Partos no privado quase duplicaram  em 15 anos

Partos no privado quase duplicaram em 15 anos


No mesmo período, nascimentos nos hospitais do SNS diminuíram 30%. Peritos do Observatório Português dos Sistemas de Saúde estão preocupados com a ausência de dados sobre grávidas e bebés nascidos no particular e pedem registo comum


É um problema de “nacional descuido”, descreve Henrique Barros, um dos autores do Relatório da Primavera, a análise anual do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) sobre os desafios do setor, que será apresentado esta terça-feira. Este ano, um dos temas abordados é a saúde materno-infantil, área em que a redução da mortalidade no país é sempre elogiada. Reconhecido esse feito, os peritos estão preocupados com uma nova realidade: cada vez há mais nascimentos no privado e atualmente os sistemas de informação não permitem analisar indicadores sobre a saúde e bem-estar tanto das mães como dos bebés que nascem no particular.

O cenário é traçado no capítulo 2 do relatório, que parte de indicadores concretos. Entre 2000 e 2015 o número de nascimentos nos hospitais públicos reduziu cerca de 30%. Se é verdade que a quebra da natalidade se acentuou neste período, com o país a passar de 120 008 para 85 500 nascimentos, o inverno demográfico não é a única explicação para estarem a nascer menos crianças no SNS. No mesmo período, o número de partos em instituições privadas quase duplicou, passando de 6787 no ano 2000 para 12 186 em 2015 (uma subida de 80%).

Henrique Barros, médico e porta-voz do OPSS, sublinha que não se trata de julgar a opção de ir para o privado ou para o público, mas de ter acesso a informação a nível nacional que permita avaliar complicações e até identificar novos desafios. “Até há uns anos seria uma questão que não se valorizava tanto, agora representam 15% dos partos, um em cada sete partos acontecem no privado. Não sabermos o que se passa com estas senhoras e com estes bebés é como não sabermos o que se passa com 15% dos portugueses”.

 

Mais dados

A preocupação dos peritos não se cinge a perceber o que se passa no privado, mas compreender melhor o que se passa nesta fase da vida das mulheres e crianças. Para isso, propõem que além de ser criado um sistema de recolha de informação comum a todas as maternidades, independentemente da sua natureza legal (público, privado ou social), passe a ser feito um inquérito perinatal nacional a cada cinco anos. Uma das conclusões retiradas dos dados obtidos no SNS, e que dizem não ser possível explicar de momento, é que neste mesmo período diminuíram os casos de infeção grave mas aumentaram as situações de hemorragia pós-parto e choque obstétrico.

Os peritos defendem ainda que sejam feitos, em tempo útil, inquéritos independentes e confidenciais a todas as mortes (maternas e infantis) e aos casos de morbilidade grave, apontando para um cenário de sub-identificação de mortes maternas no país. “Em Portugal, a saúde e os cuidados de saúde em torno do nascimento constituem um dos casos de mais inequívoco sucesso. Também por isso é mais importante uma atenção redobrada às ameaças, assegurar que temos capacidade de proativamente prever e prevenir os problemas”, conclui o relatório.

Duas áreas merecem destaque dentro deste campo. Por um lado, a constatação de que o setor privado continua a ter o dobro da taxa de cesarianas face ao setor público, realidade para a qual os peritos não encontram explicação. Em 2015, últimos dados comparáveis, a taxa de cesarianas no setor público era de 27,6% e no privado de 63,4%. A segunda prática obstétrica a merecer a preocupação dos peritos é o recurso à episiotomia, o corte que pode ser feito no momento do parto para facilitar o nascimento. Um estudo de 2010 citado no relatório revelou que, em Portugal, a prática se verifica em 73% dos partos, quando há países como a Dinamarca onde é residual (3,7%).

Henrique Barros sublinha que importa perceber esta dinâmica e sobretudo se as pessoas têm informação sobre estes procedimentos. “Por vezes, ninguém pergunta a opinião às mulheres. As episiotomias diminuem o risco de incontinência mas podem trazer o risco de dispareunia, dor na atividade sexual, dor crónica. Tudo na vida tem vantagens e desvantagens e o essencial é que a pessoa saiba o que se passa”, alerta o médico e investigador da Unidade de Investigação Epidemiológica do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto. Henrique Barros acredita que ambas as realidades serão, em parte, fruto da tendência de medicalização do parto nas últimas décadas, que foi essencial para reduzir a mortalidade materno-infantil. “Ganhámos essa batalha e tanto as cesarianas como os partos hospitalares salvaram milhares e milhares de crianças e mulheres. Mas agora que fizemos isto, talvez possamos olhar para o resto. É como que uma corda que se puxou muito para um lado e agora temos de encontrar um equilíbrio.”

Três conclusões do Relatório da Primavera 2018

1 – Taxar para mudar atitudes
Prevenção – Portugal é dos países onde se vive com pior saúde mais anos, conclui o relatório. Alimentação errada, abuso de álcool e tabagismo são os principais fatores de risco. Os peritos defendem a taxação de todo o tabaco e álcool levando ao aumento do preço em 10% e a definição de um valor mínimo para a venda de álcool.  

2 – Mais doze anos de reforma 
Cuidados Primários – O relatório avisa que os Agrupamentos de Centros de Saúde são “telecomandados por instâncias burocráticas e distantes”. A reforma parou: 2017 foi o pior ano na evolução para o modelo de Unidade de Saúde Familiar, que dá médico/enfermeiro de família a todos os utentes. Ao ritmo previsto, só em 2030 haverá equidade no país.

3 – Hospitais à beira de um ataque de nervos
Gestão – O relatório alerta para as contradições do subfinanciamento e falta de autonomia dos hospitais, que deixa o setor à beira de um ataque de nervos. A falta de liquidez acaba por justificar boas ou más decisões e não há responsabilização. Como as despesas acabam sempre por ser pagas, não há incentivo à eficiência.