Os intelectuais começaram a sua carreira histórica sendo uma espécie de adornos dos príncipes, acumulando, não poucas vezes, a função de hagiógrafos de serviço com a de bobos da corte. Infelizmente, esse traço genético não está totalmente extirpado. Quando vemos uma série de escritores espanhóis a ajudar a criar o consenso social que justifica a suspensão de facto da democracia, estamos perante um exemplo típico dessa regressão pavloviana que faz determinados intelectuais salivarem sempre que ao poder de turno convém.
Esta espécie de manto que limita aquilo que é pensável baseia-se em várias operações ideológicas. Dizia-se no Maio de 68 que “um cão é um cão e um gato é um gato, seja aqui ou na China”. No novo discurso, isso não é assim. Quando a Rússia bombardeia Alepo fá-lo com imensa crueldade e provoca milhares de mortos civis inocentes; quando os EUA bombardeiam Mossul dá-se o milagre, a acreditar na comunicação social, de que as suas bombas ressuscitam os mortos.
Este exercício de fechar os olhos e abanar o rabo conforme as orientações dominantes é visível todos os dias nos mais pequenos detalhes. Quando lemos uma notícia com um título em que se garante que o “PCP condena ‘massacre’ na fronteira de Gaza com Israel”, estamos em pleno linguajar que absolve tudo. Massacre entre aspas pretende colocar na cabeça do leitor que não houve massacre. Quer transformar um fuzilamento de manifestantes desarmados, que fez 16 mortos e mais de 1400 feridos, num simples conflito em que as duas partes estavam na mesma situação.
A segunda operação, que nos permite achar normal a ocupação, prisão, tortura e morte de milhares de palestinianos ao longo dos anos, é a mesma que permitiu aos nazis massacrarem durante anos os judeus, com o silêncio cúmplice dos governos ocidentais. Baseia-se num trabalho de sapa que faz dos outros sub-humanos. Faz deles gente privada de direitos cuja vida tem um valor muito menor que o da nossa.
Esta operação de desumanização acontece historicamente, tal como a produção de intelectuais capachos, há muito tempo. Até o direito do Império Romano tinha um termo para explicar esses humanos que podiam ser mortos sem nenhuma condenação para os assassinos: homo sacer. Mas voltemos a contar uma história emblemática:
Em 1899, os Estados Unidos da América discutiam no Congresso a anexação das antigas colónias espanholas que tinham lutado pela sua independência, nomeadamente as Filipinas. Nessa altura, o poeta britânico Rudyard Kipling escreveu um poema apologético para declarar que o facho da civilização tinha passado das mãos do Reino Unido. “O Fardo do Homem Branco” defendia que passara a caber a Washington tratar dos selvagens para o bem deles, sem contar com o seu agradecimento. Os nativos do mundo tinham de ser dirigidos pelas potências ocidentais. Eram homens inferiores, de civilizações fracas que precisavam de ouvir a voz do dono. Os agitadores deviam ser castigados e eliminados, se necessário por meios violentos. Os selvagens deviam ser controlados, para seu bem. Assim começava a declaração de bondade civilizadora:
“Tomai o fardo do Homem Branco,
Enviai vossos melhores filhos.
Ide, condenai seus filhos ao exílio
Para servirem aos seus cativos;
Para esperar, com arreios
Com agitadores e selváticos
Seus cativos, servos obstinados,
Metade demónios, metade crianças”.
Entre o consenso dos meios de comunicação e dos poderosos, houve um homem que não se calou. O escritor que assinava Mark Twain, autor d’“As Aventuras de Huckleberry Finn”, respondeu com um artigo em plena euforia “civilizadora”, quando os poderosos norte-americanos abriam garrafas de champanhe pela anexação das ilhas do Havai, de Samoa e das Filipinas, de Cuba, Porto Rico e de uma ilhota que se chama, eloquentemente, dos Ladrões. Perante isto, Mark Twain faz uma singela proposta e pede que se mude a bandeira nacional: que sejam negras, diz, as listas brancas, e que umas caveiras com tíbias cruzadas substituam as estrelas e assumam a verdadeira identidade de piratas.
