Não dá para limpar tudo


Alguns excertos do relatório da comissão independente de peritos sobre os incêndios de outubro


Passou o outono e o inverno e, à conta da pressão para limpar terrenos e da ameaça de multas, é preciso reconhecer que nos últimos meses não se deixou de falar de incêndios, o que já é uma novidade face ao que acontecia até aqui fora da época alta dos fogos. Dito isto, acreditar que alguma coisa será diferente este ano, ou daqui para a frente, não apaga o que se passou em 2017 e, até ver, as reações políticas ao relatório da comissão de peritos entregue esta semana são quase tão desanimadoras como o conteúdo, inclusive as da oposição, que fez questão de sublinhar que bem tinham dito, como se isso fosse o importante.

O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, não quis comentar as falhas de atuação, apontando antes para os desafios a médio e longo prazo e para o trabalho que está a ser feito. “A melhor forma de estarmos prontos para o combate aos incêndios é centrarmos as atenções na prevenção e na limpeza das florestas”, defendeu. No relatório dos peritos, não só as regras definidas pelo governo para a limpeza das florestas são questionadas como ficam várias dúvidas sobre até que ponto quem decide compreende o que é estar pronto. Tal como o “Sol” já tinha noticiado no final de outubro, são apontados pedidos de reforço de meios anteriores aos fogos e que não tiveram “plena autorização a nível superior”. E os riscos meteorológicos não se traduziram em alertas suficientemente robustos à população que, perante a previsão de chuva para segunda-feira (basta procurar as notícias de sexta-feira 13 de outubro para ver que era essa a informação transmitida à imprensa, nomeadamente pelo IPMA), desatou a fazer queimadas. “Entendemos mesmo que este seria um momento para se lançar na antena pública um aviso com algum detalhe, eventualmente pelos responsáveis ao mais alto nível da ANPC ou até pela respetiva tutela”, dizem os peritos.

Já o ex-secretário de Estado Jorge Gomes, que criticou não ter sido ouvido pelos peritos, falou de dados falsos. “Nada do que aconteceu foi por falta de meios, tudo o que aconteceu foi porque não havia forma de conter a dimensão [dos fogos]”, comentou.

Segundo os peritos, mesmo que o fogo tenha ficado a certa altura incontrolável, muito do que aconteceu foi também por falta de meios, e se por vezes a tragédia não foi maior por causa daquilo a que chamam um “efeito Pedrógão”, este foi um efeito sobre a população, que tomou medidas de autoproteção.

Alguém dizia esta semana que um relatório como este pode ser traumático para todos. Como o traumatismo pode dar alguma perda de memória, eis alguns excertos do documento tornado público há uns dias. Página 155, sobre o fogo de Maceira de Cambra, Vale de Cambra. “O mais significativo é a manifesta falta de meios para a dimensão do incêndio. O COS admitiu que na fase inicial com um meio aéreo ligeiro poderia ter feito toda a diferença, mas pelas 11 horas do dia 15 de outubro o mesmo tinha a sensação que tinha o incêndio perdido.” Página 159, sobre um incêndio em Vilarinho, Lousã: “A disponibilidade de meios locais para esta ocorrência foi fortemente afetada pela sua mobilização prévia para ocorrência em Olho Marinho/Vila Nova de Poiares. Foi enviada viatura móvel SIRESP que não permitiu funcionamento do sistema, talvez por estacionamento em local errado.” Página 165, sobre o fogo de Pataias, Alcobaça: “É consensual que o efeito Pedrógão permitiu não haver vítimas mortais. Por vários motivos, alguns já referidos, embora se verificasse uma manifesta falta de meios.”

O que ajudou não deixa, ainda assim, de ser desarmante. A chuva, que foi determinante para apagar alguns dos incêndios. E ser domingo. “Permitiu que nos Corpos de Bombeiros (apesar de alguns já não terem dispositivo atribuído, outros não tinham disponibilidade para o ter) houvesse uma disponibilidade dos operacionais que nalguns casos foi de 96% do efetivo do seu quadro ativo”, lê-se no relatório. “Acresce igualmente que a circunstância de ser domingo permitiu ainda em alguns aglomerados populacionais haver os tradicionais eventos familiares, ou visitas de família, o que permitiu que em muitas circunstâncias, tivessem sido os civis, que se encontravam nesses territórios, a fazerem, sem qualquer apoio, a defesa perimétrica dos seus núcleos populacionais.” Haverá sempre imprevisíveis, falhas pelas quais ninguém poderá ser, em última instância, responsabilizado. Mas neste momento em que o desígnio nacional é a limpeza da floresta e tentar prevenir uma nova tragédia, não dá para limpar tudo.

 

Jornalista

Escreve à sexta-feira