Por razões que desconheço, em Portugal não atingimos ainda um estado de maturidade que nos permita discutir as questões de forma séria e equilibrada. No futebol, nenhum adepto é capaz de admitir que houve penálti contra o seu clube ou que o adversário foi prejudicado. Na política não é diferente: muitos vestem a camisola do partido e são incapazes de a despir. Quem é do PS jamais admitirá que o PSD – “a direita”, dizem com desprezo – tem boas propostas, com medo de oferecer um trunfo ao rival. E vice-versa. Rui Rio estará a tentar contrariar esse estado de coisas, mas veremos com que sucesso.
Vem isto a propósito da divulgação das imagens dos interrogatórios de José Sócrates e de outros protagonistas da Operação Marquês. De uma forma geral, quem considera o primeiro-ministro culpado dos crimes que lhe imputam tem aprovado a difusão desses vídeos, usando como argumento que se está a prestar um serviço público aos cidadãos, que assim ficarão mais esclarecidos. Quem, inversamente, simpatiza com Sócrates (mesmo que o não queira admitir…) acha esta prática “hedionda”, “nojenta”, “imoral” – enfim, já ouvi adjetivos bastante fortes e não me lembro de todos.
Pois eu encontro-me do lado dos que acreditam convictamente que Sócrates é culpado. Mais: vibrei com os vídeos dos interrogatórios e acho-os de facto esclarecedores. Mas isso não me impede de ver que estas fugas debilitam a justiça. Fazem pensar que não é capaz de guardar um segredo ou, pior ainda, que não tem capacidade para garantir o funcionamento correto das suas instituições. O mesmo será admitir, no limite, que o processo poderá não decorrer com o rigor exigido.
Há quem diga que essa questão não é de agora, que já antes, com as fugas de informação para os jornais, se colocava o problema de a justiça ter paredes de vidro. Não é a mesma coisa. Quem vê as transcrições de um processo numa página de jornal está, em última análise, a ler uma notícia; quem vê as imagens do interrogatório está a ter acesso direto ao próprio documento. E, ao mesmo tempo, a espreitar para o âmago do sistema judicial. É essa invasão da privacidade que devia ser evitada. A bem dos arguidos, mas sobretudo para não ficar a sensação de que o edifício da justiça tem falhas de segurança e pode facilmente ser arrombado.