Em pleno séc. xxi, pouco mudou. Somos governados por piratas: a cumplicidade dos governos ditos civilizados, e da sua obediente comunicação social, com o genocídio dos palestinos é reveladora da manutenção da ideia de que há seres humanos mais humanos que outros. Os palestinos são, para essa gente, verdadeiros homines sacri que podem ser mortos e torturados, segundo o direito romano nos tempos do Império, sem nenhuma sanção legal ou moral. Há gente que acha que Israel é uma democracia e, por isso, tem o direito de assassinar crianças palestinas. Há colaboracionistas ditos de esquerda que defendem que, como em Israel a situação dos gays e das mulheres é melhor que nos países árabes, as tropas hebraicas têm licença para destruir as casas palestinianas e matar as mulheres e crianças de Gaza.
Ironia da história, a operação ideológica que permite aos assassinos justificar o sangue derramado é a mesma que permitia aos nazis justificar aos alemães a solução final. Para os nazis, os judeus eram sub-humanos e, por isso, podiam ser mandados para as câmaras de gás; para os “democratas ocidentais”, os palestinos são criaturas culpadas pela sua morte e as bombas israelitas são a garantia da paz.
Dizia com o seu irónico cinismo o antigo secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger que o direito internacional não é um valor em si mesmo e que apenas se cumprirá nos sítios e nas ocasiões em que isso seja do interesse das grandes potências. O mesmo acontece com a ausência de condenação internacional a reiteradas violações de direitos humanos e perda de direitos democráticos nas nossas sociedades.
É incrível como, em nome da Realpolitik, se assiste ao silêncio dos governos da União Europeia em relação à prisão de independentistas catalães, à instituição de leis que criminalizam o direito à manifestação e ao processar de cantores e internautas por causa de posts que não agradam ao governo.
Até o conservador “Times”, a exemplo do que fez depois o “New York Times”, disse algo que os governos da Europa tentam silenciar. No editorial que increpa o governo de Mariano Rajoy depois da prisão de Puigdemont, nota que “Madrid deve começar a falar com os seus oponentes em vez de os mandar prender”.
No editorial intitulado “Spain again” (Espanha outra vez) opina-se que as eleições de 21 de dezembro podiam ter sido a oportunidade de reconciliação entre Madrid e os catalães, mas a política cega de repressão de Rajoy deitou tudo a perder, limitando-se a enviar polícias e juízes contra o independentismo. “Mariano Rajoy não deu nenhum passo real para perceber quais as razões porque tantos catalães querem a independência”, afirma o editorial, que relembra que a polícia chegou a revistar duas vezes o jato privado do treinador do Manchester City, o catalão Pep Guardiola, temendo que Puigdemont estivesse lá escondido.
O diário conservador britânico enumera as ações de perseguição do governo do PP para impedir que o eleito parlamento catalão possa nomear um novo governo. “Sexta-feira reativaram a ordem de extradição, surpreendendo Puigdemont em Helsínquia, onde visitava o parlamento finlandês. Agora está preso na Alemanha. Ele esperava a restituição do seu mandato depois das eleições de dezembro, mas isso foi proibido por um tribunal. No seu lugar foi nomeado Jordi Sànchez, outro líder independentista, mas o mesmo tribunal decidiu que Sànchez, que estava na prisão, tão-pouco podia deixar a prisão para ser investido. Jordi Turull, anteriormente ministro da Presidência de Puigdemont, foi nomeado candidato no princípio do mês. Na sexta-feira foi preso”, escreve o jornal britânico, que tira a seguinte conclusão: “Procurando demonstrar a sua força, o governo de Rajoy parece muito mais assustado.”
As consequências do silêncio cúmplice de governos e intelectuais sobre este processo catalão e todos os outros que levam ao aumento do autoritarismo dos governos são o abrir as portas a um novo modelo da democracia capitalista tão em voga em Espanha, Brasil, Hungria, Polónia, Turquia, Israel, Rússia e quejandos. Só o capital é livre, e o resto é um teatrinho cada vez mais dentro das grades.