A fama de país de “brandos costumes” faz com se abuse da sorte em demasiadas situações do funcionamento da nossa sociedade. É uma espécie de transe coletivo de confiança ou de resignação com o improviso, o acaso e os estereótipos. Ignoram-se os sinais, as tendências e as evidências para, depois de confrontados com a realidade, encetarmos laboriosas construções de narrativas desculpabilizantes e de justificações para o ocorrido.
Os acontecimentos de Alcochete são o epílogo expetável de meses de sucessivas sementeiras de ódio, de uma lógica de vale-tudo e de uma incomensurável passividade das entidades com responsabilidades de tutela de um dos maiores ativos da economia nacional, a indústria do futebol, num país com a escala de Portugal. Era uma evidência que numa época em que a truculência verbal, o crime informático e a sucessão de casos no limiar das linhas vermelhas das mais elementares regras do funcionamento do Estado de direito democrático foram uma constante, o resultado só poderia ser a inaceitável violência. O inusitado é que a violência, inicialmente esboçada na invasão de um centro de estágio de árbitros, ao que se sabe sem consequências, tenha sido materializada por adeptos de um clube contra os seus próprios técnicos e atletas, num espaço de trabalho do clube desportivo em causa. É um invulgar caso de bumerangue do ódio destilado, neste caso suscitado por uma sucessão de induções de comportamento modeladas por quase duas dezenas de ausência de vitórias numa competição.
A verdade é que, no futebol como noutras atividades humanas, os estados de alma, as emoções e as circunstâncias determinam muitos comportamentos individuais e comunitários e as correspondentes consequências. Se se semeiam expetativas, colhem-se reivindicações ou frustrações. Se se semeiam ventos, a probabilidade de colherem tempestades, mesmo com as alterações climáticas, é grande. Entre a sementeira e os resultados existem fatores que dominamos e outros que nos são alheios, mas a lucidez de aprender com os erros ou de simplesmente reconhecer a realidade nunca deve ser alienada. O que se passou em Alcochete é uma consequência de ensaios e de induções que foram sendo geradas ao longo de um determinado tempo. Pode ser um caso de polícia, mas é parte integrante de um processo e de um caminho que por vontade própria foi percorrido. Um caminho articulado com companheiros de viagem, integrado e sustentado, de dispersão de ódios que acabaram por ser destilados contra a própria casa. Houve interesse estratégico em induzir o caos e o vale-tudo, amiúde com conivência passiva ou ativa com pontos nas autoridades judiciais e na comunicação social, tendo o bumerangue regressado à casa de partida. Não ao Hotel Altis, mas a outras dependências da convergência na dispersão do ódio destilado e da divulgação dos produtos recetados.
Chegados a este despertar tardio, mais do que revisitar frustrações de anos sem vitórias ou euforias de conquistas sucessivas, importa perceber se há vontade de mudar ou se é para persistir numa espiral que, podendo alternar o mote ou caldo de emoções, terá sempre a propensão para acabar em disparate. Os resultados estão à vista e existem sinais de que, mesmo nos mais empedernidos, há neurónios suficientes para se sobreporem ao coração ou aos ódios induzidos.
É verdade ou não que as mais radicais manifestações de adeptos nos estádios através de fumos, flashes ou petardos têm modelações em função das competições? Contidos nas provas da UEFA em que as sanções são a sério, efusivos e irresponsáveis nas provas nacionais em que as penalizações são do domínio da gargalhada?
É verdade ou não que os mecanismos jurisdicionais desportivos conseguem agregar o que de pior existe na justiça em Portugal, sendo ainda mais de geometria variável em função dos protagonistas em causa, independentemente do que é dito e feito?
O drama geral é que existem demasiadas sementeiras de ventos a serem feitas em Portugal para que não acabem em algumas tempestades, muito além de efémeras precipitações. Mesmo com um clima geral de confiança, são muitos os sinais de preocupação no PIB, que abranda no 1.o trimestre, no crédito ao consumo, que atinge o valor mais alto desde 2012, na carga fiscal, que subiu para o valor mais alto dos últimos 22 anos, e na sucessão de casos nos mais diversos setores da atividade humana e do funcionamento do Estado. É uma sobrecarga de casos para um Estado de direito democrático, com evidentes sinais de fragilização do seu funcionamento. É uma sobredose de despudor, suspeita de ilegalidades e falta de sentido cívico e comunitário para a capacidade de processamento do cidadão que cumpre, paga impostos e contribui com o seu trabalho para o país.
Se não estamos preparados para os fenómenos meteorológicos extremos, como poderemos ser resilientes perante esta sucessão de escândalos, de chico-espertices e de esbaforidas expressões de sobrevivência, sem que se intervenha em tempo útil e no sentido adequado?
A grande questão está em saber, além do funcionamento da justiça e dos casos de polícia no estrito quadro do Estado de direito, se se nivela por cima ou se vamos continuar a permitir que nivelem por baixo o espetáculo do futebol, com os inevitáveis resultados negativos. Como sempre, está nas mãos de todos, mas sobretudo na cabeça, na voz e na iniciativa de alguns. Relativizar é meio caminho andado para mais Alcochetes. E não “foi chato”, foi mau demais.
NOTAS FINAIS
PONTAPÉ DE PENÁLTI Conteúdos musicais à parte, o Festival da Eurovisão confirmou a nossa capacidade organizativa de grandes eventos.
ROSCA Para quem já assistiu ao descartar de várias lideranças, antes idolatradas nas suas diferenças, as maiorias norte-coreanas acabam por ser expressões de entupimento dos vasos sanguíneos do funcionamento democrático do partido.
Escreve à quinta-feira