O guardião do farol


Extasia-me conhecer pessoas que ainda se encantam com algo que veem todos os dias. Aquele mar incrível é o seu quadro diário e, mesmo assim, ele encheu os pulmões de ar enquanto o mirava


Estou de volta a casa e o meu país foi muito simpático comigo porque me recebeu com sol. A chuva também caía, sim, mas timidamente e durante pouco tempo. É sempre fácil voltar quando já vens com saudades, histórias para contar e o teu céu contido nas gotas de água.

É preciso voltar à rotina, mas sem perder o melhor, sem esquecer o que se sentiu. Não importa apenas ganhar um rumo, é preciso continuar com vontade de o seguir. Para ter a certeza de que não me esqueço para onde quero ir, fecho os olhos e vejo o farol, o Farol de Dona Maria Pia, que conhecemos antes mesmo de acabar a nossa viagem por Cabo Verde e que é rico porque é a casa do Jorge.

Na nossa meia folga, decidimos explorar mais um pouco a capital, Praia. Vimos o Farol ao longe, tão convidativo apesar do aparente ar deteriorado, e espreitámos pela porta sem portão. Atrai-nos mais a verdade que a aparência. Apareceu o Jorge, com um sorriso grande, que vive no farol, tem um cão que se chama Farol e arrisco dizer que é das pessoas mais simpáticas do mundo. Convidou–nos a entrar, a conhecer a sua casa que, diz ele, é de quem a quiser ver, e subimos as escadas que nos levaram ao topo – ao topo do mar. Estávamos encantados. Jorge mostrou-nos a sua “piscina privada” e apontou para umas rochas que, juntas, faziam um pequeno lago, e não precisou de nos dizer o quanto era feliz ali. Sentia-se. Extasia-me conhecer pessoas que ainda se encantam com algo que veem todos os dias. Aquele mar incrível é o seu quadro diário e, mesmo assim, ele encheu os pulmões de ar enquanto o mirava. Olhava para o mar como se fosse a primeira vez.

O farol, que guia os barcos, guia-o também a ele e ele guia-nos a nós, enquanto nos diz para onde olhar.

O Jorge disse-nos que tinha muitos amigos. Aliás, o nosso Presidente da República visitou um dia o seu farol, ficou amigo do nosso amigo e prometeu-lhe enviar um livro. O Jorge contou-nos que agradeceu o gesto, mas que nunca pensou que se concretizasse – “talvez fosse só uma simpatia, umas coisas que se dizem”. Mas não. Um mês depois da visita de Marcelo recebeu uma carta registada – era um livro endereçado ao “amigo do Farol”. Ele não se tinha esquecido.

Ouvimos esta história no próprio quarto do Jorge porque é lá que ele tem as suas relíquias – o livro, o envelope que trazia o livro e que guarda religiosamente e todos os cartões e cartas que outros visitantes enviam: “Estes são italianos, estes ingleses, estes franceses… tenho amigos em todas as partes do mundo.”

Ainda se escrevem cartas, pensei, com a certeza de que se alguém merecia recebê-las era o Jorge. Com os olhos em água, escrevemos no “livro dos amigos” uma dedicatória ao Jorge, na esperança de que ele também conte a outros “que fez uns amigos de Portugal, que estavam muito felizes por pertencer àquele momento”. Viemos embora do farol com o coração a transbordar e com a certeza de que todos nós precisamos de um ponto de encontro, de um motivo sagrado, de um farol. Todos nós precisamos de encher o peito de ar e de sentir esperança, alívio, gratidão.

Não vivo no farol. Não posso subir ao topo e encontrar o meu centro. Não tenho a sorte que o Jorge tem. Mas talvez o possa trazer comigo. E o Jorge não se importa – porque a sua casa é de quem a quiser ver.

 

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