Por enquanto, não passa de uma intenção esboçada no papel. Mas a controvérsia é real e está instalada. Na edição de sábado passado, o semanário Expresso publicava uma carta assinada por um grupo de personalidades ligadas ao meio académico a contestar uma proposta inscrita no programa de Fernando Medina para o presente mandato na Câmara de Lisboa. A carta começava com uma pergunta: «Porque é que um museu dedicado à ‘Expansão’ portuguesa e aos processos que desencadeou não pode nem deve chamar-se ‘Museu das Descobertas’?». A longa resposta que se seguia apresentava um conjunto de argumentos de caráter científico, mas também ideológico.
«Para os não europeus, a ideia de que foram ‘descobertos’ é problemática», dizia o texto, que considerava também ‘Descobertas’ «uma expressão obsoleta, incorreta, e carregada de sentidos equívocos».
As reações não se fizeram esperar. No mesmo jornal, num artigo de opinião intitulado ‘O esplendor do politicamente idiota’, Miguel Sousa Tavares contrapunha: «O que se sustenta é que não foi o samorim que se deu ao trabalho de largar o seu luxuoso trono e apanhar uma low-cost para a Europa, mas o Gama que se arriscou a ir mar fora naquelas cascas de noz ao seu encontro».
João Paulo Oliveira e Costa, historiador da Expansão e catedrático de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Nova), apesar de ser um dos signatários da carta, também não considera que a palavra Descobrimentos deva ser banida. «Vou publicar ainda antes do verão um livro intitulado História dos Descobrimentos Portugueses», revela ao SOL. «Nunca tive problemas em usar as palavras. Quando fiz o meu mestrado em 1984, dez anos depois do 25 de Abril, usei sempre a palavra ‘ultramarino’ contra a vontade de toda a gente».
Quanto à colagem das ‘Descobertas’ ao Estado Novo, considera-a «um exagero» e até mesmo «ridícula». «Basta lembrar que, já quando D. João V enviou a embaixada a Roma, no início do século XVIII, as imagens que iam nos coches eram o Ganges e o Adamastor. Desde D. João V, pelo menos, que Portugal se apresenta ao mundo como país dos Descobrimentos».
O historiador também não crê que esta designação promova uma perspetiva estritamente eurocêntrica. «Da mesma maneira que nós descobrimos os japoneses, os japoneses descobriram-nos a nós naquele momento. Quando os portugueses chegaram ao Brasil, os índios descobriram que havia outras pessoas sem serem eles. A palavra descobrimento começa a ser usada numa ótica europeia, mas não é errada».
Ainda assim, considera que a designação de Museu dos Descobrimentos seria inadequada. «O processo dos Descobrimentos é historicamente curto, dura só até meados do século XVI. E portanto deixa de fora 90% do que foi a Expansão portuguesa. Não faria sentido ter o Brasil colonial, o Brasil do Ouro ou o Brasil do século XVIII num museu chamado dos Descobrimentos. E aspetos como a miscigenação na China, com os jesuítas a serem matemáticos do imperador chinês, também não seriam contemplados».
E por que assinou a carta se não se revê completamente no seu discurso? «O que se está a passar é uma disputa ideológica entre a esquerda e a direita em relação a uma questão de História, que não devia ser de esquerda nem de direita», afirma. «Entrei na discussão porque acho que ela tem de ser puxada para o sítio certo, que é a academia. E na academia discutir-se-á se o que deve ser feito caso o poder político tome essa iniciativa».
Nau quinhentista – Lisboa ficou a ver navios
A proposta que consta no programa de Medina falava de uma «estrutura polinucleada na cidade que inclua alguns espaços/museus já existentes e outros a criar de novo, e que promova a reflexão sobre aquele período histórico nas suas múltiplas abordagens, de natureza económica, científica, cultural, nos seus aspetos mais e menos positivos, incluindo um núcleo dedicado à temática da escravatura».
Mas, por enquanto, nada há de concreto. O mais próximo disso foi porventura um protocolo assinado há exatamente três anos, a 22 de maio de 2015, entre a Câmara de Lisboa, a Marinha Portuguesa, o Turismo de Lisboa e a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova.
O documento mencionava a construção de uma réplica de uma nau quinhentista, a colocar na Ribeira das Naus. O coordenador desse projeto era justamente João Paulo Oliveira e Costa. «O objetivo era mostrar como é que a nau funcionava desde que saía de Lisboa até que regressava», esclarece. «Não era um museu dos Descobrimentos, não era um museu da Expansão portuguesa, era um centro interpretativo em torno da réplica de uma nau da Índia».
A conclusão da obra estava prevista para o Verão de 2016, mas, quase dois anos passados sobre essa data, o projeto parece ter caído no esquecimento. Ou não. A recente polémica veio dar novo fôlego e relevo ao assunto. De resto, existe um consenso alargado quanto à necessidade de um museu dedicado à história das aventuras marítimas e à importância das viagens dos portugueses pelo mundo.
Porém, no entender de João Paulo Oliveira e Costa, «antes de falar no Museu dos Descobrimentos, devia falar-se noutra coisa, que é como o país deve recordar e invocar este aspeto crucial para sua História e para a História do mundo. E porquê em Lisboa, por que não em Lagos ou nas ilhas?», questiona. «Devia fazer-se uma discussão entre políticos, a sociedade civil e eventualmente até mecenas», propõe.
Ainda na sua opinião, um museu desta natureza, a concretizar-se, deveria mostrar «como Portugal foi agente e protagonista da história do mundo nos séculos XV e XVI e quais as consequências disso. Os descobrimentos refizeram o que era a relação entre os povos. Portugal pôs o mundo em movimento», conclui.
Escravocratas romanos
E os aspetos mais negros da Expansão? Devem ou não marcar presença no hipotético museu? Segundo o projeto de Medina, haverá um núcleo dedicado à escravatura. A carta publicada pelo Expresso também sublinha essa questão: «Os portugueses dos séculos XV a XVIII – bem como os dos séculos XIX e XX – nem sempre foram paladinos do diálogo intercultural. Muito frequentemente foram o contrário disto».
J. P. Oliveira e Costa concorda com a inclusão de referências à escravatura: «Claro que um museu destes tem de lembrar que este processo implicou conquista, implicou escravatura». Mas faz desde já uma ressalva: «Já fui ao Museu das Américas em Madrid e nunca lá vi nada disso. Já estive nos museus dos víquingues na Dinamarca e na Noruega e não vi nada disso. Ninguém se lembrou de falar sobre como é que os víquingues matavam as pessoas quando chegavam a Portugal ou a outros sítios. Já visitei vários museus sobre os romanos e nunca vi nenhum que mostre as chacinas dos romanos. A romanização foi fundamental para a Península Ibérica, não vamos dizer que os romanos foram escravocratas».
No entender do historiador, esta polémica resulta «de um mal-estar com a História de um certo grupo que é minoritário mas é muito ativista».
Questionado sobre se existe uma corrente empenhada em que deixemos de ter orgulho na nossa História, não parece ter dúvidas: «Existe e é estúpida. Temos de saber porque é que os países existem. Portugal tem a fronteira mais antiga do mundo e apesar da sua pequenez foi sempre capaz de encontrar formas de sobrevivência. Quem achar que isto não vale nada, então vá-se embora».