Altitude de cruzeiro


A subjugação é de tal ordem que não desligamos, o bicho como que tem vida e vontade próprias, e só obedece ao comandante ou ao chefe de cabina


Sempre gostei de andar de avião, não tanto pelo tempo fechado dentro da máquina que rasga os céus, mas pela sua associação à viagem. Gostando muito de viajar, como gosto, e não tendo qualquer fobia com a máquina ou com os céus, nem qualquer purismo no sentido de que viajar realmente só por terra ou por água, teria de gostar de andar de avião. Mas gosto cada vez mais, e curiosamente ao mesmo tempo que vou desgostando (é a meia-idade) de alguns incómodos das viagens que dantes apreciava e, também, em simultâneo com um aumento de irritação por coisas que se passam nos aeroportos. E esse gostar tem-se intensificado à medida que o telemóvel – com todas as suas “funcionalidades” – tem aumentado a nossa subjugação. Fechado na máquina, lá bem alto, e vá para trabalho ou para lazer, e com melhor ou pior destino, e com este ou aquele estado de espírito, uma coisa é certa: naquelas horas, o bendito-maldito aparelho está desligado, não me chateia, eu não chateio através dele, vivo num oásis de tranquilidade, numa bolha de silêncio.

Claro que em terra ou na água tal também é possível, bastaria desligar o bicho. Mas não é assim. A subjugação é de tal ordem que não desligamos, o bicho como que tem vida e vontade próprias, e só obedece ao comandante ou ao chefe de cabina. E mesmo quem, como eu, usa pouco as “funcionalidades” do dito cujo, não frequenta as redes sociais, não gosta sequer muito de falar ao telefone e só o usa – embora em demasia – para comunicar em trabalho, e pouco – com defeito – para comunicar pessoalmente, não escapa à tirania do animal. Até porque, por um lado, essa tirania entranhou-se em nós, e estamos presos a uma espécie de síndroma de Estocolmo, e, por outro lado, na outra ponta da linha, do sms ou do email há sempre um algoz que não perdoa um minuto de distração, que se queixa de um atraso, que não compreende (ou ofende-se) que uma chamada possa não ter sido atendida. “Como é possível, não queres falar comigo, é?” “Já lhe mandei um email, não viu?” “Hello, estás por cá, mandei dois sms…” Et cetera. E para já não falar nos que ligam a qualquer hora, nos que não percebem que, por exemplo, perguntar se dá jeito falar naquele momento pode ser de elementar bom senso ou educação, ou nos que confundem o aparelho e as suas “funcionalidades” com os sentidos e a mente do utilizador que está do lado de lá.

O aparelho ajuda muito na vida, sem dúvida, e liberta, mas também escraviza. Quantas saudades pode um nascido em 1971 ter de uma carta, de um postal ou de um telefone de disco ou até de teclas, ou mesmo de um telefax. Mas como o tempo não volta para trás, nem mesmo em versos de canções, resta a mais ou menos duradoura libertação enquanto a máquina segue céu dentro em altitude de cruzeiro. Quando se aterra paga-se o preço, é certo, é assim a vida. Mas aquela sensação de frescura no oásis, aquela sede de tranquilidade saciada, essa já ninguém me tira. Que continuem a subir, e bem alto, os aviões, e que sejam firmes as vozes dos comandantes e dos chefes de cabina.


Altitude de cruzeiro


A subjugação é de tal ordem que não desligamos, o bicho como que tem vida e vontade próprias, e só obedece ao comandante ou ao chefe de cabina


Sempre gostei de andar de avião, não tanto pelo tempo fechado dentro da máquina que rasga os céus, mas pela sua associação à viagem. Gostando muito de viajar, como gosto, e não tendo qualquer fobia com a máquina ou com os céus, nem qualquer purismo no sentido de que viajar realmente só por terra ou por água, teria de gostar de andar de avião. Mas gosto cada vez mais, e curiosamente ao mesmo tempo que vou desgostando (é a meia-idade) de alguns incómodos das viagens que dantes apreciava e, também, em simultâneo com um aumento de irritação por coisas que se passam nos aeroportos. E esse gostar tem-se intensificado à medida que o telemóvel – com todas as suas “funcionalidades” – tem aumentado a nossa subjugação. Fechado na máquina, lá bem alto, e vá para trabalho ou para lazer, e com melhor ou pior destino, e com este ou aquele estado de espírito, uma coisa é certa: naquelas horas, o bendito-maldito aparelho está desligado, não me chateia, eu não chateio através dele, vivo num oásis de tranquilidade, numa bolha de silêncio.

Claro que em terra ou na água tal também é possível, bastaria desligar o bicho. Mas não é assim. A subjugação é de tal ordem que não desligamos, o bicho como que tem vida e vontade próprias, e só obedece ao comandante ou ao chefe de cabina. E mesmo quem, como eu, usa pouco as “funcionalidades” do dito cujo, não frequenta as redes sociais, não gosta sequer muito de falar ao telefone e só o usa – embora em demasia – para comunicar em trabalho, e pouco – com defeito – para comunicar pessoalmente, não escapa à tirania do animal. Até porque, por um lado, essa tirania entranhou-se em nós, e estamos presos a uma espécie de síndroma de Estocolmo, e, por outro lado, na outra ponta da linha, do sms ou do email há sempre um algoz que não perdoa um minuto de distração, que se queixa de um atraso, que não compreende (ou ofende-se) que uma chamada possa não ter sido atendida. “Como é possível, não queres falar comigo, é?” “Já lhe mandei um email, não viu?” “Hello, estás por cá, mandei dois sms…” Et cetera. E para já não falar nos que ligam a qualquer hora, nos que não percebem que, por exemplo, perguntar se dá jeito falar naquele momento pode ser de elementar bom senso ou educação, ou nos que confundem o aparelho e as suas “funcionalidades” com os sentidos e a mente do utilizador que está do lado de lá.

O aparelho ajuda muito na vida, sem dúvida, e liberta, mas também escraviza. Quantas saudades pode um nascido em 1971 ter de uma carta, de um postal ou de um telefone de disco ou até de teclas, ou mesmo de um telefax. Mas como o tempo não volta para trás, nem mesmo em versos de canções, resta a mais ou menos duradoura libertação enquanto a máquina segue céu dentro em altitude de cruzeiro. Quando se aterra paga-se o preço, é certo, é assim a vida. Mas aquela sensação de frescura no oásis, aquela sede de tranquilidade saciada, essa já ninguém me tira. Que continuem a subir, e bem alto, os aviões, e que sejam firmes as vozes dos comandantes e dos chefes de cabina.