Solidão nos campos de futebol


De como Bruno de Carvalho me fez recordar o dia em que o Sporting foi campeão depois de 18 anos e não tinha com quem festejar do outro lado do Atlântico. O futebol é desporto coletivo


Ali estava eu, com tudo acontecendo e sem ter com quem partilhar o acontecido. Falto de cumplicidade e sorrisos entendidos, uma que outra lágrima, se fosse o caso. Por vezes, a felicidade irrompe sacros lacrimais adentro e uma pessoa chora quando antes mesmo ria. Os meus olhos estendiam braços em vão. A solidão no futebol é cruel mesmo na alegria.

Na minha existência só sentira conscientemente aquele júbilo numa ocasião – e daí para cá, apenas outra. Dizer-me desamparado é pouco, caminhava como que contido por um casulo, qualquer manifestação pública cerceada pela narrativa que mais ninguém entendia. Era um homem que palmilhava ruas de Buenos Aires atascado de ventura.

Tinham sido 18 longuíssimos anos de espera, como quem aguarda na praia que as correntes tragam a garrafa com a mensagem. E naquele momento em que a mensagem chegava, em bom estado e com grandes novas, engasgava-se-me na garganta e ali permanecia. Espirro ameaçando sem se concretizar. A tristeza pede solidão, a alegria é multidão.

Habituei-me cedo ao abraço anónimo do golo. Mesmo que fosse o pai a receber o primeiro, seguiam-se-lhe sempre outros à volta, a humildes desconhecidos da família clubística. O nosso confluir no cumprimento, a falta de estranheza no gesto íntimo do amplexo, a dispensabilidade de explicações derivavam da linguagem tácita da paixão clubística. O futebol não é caso de vida ou de morte, mas o amor a um clube acompanha-nos até à morte como a trivialidade de respirar.

O futebol é desporto coletivo – na relva, na bancada, em casa, no emprego, no café. E em nenhum outro momento da vida o entendi melhor que nesse dia na capital argentina, em que vira pela televisão o Salgueiros ser vergado, o Sporting sagrar-se campeão e aquele café de Coimbra poder, finalmente, atualizar o preço da bica. O futebol também é isto: ser um bom adepto e um mau negociante.

Ao fim de 216 intermináveis meses, ali estava eu a querer falar uma linguagem estranha para seres que não entendiam Sporting (fluentes em Boca, em River, em San Lorenzo), sem possibilidade de partilhar com ouvidos conhecedores – a internet ainda era arcaica e os telefonemas caros, mais ainda para um universitário com bolsa. Parecia o começo de Dickens: o melhor dos tempos, o pior dos tempos. Fosse eu menos tímido e teria interpelado pessoas na rua para lhes contar a grande notícia (confesso que entrei num café para pedir uma cerveja e confidenciar a quem ma entregava o que estava a festejar).

O futebol não se conjuga com experiências solitárias. Dos jogadores aos gabinetes. Nem sequer é coisa só do presente, comunga-se com todos do passado e passa-se como legado ao futuro. Estar orgulhosamente só nada tem a ver com a experiência do adepto e traz apenas ecos de outros passados que não se devem partilhar.

O futebol não é a vida. É um jogo. Coletivo. Menos de oito numa equipa e acaba nesse momento. E volta tudo ao balneário. Nem as grandes estrelas jogam sozinhas. Maradona ganhou um Mundial quase sem ajuda, mas todos sabemos da sua qualidade divina e Deus é omnipresente – logo, tem nele uma equipa.

Vicente del Bosque, que ganhou um Mundial e um Europeu como selecionador espanhol, afirmava que não acreditava em prémios individuais porque o futebol é coletivo, e Xavi Hernández, o médio do Barcelona e da seleção, reiterava que o seu futebol não fazia sentido sem os companheiros. Tirem a um jogador a equipa e, por mais talentoso que seja, fica reduzido ao papel de brinca-na-areia.

Se assim é no campo, mais ainda fora dele. Um treinador, um dirigente, qualquer um está ao serviço do coletivo. Quem acredita no contrário engana-se. Eu sou Sporting, mas o Sporting não sou eu. Quando confundimos, invertemos, alteramos esta ideia perdemos o rumo, somos como aqueles presidentes que mudam a Constituição para superar o limite de mandatos e ficar mais tempo no poder. Tão imprescindíveis se julgam que sem hesitações exclamam: “O poder sou eu!”

Num clube com 3,5 milhões de adeptos ou noutro com 50, importa o que se comunga, não a experiência particular. No momento em que estamos sozinhos nas alegrias e tristezas do clube que adoramos, pode ser mera questão geográfica e aí apenas nos resta buscar alguém que possa perceber ou ser iniciado na secreta arte de amar um emblema. Caso contrário, temos de chegar à conclusão de que o problema não são os outros, principalmente quando já são tantos a merecer comentários, farpas, insultos, ameaças de processos. O meu tio, uma vez, entrou numa autoestrada em sentido contrário e chamou nomes a vários automobilistas com quem se cruzou até perceber que era ele quem avançava em contramão e atirar o carro para a berma, para evitar um acidente. Bruno de Carvalho parece o meu tio.