Ann Smiley smiles?


Nunca se conhece bem e verdadeiramente quem está ao nosso lado, por mais anos que passem, por mais que se viva em comum, por mais que se preste atenção; se cada um de nós é um mistério para si mesmo, imaginemos então o mistério que é para o outro


Há tanta coisa para ler, ver e fazer, o tempo é curto, o silêncio é luxuoso, o sossego é escasso e, todavia, regressa-se a livros já lidos, filmes já vistos, lugares já vividos. Nem sei bem porquê, embora saiba que não é para recuperar felicidades passadas, não só porque isso não existe, mas também porque alguns regressos são a obras e a lugares de tempos não tão felizes assim. Talvez seja aquela coisa do retorno, talvez seja o bicho da meia-idade a roer, sei lá. Tenho, por exemplo, regressado às páginas da chamada “trilogia Karla” de Le Carré. Lugar-comum tão inevitável quanto verdadeiro: em cada regresso, vemos e sentimos coisas diferentes, tudo muda, sobretudo nós. Desta vez, a minha atenção prendeu-se a Ann e George Smiley, ao seu casamento em aparente ruína, aos adultérios de Ann, aos sentimentos dele – tão indefinidos e complexos, algo entre nostalgia, amargura, indiferença, aceitação, repulsa, desejo. Algo tão indefinido quanto todos os sentimentos, e bem mais complexo – e desta vez mais importante na leitura, coisas de cada momento na vida – do que o “Circus”, as toupeiras, as operações, os colegiais ilustres e toda aquela gente, e o caleidoscópio de encenação, traição, lealdade, inteligência, duplicidade, precipitação, ressentimento, êxito e fracasso de que são feitas as tramas de Le Carré, que só aparentemente são sobre espiões.

E Ann, que sentirá ela (tão ausente, mesmo no terceiro livro), porque age ela como o autor nos diz que age? Será que sabemos alguma coisa dela, realmente, saberemos porque é que alguém age como age, faz o que faz? Será que ela sabe? Será que o faz por gosto? Será que sorri sequer, terá prazer, viverá momentos felizes? Sabemos ainda menos dela do que dos sentimentos de George, ainda que este tente esconder-se por detrás dos seus óculos de massa old fashioned e do seu falso desprendimento. Mas, pelo menos, duas coisas sabemos, quer sobre Ann e George, quer sobre todos os pares. Uma, nunca se conhece bem e verdadeiramente quem está ao nosso lado, por mais anos que passem, por mais que se viva em comum, por mais que se preste atenção. Se cada um de nós é um mistério para si mesmo, imaginemos então o mistério que é para o outro, sobretudo em relações de amor ou outras formas de afeto, pois o amor e o afeto, como se sabe desde que o mundo é mundo, afinam a necessidade e a dependência, mas desafinam a atenção e a perceção.

E a outra coisa que sabemos é que, afinal, nunca sabemos bem, nunca temos a certeza – mesmo quando pensamos ter a certeza sobre nós – se a outra pessoa quer a nossa entrega, e como a quer. Podemos sentir, e querer, que temos de nos oferecer, mas nunca sabemos bem se o outro quer que nos ofereçamos e, sobretudo, como. E desse mistério brotam encontros e desencontros, farsas, tragédias, felicidades e seus arremedos, e aí assentam também a vida e a arte, que aí e assim respiram, mesmo (ou et pour cause) que concluamos que Ann, afinal, não sorri, antes pelo contrário, ou que sorri menos – quem diria? – do que George.

 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira