfico de 1990