A jaula que não era uma jaula


A confusão de uma realidade que parece cada vez menos real com ilusões que parecem reais é perturbadora. Serve o quê?


Há um ano, estava o país em choque com as notícias de Pedrógão Grande e no começo da discussão sobre como fora possível, do problema do ordenamento florestal à negligência e incendiarismo que se repetem todos os anos, quando recebemos na redação um comunicado de uma marca de isqueiros: estavam a lançar uma nova coleção de verão. Ainda que o calendário de comunicação da empresa estivesse definido antes da tragédia, numa altura em que nada mais passaria pela cabeça de muitos de nós do que as vidas perdidas no fogo que ainda lavrava, pensei se não teria ocorrido a ninguém adiar por uns tempos uma campanha de isqueiros perante o horror que o fogo era capaz de causar.

Lembrei-me esta semana do desconforto que senti com aquele email, não pelos isqueiros em si, mas por me fazer pensar no alheamento em que podemos cair porque andamos ocupados com as nossas vidas, responsabilidades e obrigações – e porque a certa altura é para fazer e pronto, não se pensa no que está à volta. E como essa correria nos pode tornar perigosamente insensíveis enquanto sociedade se nos recusarmos a parar um pouco para ver o que nos rodeia, mesmo quando somos sistematicamente bombardeados com realidades inimagináveis como foi o fogo cá dentro, em 2017, como é a crise de quem procura sobreviver à guerra e à fome. Estima-se que este ano já tenham morrido 1508 pessoas em busca de uma nova terra, a grande maioria no Mediterrâneo.

Há uma semana era o Aquarius: mais de 600 pessoas enfiadas num barco sem comida suficiente, como que naqueles argumentos de ficção distópica em que por fim há um rasgo à última hora que devolve alguma esperança na humanidade. Esta semana foi a denúncia, com imagens, de crianças separadas dos pais na fronteira dos Estados Unidos com o México, um número impressionante de mais de 2 mil crianças e jovens enviados para centros temporários desde meados de abril enquanto os pais aguardam ser julgados, com registos áudio em que se ouvem miúdos a chorar e a gritar pela família.

Perante este sofrimento, a Benetton usa imagens dos refugiados que desembarcaram em Valência numa ação publicitária na imprensa italiana e nas redes socais. Sem palavras, que é para as conclusões ficarem com cada um. A controvérsia não tardou – numa imagem no Twitter, as mulheres do barco usam as cores garridas da marca. Será por isso? Se são imagens reais, pagaram àqueles modelos? Se são falsas, para quê mais artifícios?

E quando o mundo está finalmente a aperceber-se do alcance da política de tolerância zero, a solução dos EUA para o problema da imigração, há a história da criança dentro de uma jaula que, afinal, não era uma jaula a sério. O menino sul-americano a chorar encostado às grades tornou-se rosto das vítimas de Trump e, afinal, aquela não era uma cena real, mas o cenário de um protesto que visou as políticas da administração norte-americana – o que, podendo ser tudo contra a mesma coisa, não é a mesma coisa. Esta confusão de realidade que parece cada vez menos real com a ilusão que parece real é perturbadora. Serve o quê? A foto do rapaz foi tirada a 10 de junho e chegou às redes sociais com esse pressuposto. Saiu do controlo, o desmentido – se houve – não teve alcance.

Como é que são precisos dez dias e um site de desmistificação de “lendas urbanas”, como se apresenta o Snopes.com – hoje dedicado ao negócio da “verificação de factos” – para que a imagem seja colocada em contexto e esse contexto seja notícia à escala mundial? A quem aproveitam estas correntes virais de fotografias cropadas? É porque não chegou esse protesto de há dez dias para gerar esta onda de indignação que só os relatos dos primeiros jornalistas a visitar os centros de acolhimento e o som do choro dos miúdos conseguiu acordar? É culpa do nosso alheamento? Ou é porque o protesto cresceu que se tenta confundir a realidade com outra coisa, acrescentar à trama dos acontecimentos a ideia de que há a verdade e há a verdade distorcida, como as lágrimas do miúdo da fotografia – que eram lágrimas, mas não por estar separado dos pais em risco de deportação, apenas por não conseguir sair do cenário montado para o protesto. E depois, vamos atrás da história porque ela prova o quê? Que tudo pode não passar de uma ilusão como seria mais confortável se fosse para regressarmos às nossas vidas?

Entretanto, Trump anunciou que as famílias vão deixar de ser separadas. Ficarão detidas juntas. Nas redes sociais, alguém metia o dedo na ferida cada vez mais visível dos tempos modernos: “Só para dizer que trancar famílias juntas também é mau. Não deixem que uma possível vitória sobre a separação seja o sinal de que já podem ir todos para o brunch.”

Jornalista

Escreve à sexta-feira