Água nas fervuras


Por muito que lhes custe, obtiveram-se resultados com um modelo diferente de austeridade, de rigor ou de contenção na gestão das contas públicas


A precipitação dos últimos tempos respondeu às necessidades imediatas de armazenamento de água nas barragens, mas não modelou as fervuras políticas de quem continua a achar que a política não é o compromisso entre os recursos disponíveis e as escolhas políticas das necessidades a suprir. Tudo é finito, até o nível de fervura dos parceiros da solução governativa que, apesar do prenúncio de divórcio e da renovação de votos para ir viver lá para casa, sabem que não podem entrar em ruturas de facto. Podem verbalizar, estrebuchar e até colocar terceiros a fazer a agitação que julgam oportuna, mas não podem partir a corda, sob pena de pagarem um preço sem precedentes.

Por muito que lhes custe, obtiveram-se resultados com um modelo diferente de austeridade, de rigor ou de contenção na gestão das contas públicas. Esse modelo, que consideram virtuoso no essencial, ao ponto de suscitar a aprovação de três Orçamentos do Estado, passava por alargar o cinto em Portugal, contar com o crescimento da economia e cumprir os compromissos internacionais que sempre contestaram com a troika e com as regras do Tratado Orçamental e da construção europeia.

O fantástico é que, à esquerda e à direita, o caminho que é apresentado como a alternativa não é reconhecido sem contestação em relação à sua sustentabilidade.

Não será por isso de estranhar que o PS, com os pés no chão, tenha mudado a retórica das possibilidades infinitas, sustentada em diversas iniciativas governativas de reposições e de reversões, para entrar na fase da “água na fervura”.

Foi assim com o sibilino anúncio da inexistência de aumentos salariais na função pública em 2019 – ficar-se-iam pelos descongelamentos das carreiras.

É agora assim com o enquadramento doutrinal do debate sobre o próximo Orçamento do Estado, realizado por Mário Centeno, na dupla face de exaltar o caminho em Espanha através de artigo no “El País”, para depois refrear as possibilidades de prosseguir a mesma rota de despesa em artigo publicado em Portugal.

Uma vez mais, seguiu-se o modelo de um país, dois discursos, um interno e outro externo, algo que tem sido utilizado à exaustão até ao ponto da insustentabilidade da quadratura do círculo, em que a incoerência, a falta de solidez e a conversa só não vão às malvas por via da sacrossanta falta de memória.

O drama destes joguinhos políticos em jeito de guerras de Alecrim e Manjerona é que, apesar do ar que se respira, dos apoios reiterados ao sistema bancário e da profusão de expetativas geradas sobre o mito do retorno a um certo passado, em demasiadas e relevantes áreas da vida concreta dos cidadãos e do funcionamento do Estado, os passivos de inação, de desinvestimento e de relativização das situações continuam a acontecer.

Em muitas áreas é como se o lixo colocado debaixo do tapete ou os esqueletos guardados no armário ganhassem a notoriedade pública que os convertem em problemas a resolver. É claro que, à margem da profunda desumanidade de algumas situações de rutura por falta de investimento, existem campanhas e lutas destinadas a apear membros do governo, mas da mesma forma que os parceiros da solução governativa colocam a sua assinatura no universo das opções políticas quando viabilizam um Orçamento do Estado, os membros do governo são responsáveis por tudo o que se faz ou não se faz nas suas áreas, mesmo que estejam em registo de “Somos todos Centeno”.

O verdadeiro drama é quando o que devia ser um ato de gestão, com fluxo normal, planeado e executado, só acontece porque é manchete de jornal, objeto de reportagem de televisão ou merecedor de telefonema do senhor Presidente da República a interceder pela resolução. Se as coisas acontecem a toque da notoriedade, então só restará aos cidadãos dar notoriedade. Será o regime do “berra mais alto”, em que a solução não decorre do senso e do sentido de justiça em função das disponibilidades, mas da gritaria – algo que tem sido esboçado pelos parceiros da solução governativa e pelos partidos da oposição, estes ao arrepio de muito do que fizeram aquando da passagem pelo governo.

Nesta deriva efervescente do grito, nem o PS tem atualmente maioria absoluta, nem os parceiros de solução governativa têm margem real para entrar em ruturas de facto depois de aprovarem três Orçamento do Estado com um perfil de opções que deram alguns resultados e que comprovam que a sua verborreia está ao nível de tantos outros dogmas ideológicos, não passando no teste da realidade. Tivessem as opções sido outras e as ruturas nos serviços públicos não estariam a acontecer, mas as clientelas eleitorais estavam antes das necessidades gerais. São opções que geraram renovadas expetativas e que agora, para não se sair fora do trilho, terão de ser defraudadas ou iludidas.

Serão normais todas as efervescências e as correspondentes colocações de “água nas fervuras”; afinal, depois de três anos de amorfismo, tudo soa demasiado a pré–eleitoral. Cansa, mas os portugueses já estão habituados. No outro ciclo político foi a “saída limpa”, agora é a “saída amarrada”. Estão amarrados às opções que fizeram: os da situação, às escolhas de 2015; os da oposição, à ação entre 2011 e 2015.

NOTAS FINAIS

BANHO DE IMERSÃO Em fevereiro de 2018, as importações voltaram a crescer mais do que as exportações, gerando agravamento da balança comercial. Quando não se olha para algumas realidades, depois pode-se ser surpreendido por notícias que não estavam no radar das preocupações.

DUCHE ESCOCÊS Mesmo sem relevância mediática em França, é de elementar justiça com a memória individual e coletiva a homenagem do Estado português aos combatentes na Batalha de La Lys, na passagem do centenário deste combate trágico da i Guerra Mundial. Logo agora, que os prenúncios de insanidade e de instabilidade proliferam no mundo.

BANHO HIPOTÉRMICO Proliferam no estrelato mediático os exemplos dos excessos de ação ou de inação, sem filtro de bom senso. Uns e outros são nefastos e têm consequências trágicas para a vida e para as instituições. No que importa, Portugal estará em segundo no número de mortes na estrada. São demasiados anos sem prevenção e sem cuidar das condições de circulação em segurança rodoviária.

 

Escreve à quinta-feira